BATALHA POR BAKHMUT DESGASTA EXÉRCITOS RUSSO E UCRANIANO COM CENTENAS DE BAIXAS DIÁRIAS

 

Mulher vela o caixão de soldado ucraniano morto em Bakhmut, em um cemitério em Sloviansk
Mulher vela o caixão de soldado ucraniano morto em Bakhmut, em um cemitério em Sloviansk Yasuyoshi Chiba/AFP

Batalha por Bakhmut desgasta exércitos russo e ucraniano com centenas de baixas diárias

À medida que o confronto cresce nesta cidade-chave do Leste da Ucrânia, número de mortos, feridos ou desaparecidos também se multiplica; Moscou aumentou presença na região por meio de mercenários

Por El País e New York Times — Kiev, Moscou e Washington

01/02/2023 11h39  Atualizado há 2 semanas

Rússia aumenta a pressão sobre a cidade de Bakhmut, no Leste da Ucrânia, enviando ondas de soldados para romper a resistência das forças de Kiev e visando às linhas de abastecimento em uma campanha sangrenta para tentar obter a primeira vitória significativa de Moscou no campo de batalha em meses.


Quase um ano depois que o Kremlin lançou sua campanha de agressão à Ucrânia, Bakhmut e as áreas ao seu redor se tornaram um centro de combates intensos, com importância crescente à medida que ambos os lados intensificam sua presença no campo de batalha, de olho nessa cidade que pode ser a chave para a Rússia conquistar toda a área do Donbass, depois que meses de bombardeios renderam poucos ganhos.

— A situação é muito difícil — disse o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, em um discurso noturno recente após uma reunião com líderes militares. — Há tentativas constantes de romper nossa defesa.

Ao longo da guerra, o poder de fogo provou ser fundamental para os ganhos russos, mas a batalha por Bakhmut é diferente.

Cada vez mais, dizem combatentes ucranianos e analistas, Moscou tem contado com uma tática mais grosseira: tentar tomar a cidade por meio de sua superioridade numérica. Como resultado, dizem os ucranianos, as baixas russas nos combates recentes em Bakhmut vêm sendo maiores do que nos meses anteriores.

Parte da estratégia em evolução da Rússia parece ser sobrecarregar as defesas ucranianas com novas levas de soldados, muitos provenientes do recrutamento de 300 mil homens pelo presidente Vladimir Putin em setembro. Isso seria um desvio das campanhas anteriores de Moscou em outras partes do Donbass, quando a artilharia bombardeava cidades por semanas antes de a Rússia lançar uma ofensiva terrestre sustentada.

Michael Kofman, diretor de estudos russos do CNA, um centro de pesquisa financiado pelo governo americano, disse que a batalha em Bakhmut vem custando mais perdas humanas à Rússia, porque seus combatentes muitas vezes lutam a pé, sem o apoio de veículos blindados. Mas embora as perdas da Ucrânia possam ser menores, elas podem ser mais dolorosas, afirmou em um episódio recente do podcast de assuntos militares War on the Rocks.

A batalha por Bakhmut, uma das mais sangrentas da guerra ucraniana, é um "moedor de carne" de vidas humanas. Foi assim que Yevgeny Prigojin, o empresário que lidera o grupo de mercenários russos Wagner, a descreveu em novembro.

A ofensiva para tomar o controle dessa cidade causou milhares de mortes entre as fileiras do Wagner, mas as baixas do lado ucraniano também se multiplicaram. Nenhum dos dois exércitos detalha suas perdas, mas os serviços de inteligência de vários países da Otan alertam que o preço que Kiev está pagando para manter sua bandeira hasteada em Bakhmut é muito alto.

O semanário Der Spiegel revelou em 20 de janeiro que os serviços secretos da Alemanha haviam alertado à comissão de segurança do Bundestag — a Câmara baixa alemã — que as Forças Armadas ucranianas tinham em Bakhmut baixas diárias que foram contadas "em números de três dígitos", ou seja, em centenas de mortos, feridos ou desaparecidos em combate.

A última estimativa fornecida por um representante oficial foi dada em junho, quando Mikhailo Podoliak, um conselheiro de Zelensky, observou que seu exército registrava entre 100 e 200 baixas por dia em todas as frentes. Do memorando da Inteligência alemã entregue ao Bundestag, limitado às baixas na defesa de Bakhmut, conclui-se que a contagem diária pelo menos dobrou.

O New York Times publicou no final de novembro que o hospital desse município poderia tratar 240 novos soldados ucranianos feridos todos os dias. Desde então, a situação piorou. A Rússia pressiona Bakhmut desde o início da invasão, em fevereiro de 2022, mas foi desde novembro passado que aumentou os esforços para tomar a cidade. A intensidade da luta se acelerou desde 6 de janeiro, quando um ataque surpresa do Wagner deu a eles o quase controle total de Soledar, uma cidade vizinha de Bakhmut. Desde então, mercenários russos têm sitiado a cidade de três lados diferentes e a luta continua metro a metro.

Baixas entre mercenários pode chegar a 40 mil

Os serviços secretos alemães descobriram, de acordo com o Der Spiegel, que as baixas do lado russo são muito maiores porque as ordens do Wagner não são regidas por nenhuma tática militar, mas por uma mera estratégia de ataque usando seus mercenários como bucha de canhão. O veículo russo independente Meduza publicou em 23 de janeiro dados arrepiantes da investigação da ONG Rus Sidyashchaya, especializada nos direitos dos presos na Rússia: dos quase 50 mil condenados à prisão que teriam aceitado lutar com o Wagner na Ucrânia para reduzir suas penas — a grande maioria, na batalha de Bakhmut—, apenas 10 mil continuariam lutando; o resto, cerca de 40 mil, morreram, foram feridos ou desertaram.

Os dois exércitos são imprecisos em seu número de baixas. Podoliak apontou no início de dezembro que o número de soldados ucranianos mortos poderia ser de 13 mil. Um cálculo tradicional na teoria militar é que os mortos em combate são um terço do total de baixas que ocorrem nas Forças Armadas. Isso indicaria, de acordo com as estimativas de Podoliak, que até dezembro, pelo menos 40 mil soldados ucranianos teriam se retirado do front devido à morte, ferimentos ou outras causas, como rendição.

Mas em estudos acadêmicos publicados nos últimos anos — por centros de pesquisa como o MIT, a Harvard Kennedy School ou a Missouri Medical Association —, constatou-se que a proporção melhorou nas últimas décadas para pelo menos uma morte para cada 10 feridos, graças à evolução da assistência médica em zonas de combate. Se o número de mortos fornecido por Podoliak for levado em consideração, as estimativas aumentariam para mais de 100 mil vítimas ucranianas.

O chefe do Estado-Maior dos Estados Unidos, Mark Milley, afirmou no final de novembro que as baixas de cada lado estavam perto de 100 mil soldados. O chefe do Estado-Maior norueguês, Eirik Kristoffersen, também afirmou em entrevista em 22 de janeiro no canal TV2 de seu país que as baixas ucranianas foram de 100 mil soldados, e as russas, de 180 mil.

Dados do inimigo em dúvida

O Estado-Maior da Ucrânia comunica suas estimativas de soldados inimigos mortos todos os dias. Em 31 de janeiro, os militares russos que perderam a vida são estimados em mais de 127 mil, segundo o Exército ucraniano, um número que a maioria dos analistas independentes contesta. Um exemplo dessa inflação de dados seria o bombardeio de 1º de janeiro a uma base militar russa na cidade de Makiivka, na província de Donetsk.

De acordo com Kiev, 400 soldados russos foram mortos no ataque, enquanto Moscou baixou o número para menos de 100. Os serviços de inteligência britânicos concluíram na semana passada que as baixas russas foram de 300, enquanto uma investigação da BBC limitou o número a 100. O serviço russo da BBC, juntamente com a mídia russa independente Mediazona, informou na semana passada que sua estimativa de baixas russas desde o início da invasão foi de 110 mil, e que o número de mortes disparou desde a incorporação à frente dos recrutas mobilizados em setembro passado.

Mas a análise das estatísticas de soldados russos mortos oferecidas pelo Exército ucraniano serve sim para se ter uma ideia da carnificina em Bakhmut. Entre 6 e 31 de janeiro, o número de mortos russos registrados pelo lado ucraniano aumentou em 17 mil: em três semanas, quase dobrou a média mensal de mortes russas que Kiev registrou em 2022.

Questão de honra

A tomada de Bakhmut é uma questão de honra para ambos os exércitos. Se conquistada, seria a primeira vitória de Vladimir Putin no campo de batalha desde julho, após retiradas humilhantes na província de Kharkov e Kherson. Para Zelensky, Bakhmut também se tornou motivo de orgulho. Em 20 de dezembro, ele visitou a cidade de surpresa e garantiu que suas tropas resistiriam porque é fundamental "defender Donbass e a Ucrânia".

Mas entre os aliados da Ucrânia há dúvidas. Um alto funcionário da Casa Branca afirmou em meados de janeiro em uma reunião com jornalistas em Washington que o governo dos EUA considera que as Forças Armadas ucranianas devem dedicar esforços para preparar uma contraofensiva a partir de março. Outro representante do governo de Joe Biden insistiu à agência AFP que a Ucrânia deve parar de defender Bakhmut a qualquer custo e aproveitar a oportunidade para avançar em outra frente. Na CNN em 23 de janeiro, vários representantes da Otan reiteraram que o futuro da guerra não está em resistir em Bakhmut, mas em avançar de Zaporíjia em direção à costa do Mar de Azov.

Em visita a Bakhmut em 13 de janeiro, o El País confirmou que as forças ucranianas já fortificaram novas linhas de defesa ao redor da cidade caso a Rússia tome seu território e decida lançar uma ofensiva mais a oeste. O jornal recolheu o testemunho de pelo menos dois batalhões, um de infantaria e outro de blindados, que tiveram de se retirar da linha da frente por falta de munições e excesso de baixas. As autoridades ucranianas conseguiram até agora, por motivos de propaganda, não divulgar praticamente nenhuma imagem de seus combatentes feridos, mas com o passar dos meses de batalha em Bakhmut, mais soldados compartilham pela primeira vez relatos de companheiros retirados com ferimentos.


Fonte:https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/02/batalha-por-bakhmut-desgasta-exercitos-russo-e-ucraniano-com-centenas-de-baixas-diarias.ghtml

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