Povos indígenas são essenciais à conservação e bioeconomia das florestas. Acima: cacique Raoni Metuktire, líder da etnia Kayapó (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)
Povos indígenas são essenciais para conservação e bioeconomia da floresta
Especialistas da TNC Brasil explicam a importância das terras indígenas à proteção ambiental e também para as tendências de uma economia mais verde
Existem no Brasil pelo menos 305 povos indígenas, com uma população total superior a 800 mil pessoas que falam mais de 274 línguas, segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Eles habitam 724 terras ou reservas, ocupando uma área de 117 milhões de hectares, o que corresponde a quase 14% do território brasileiro, de acordo com a Funai.
Nos municípios com maiores taxas anuais de desmatamento, as terras indígenas, quando presentes, formam ilhas de floresta que coíbem a especulação imobiliária e interrompem o ciclo de transformação da paisagem da maior floresta tropical do mundo em pastagens e terras agrícolas. Como resultado, entre as áreas mais bem preservadas e com algumas das mais altas taxas de diversidade biológica da Amazônia estão as terras indígenas, mesmo quando comparadas a muitas áreas protegidas.
Além disso, a preservação das TIs é particularmente importante para evitar as mudanças climáticas, já que elas contêm, em média, cerca de 50% mais carbono por hectare do que áreas não protegidas da Amazônia brasileira.
No entanto, embora a maior parte das florestas em TIs esteja intacta, os povos indígenas e tradicionais da Amazônia Legal do Brasil enfrentam atualmente quatro conjuntos distintos, mas inter-relacionados, de ameaças à integridade de suas terras: expansão da agropecuária; desenvolvimento de obras de infraestrutura em larga escala; invasões de terras e roubo de recursos florestais; e avanço da mineração dentro e em seu entorno.
A atual gestão do governo federal gerou uma mudança dramática na direção dos assuntos dos povos indígenas no Brasil. A expansão econômica em TIs está sendo incentivada sem critérios mínimos de sustentabilidade, e os efeitos estão se tornando evidentes. Nos últimos dois anos, o desmatamento anual em terras indígenas da Amazônia Legal, que vinha se mantendo em torno ou abaixo de 20 mil hectares, mais que dobrou. A conversão de floresta, antes geralmente ligada à abertura de roças voltadas à agricultura de subsistência, está se expandindo por conta de pressões externas.
Os efeitos da mineração
Uma das maiores ameaças às TIs é a mineração: mais de 11 mil hectares dessa atividade foram detectados em 2020 no interior ou entorno de até 10 km das terras indígenas. Embora nesse caso a área impactada seja menor que a do desmatamento, a degradação ambiental provocada por essa atividade alcança grandes dimensões.
No caso específico do garimpo, praticado ao longo de rios, além da erosão e assoreamento, o uso generalizado de mercúrio para a separação do ouro provoca a contaminação de corpos de água, bem como de espécies aquáticas. Assim, mesmo quando a mineração, geralmente ilegal, é praticada fora das TIs, ela tem consequências para a segurança hídrica e a saúde dos povos indígenas e de outras populações tradicionais rio abaixo, além dos próprios garimpeiros.
Do consumo a higiene pessoal e recreação, a vida das comunidades locais gira em torno das águas dos rios e igarapés e de seus peixes. A ingestão de mercúrio pode causar problemas neurológicos, resultando em tremores e perda de coordenação motora ou mesmo redução da visão. Estudo da Fiocruz em uma comunidade indígena Yanomami do Amazonas indicou que 56% das mulheres e crianças apresentavam níveis de mercúrio acima do limite seguro de exposição estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Como se não bastasse, garimpeiros cada vez mais presentes no interior de TIs têm sido apontados como os principais vetores da Covid-19 entre os yanomamis.
Terras seguras
Diante desse contexto de ameaças, a principal solução está no fortalecimento da gestão territorial por meio das quais os povos indígenas e suas organizações representativas são capazes de: 1) conservar, 2) defender, 3) gerenciar, 4) usar e 5) governar suas terras de forma a manter seu valor de conservação e promover o bem-estar coletivo de seus povos. Essas cinco ações formam o núcleo da Política Nacional de Gestão Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI), criada em 2012 a partir de um amplo processo de consulta que incluiu 150 grupos indígenas, e que é hoje um dos instrumentos mais avançados de política pública.
Essa política parte do entendimento de que as terras indígenas só podem desempenhar as suas funções de conservação e de subsistência se estiverem fisicamente seguras de invasões, se elas fornecerem segurança alimentar e sanitária para seus habitantes e se forem entidades economicamente viáveis. O principal instrumento técnico e administrativo da PNGATI é o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), que deve ser desenvolvido pelos próprios indígenas a fim de refletir as visões específicas de cada povo para sua terra. Atualmente, mais de 110 PGTAs já foram desenvolvidos para TIs de todo o Brasil.
As terras indígenas contêm elementos únicos para proporcionar melhores condições de vida a toda sociedade brasileira, não apenas no aspecto ambiental, mas do ponto de vista econômico também. Os conhecimentos tradicionais e a sócio-biodiversidade indígena têm um potencial importante para gerar riqueza a partir de uma série de produtos e serviços. Inclusive, eles estão se tornando protagonistas de uma nova premissa de que o desenvolvimento econômico racional, consistente e de longo prazo é possível por meio das cadeias de produtos da sociobioeconomia (frutas, óleos, plantas medicinais nativas, etnoecoturismo e outros), os quais podem se tornar matrizes para um novo ciclo de desenvolvimento sustentável da Amazônia.
A premissa de que é possível conciliar gestão ambiental responsável com uma nova bioeconomia que traga etnodesenvolvimento, com respeito aos direitos dos povos indígenas, é hoje um farol para se pensar novos caminhos rumo ao enfrentamento da crise sociopolítica e dos impactos da pandemia que vivemos.
*Hélcio Marcelo Souza é gerente da estratégia Povos Indígenas e Comunidades Locais, e Edenise Garcia é diretora de ciências, ambos da The Nature Conservancy Brasil. Saiba mais em www.tnc.org.br
Fonte:https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Meio-Ambiente/noticia/2021/04/povos-indigenas-sao-essenciais-para-conservacao-e-bioeconomia-da-floresta.html
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