"O MUNDO LÁ FORA NÃO ACOLHE NOSSAS DORES": UMA CRÔNICA SOBRE A VIVÊNCIA FEMININA NOS DIAS ATUAIS

 

Wellness (Foto: Erik Asla)

O psiquiatra Filipe Batista reflete sobre as dificuldades da vida (Foto: Erik Asla)


"O mundo lá fora não acolhe nossas dores": uma crônica sobre a vivência feminina nos dias atuais

Em sua nova coluna para a Vogue, o psiquiatra Filipe Batista traz luz às cobranças que recaem sobre as mulheres em uma análise nada romantizada

Olhou para ela com desprezo. Inchada, poros abertos, uma nova mancha na maçã – já estava ali? –, percebeu o contorno do rosto desvanecer, uma flacidez desconcertante, diferente daquelas que se pode esconder ou disfarçar com alguns truques ou o mínimo de conhecimento sobre o próprio corpo, procedimentos, formas, tecidos e proporção. Além dos enormes óculos escuros à la Sophia Loren e um pequeno ponto de luz que herdara da avó, não havia mais nada que pudesse usar acima do colo no calor de trinta graus da Vieira Souto a fritar seus miolos naquela manhã de domingo.

Queria acreditar que seria poupada dos fogachos quando fosse a hora, uma recompensa da qual acreditava ser merecedora. Trinta e cinco, quarenta, quarenta e tantos graus, chegou a menopausa. Estou condenada, pensou ao se olhar no espelho logo cedo. Antes, minutos na cama, enfadada, Instagram, o corpo inteiro descoberto, vestígios da fúria do calor noturno. Nada foi poupado, o lençol centenas de fios egípcios, o travesseiro centenas de plumas, ela centenária, tudo encharcado de suor.

O lençol estirado no chão como se cobrisse uma vítima morta, ela mesma ou seu marido, teria matado durante a madrugada se tivesse um. Teve um ou dois, a depender do que se pode considerar casamento para além do que determina a lei. Foi feliz muitas vezes, mas não sente falta dos relacionamentos que ela mesma desatou. Após encarar-se no espelho, velha, derrotada, entregou-se passivamente ao vaso sanitário, onde se permitia ficar por tempo além do necessário, divagando só, sem compromissos ou cobranças, um dos poucos prazeres que lhe restavam.

Era gentil com todos, menos consigo. Aprendeu que deveria ser assim e, embora tivesse há muito entendido o que estava por trás, não conseguiu livrar-se da submissão. Não aquela que todos são capazes de enxergar, dessa estava blindada, forte, respeitada, conseguiu impor-se e prosperar na carreira. Internamente sentia-se frágil, embora carregasse a certeza sobre seu valor e competência, que a protegeram das armadilhas mais tolas que uma mulher pode cair. Havia conquistado e feito muito, permitiu-se, apaixonou-se, amou, comprou as brigas certas, apostou todas as fichas no que acreditava, mas ultimamente sentia-se fracassada. Como sustentar um fracasso pelo qual não se sente responsável, quando não se sente em dívida.

Sentada no vaso, ouve ecoar eternamente mamãe, mamãe, mamãe, mamãe, mamãe, mamãe, mamãe. Morta, soterrada no assoalho do quarto, coberta pelo lençol branco, à espera do resgate. Diga, filha – ninguém veio resgatá-la –, mamãe está indo. Sempre gentil e elogiada na escola, ela é tão educada, diziam os amigos. Orgulhava-se da educação que dava à menina, mas temia que também se tornasse presa fácil da tal submissão a qual jamais conseguiu libertar-se, ainda que se esforçasse para ensinar o contrário à filha. Como pode tão disciplinada fora e tão colapsada em casa, parece vingar-se do mundo através de mim, eu mesma não havia me vingando de ninguém, para onde foi minha raiva? Era capaz de sentir raiva agora, inclusive da filha que tanto amava quando gritava mamãe sem parar, uma toada grave e pesada, ao ponto de atendê-la imediatamente apenas para reivindicar o direito ao silêncio.

Era capaz de empatizar com a filha, embora não tivesse, como ela, em quem despejar sua agonia. Em algum momento do passado, talvez, na própria mãe, nos namorados e maridos que teve, mas estava farta de jogar nos outros sua raiva, havia decidido que não culparia mais ninguém por suas frustrações. Fez análise por quinze ou dezesseis anos, Édipo forte e etc, um compromisso consigo mesma, depois com a filha. Entregamos nossa pior versão para quem mais amamos, disse deitada no divã. Sempre hábil, gentil e tolerante com amigos, colegas e clientes. Incompreensível, voluntariosa e arredia em casa.

Muita mágoa acumulada, ressentimento de outras vidas, gritos ancestrais clamando justiça por causas que nem sabe ao certo, causas que se tornaram suas também, mesmo que não quisesse ou negasse. O mundo lá fora não acolhe nossas dores, é preciso gritá-las em algum lugar. Mamãe, mamãe, mamãe. Chega, Clarice, não tenho um minuto de paz, estou com dor de cabeça, o que você quer? Estava suja de cocô, período de transição tem dessas. Onde está Maria, não voltou do mercado? Era seu braço direito, esquerdo e os demais que gostaria de ter, não contava com ninguém além dela, mãe de três, sustentou os filhos sozinha com seu trabalho, ajudava no que podia Cleonice, vizinha e amiga de infância, que ajudava outra, que ajudava outra e outra.

Correu pela sala com papel preso à bunda ainda por limpar. Não tem graça, Clarice, sua mãe está falando sério. Cansada de tudo, não pensou em correr atrás, desabou no chão e chorou. Incorrigível segundos antes, parou espontaneamente ao ver pela primeira vez sua mãe chorar. Buscou o olhar da mulher sem nome, mãe, esposa, filha, profissional, apenas mulher, um olhar fixo, perdido em lugar nenhum. Clarice aproximou-se, buscou seu abraço. Correspondeu limpando a lágrima com um sorriso forçado. Olha só que desastre, agora estamos as duas sujas, literalmente na merda. Gargalharam e compartilharam mais que um abraço, uma promessa. Vem cá, meu amor, te amo tanto, mamãe vai sair dessa, eu prometo.

Não saía de casa há quatro dias, quase nunca da cama. Triste como jamais, embora incapaz de derramar uma lágrima sequer, até agora. Sentiu-se reconfortada ao saber que ainda podia chorar, sentir, se indignar contra sua melancolia. Tempos sombrios, pensou, querendo livrar-se de imediato daquela ideia. Não se sentia forte o suficiente para encarar de frente, suportar o que o mundo se tornou. Sua alegria a manteve firme todos esses anos, viu-se obrigada a endurecer, nenhuma brutalidade ou grande trauma, apenas essa violência cotidiana e banalizada que mata aos poucos em vez de lançar seu golpe definitivo. Viver tornou-se uma tortura, como um viciado em jogo, que insiste em jogar a cada nova perda. Sua tristeza revelava ao menos uma lucidez preservada, era impossível ser feliz nesse mundo.

Vamos, mamãe precisa terminar de te limpar. Tinha pelo que lutar. Reergueu-se com apoio das mãos, qualquer mínimo esforço era uma nova batalha. Maria, que bom que chegou, me ajuda aqui com a Clarice? Mamãe já explicou, avise quando quiser ir ao banheiro. Mamãe, mamãe, o chamado insistente ainda ecoava. Lembrou-se de quando era criança, fim de tarde, corria pela sala de estar, luz dourada e sombra desenhavam o contorno da janela no piso de madeira escuro. Sua mãe enxugava as lágrimas ao voltar da rua, era confuso, não parecia triste, ao contrário. Sons de buzina, gritos de comemoração entravam na sala através da janela. Ouviu sua mãe, alegre e viva, como se fosse hoje: está vendo, Selma, há esperança, vamos, venha comigo até a janela gritar também. Diretas já! Diretas já!

Fonte:https://vogue.globo.com/Wellness/noticia/2022/04/o-mundo-la-fora-nao-acolhe-nossas-dores-uma-cronica-sobre-vivencia-feminina-nos-dias-atuais.html


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