MULHERES NA CIÊNCIA: OS DESAFIOS E CONQUISTAS DE ONTEM E HOJE


Foto: Domínio Público (esq.) | Divulgação (dir.)


Mulheres na ciência: os desafios e conquistas de ontem e hoje

Apenas 35% dos estudantes de áreas como matemática e tecnologia no mundo são mulheres



Por: Mariana Lima


Quantas cientistas você conhece? Talvez você já tenha ouvido falar de Marie Curie (1867-1934), a primeira mulher a receber um Nobel e a única pessoa a receber dois prêmios Nobel em áreas diferentes (química e física).

Marie foi pioneira nas pesquisas sobre a radioatividade e os elementos químicos polônio e rádio – descobertas dela. Suas pesquisas foram fundamentais para o surgimento da radioterapia, um importante tratamento contra o câncer, e para a utilização do raio X.

Outra cientista que deixou uma grande contribuição para a humanidade foi a matemática Ada Lovelace. Conhecida como “princesa dos paralelogramos”, ela foi a primeira programadora do mundo, tendo criado o primeiro algoritmo. Isso significa que se hoje você usa computadores e smartphones é, em grande parte, por causa dela.

No Brasil, grandes mulheres também deixaram suas marcas na produção científica, como a bióloga Bertha Lutz (1874-1976), especialista em anfíbios. Bertha descobriu uma nova espécie de sapos, o Paratelmatobius lutzii, também conhecido como “Lutz’s rapids frog”. Lutz, além de cientista, era ativista dos direitos femininos, tendo participando da luta das mulheres pelo direito ao voto em 1932.

“Por ser mulher, parece que você vive de forma transparente. Eles te interrompem, não ouvem suas ideias […]”

Recentemente, a cientista brasileira Celina Turchi ficou conhecida por descobrir e desenvolver pesquisas sobre a relação entre o vírus Zika e a microcefalia. Por esse trabalho, Celina entrou para a lista de “100 personalidades mais importantes da ciência”, da revista Nature, em 2016.

A presença das mulheres na ciência, no entanto, sempre esbarrou em preconceitos e no machismo de uma sociedade que insiste em delegar um lugar específico às mulheres.

De acordo com o estudo ‘Decifrar o código: educação de meninas e mulheres em ciências, tecnologia, engenharia e matemática (STEM)’, publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), apenas 35% dos estudantes do mundo em áreas de STEM (science, technology, engineering, and mathematics) são mulheres.

Desigualdade, assédio e persistência

Para a pesquisadora em relações de gênero, trabalho e família da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Moema de Castro, as mulheres que atuam na ciência encaram um “teto de vidro”, ou seja, um bloqueio invisível que impede que elas alcancem cargos de poder, resultando na permanência masculina nestas posições.

“As mulheres já começam em pé de desigualdade com os homens. Ainda é atribuído a elas o papel do cuidado. Se o filho está doente, quem vai buscar? Então, além de todo o trabalho externo, os cuidados da casa e das pessoas ainda são tratados como responsabilidades apenas da mulher”.

Moema chama a atenção para o fato de as mulheres serem maioria na concessão de bolsas para Iniciação Científica (55%), no mestrado (52%), no doutorado (50%) e no pós-doutorado (53%), segundo dados do CNPq, Inep e Parent in Science. Porém, as bolsas de Produtividade em Pesquisa (PQ) para mulheres correspondem a apenas 36% do total.

As bolsas em PQ são voltadas para pesquisadores que já têm o título de doutor ou livre-docente e que tenham uma produção científica de destaque em suas áreas de conhecimento.

“As mulheres estão presentes nos níveis mais baixos de pesquisa, mas na categoria 1A do CNPq das bolsas de Produtividade em Pesquisa [uma das categorias mais altas], elas correspondem a apenas 23% [2011]. A presença feminina vai diminuindo quanto mais elas sobem de posição”.

De acordo com dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em relação às áreas de pesquisa, as mulheres são maioria em cursos nas áreas de artes, biológicas, humanas, saúde e ciências sociais aplicadas. Os homens são maioria em Engenharia e Computação e nas Exatas em geral.

“As políticas sociais são ferramentas fundamentais para sanar essas desigualdades. A ciência é melhor quando existe uma diversidade. Não só uma ciência de homens brancos”, desabafa Moema.

Para a física, professora titular do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IF-UFRGS) e pesquisadora de gênero Márcia Barbosa, o futuro do mercado de trabalho está na tecnologia e as mulheres devem ser motivadas a entrar neste setor.

“As mulheres precisam da tecnologia e devem ser incentivadas a praticá-la. Os problemas ligados ao universo feminino são pouco estudados, principalmente quando não há mulheres na área”.

A pesquisadora descobriu o próprio interesse pela ciência ao ajudar a montar um laboratório de física na escola. A família de Márcia encarou com estranhamento sua escolha, porém logo passou a apoiá-la. “Eles tinham aquela preocupação de que eu conseguisse ganhar dinheiro e me sustentasse”.

Física Márcia Barbosa

A física passou por situações que representam bem a desigualdade no ambiente científico. No primeiro dia de aula na faculdade de física, dos 40 alunos em sala, menos de 10 eram mulheres. No final, ela foi a única mulher a se graduar.

“Por ser mulher, parece que você vive de forma transparente. Eles te interrompem, não ouvem suas ideias. São pequenos beliscões que levei durante todo o curso. Mas não foram suficientes para me fazer desistir”.

O currículo de Márcia prova sua determinação. Ela já recebeu o prêmio Claudia em Ciência e o prêmio L’Oréal-Unesco de Mulheres nas Ciências Físicas. Além disso, integra a Sociedade Americana de Física e a Sociedade Brasileira de Física, e exerce a função de diretora da Academia Brasileira de Ciência (ABC).

“A ciência é apaixonante. Entender algo tão complexo, ter os dados e ver as transformações é maravilhoso. Não deixaria os obstáculos me tirarem isso”.

Os estudos de física, com ênfase em Física da Matéria Condensada, acabaram por se encontrar com as questões de gênero, tópico que passou a ser um dos focos de suas pesquisas.

“Colegas utilizavam o fato de eu ser mulher contra mim, para diminuir minha capacidade. ‘Seu perfume me distraiu’, ‘Essa saia curta é só por causa da decisão de departamento? ’, são coisas que eu ouvi e que desmereciam minha posição e o meu trabalho”.

Márcia ressalta a importância de a mulher não se silenciar nestes ambientes e abrir a “Caixa de Pandora” para trazer a discussão à tona.

“O ambiente científico não é diverso. Temos a responsabilidade de brigar por quem não consegue. A mulher não pode dormir em uma sociedade como a que vivemos, pois a cada passo à frente, damos dois para trás”.

Além dos obstáculos enfrentados por serem mulheres, a raça também é um fator envolto nesta discussão. Apenas 15% das bolsistas do CNPq são negras, de acordo com dados de 2016. E apenas 3% das bolsistas de Produtividade de Pesquisa (PQ) são mulheres negras.

“A ciência é melhor quando existe uma diversidade. Não só uma ciência de homens brancos”

Segundo o Censo da Educação Superior (2016) apenas 0,04% dos docentes de pós-graduação no país são mulheres negras. Somando o número de mulheres pretas e pardas que possuem doutorado, o total não alcança os 3%.

O censo ainda expõe o início desta disparidade. Na graduação, as mulheres negras correspondem a 6% dos alunos matriculados entre 20 e 24 anos. Em contrapartida, mulheres brancas representam quase 7 vezes mais esse valor, cerca de 40%.

A Gênero e Raça levantou dados junto ao CNPq sobre a disparidade de gênero e raça de seus bolsistas entre 2013 (ano em que essas informações passaram a ser coletadas nos currículos dos pesquisadores na plataforma Lattes) e 2017. Os dados podem ser conferidos aqui!

Quadro Atual

Dados do relatório Gender in the Global Research Ladscape’ (Gênero no Cenário Global de Pesquisa), apresentado por uma das maiores editoras mundiais, a Elsevier, reveloaram que a produção científica feminina no Brasil cresceu nos últimos 20 anos.

A taxa de trabalhos científicos de autoras aumentou 11%, alcançando 49% da produção científica total do país, sendo esta a mesma taxa de Portugal. Ambos são os países com as taxas mais altas.

Apesar do quadro positivo, as mulheres ainda são minoria nas “Hard Sciences”, que correspondem ao STEM. Segundo o levantamento, 75% dos trabalhos em áreas como ciências da computação e matemática são realizados por homens.

Mesmo representando uma minoria, as mulheres que entram nestas áreas criam projetos capazes de transformar a vida de populações e resolver problemas que afligem a sociedade.

Ciente da falta de acesso à água potável em regiões áridas do Nordeste brasileiro, a jovem Anna Luísa Beserra criou o Aqualuz. O aparelho realiza a desinfecção de água de cisterna (reservatório) de captação de água de chuva nas zonas rurais e através da radiação solar elimina os micro-organismos e impurezas da água, sem qualquer produto químico. O Aqualuz pode filtrar em média 30 litros de água por dia.

Anna Luísa nunca passou sede ou viveu em regiões como essas, mas sabia do problema e não perdeu tempo para desenvolver sua ideia.

“Era um interesse natural. Eu gostava de fazer experimentos e tinha o desejo de ser pesquisadora. Na 7ª série, eu já queria trabalhar com biotecnologia”.

Anna Luísa Beserra | Foto: Redes Sociais

A primeira versão do Aqualuz foi desenvolvida durante o 1° ano do ensino médio e rendeu a Anna Luísa o prêmio Jovem Cientista. O projeto também ficou em 2° lugar em um programa de empreendedorismo universitário do Instituto TIM e foi selecionado para o HackBrazil, evento brasileiro que premia ideias empreendedoras de tecnologia.

“Espero que no futuro existam mais mulheres nas pesquisas nestas áreas. Quando recebemos o prêmio da HackBrazil, fomos a única equipe a ter uma mulher e ser de origem nordestina. Esse cenário tem que mudar”. Anna Luísa é da Bahia.

Durante a graduação em Biotecnologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Anna começou a alinhar seu projeto ao empreendedorismo, criando a empresa SDW (Safe Drinking For All). “Alinho o empreendedorismo e o trabalho de campo. Continuo com novas ideias, com projetos na área tecnológica. Mas meu lado cientista continua na água”.

A dificuldade em conseguir um professor para orientar seu projeto trouxe a necessidade de ser autodidata. “O desenvolvimento do projeto acabou sendo na linha ‘entre erros e acertos’. A falta de experiência colaborou, mas tudo isso foi importante para que eu aprendesse e tornasse o projeto melhor”.

produção científica brasileira deu um salto nos últimos 20 anos, em termos de quantidade. Mas, de acordo com um levantamento realizado pelo biólogo da Universidade de Brasília (UNB) Marcelo Hermes-Lima, com base nos dados abertos do Scimago, o aumento não reflete no impacto dos trabalhos.

“A ciência é apaixonante. Entender algo tão complexo, ter os dados e ver as transformações é maravilhoso. Não deixaria os obstáculos me tirarem isso”

A produtividade científica de um país é avaliada de acordo com as citações que os artigos recebem internacionalmente, e não pela quantidade de artigos publicados. Quanto mais citações um trabalho recebe, maior é a qualificação dele e a avaliação da produção científica do país.

Em 1998, o Brasil ocupava a 20ª posição do ranking dos países que mais publicavam. Em 2017, ocupava a 13ª.

As citações aos trabalhos acadêmicos brasileiros, no entanto, diminuíram, e hoje países como Argentina, Chile e Colômbia têm uma produção científica com maior impacto internacional que a nossa. Essa medição é feita com base na média do número de vezes em que um artigo é citado.

Enquanto um artigo publicado na Suíça (primeira colocada no ranking) em 2006, já recebeu em média 34,07 menções, um artigo brasileiro do mesmo ano recebeu 15,42.

Cortes e preocupação

Os cortes na educação preocupam a comunidade científica brasileira, principalmente em relação à diminuição de bolsas e verbas para a educação superior.

Em abril de 2019, o MEC anunciou um corte de 30% nos recursos de todas as universidades federais. O valor representa cerca de R$ 2 bilhões dos recursos discricionários (não incluem salário, referem-se a obras e à compra de equipamentos) das universidades.

corte total na educação foi de R$ 5,8 bilhões. O MEC afirma que são contingenciamentos, ou seja, se a economia voltar a crescer, os valores retornam às universidades e demais áreas em que foram congelados. 3.471 bolsas de pós-graduação foram bloqueadas e 2.724, congeladas.

“Com os cortes nas bolsas, as mulheres terão menos chances de desenvolver suas pesquisas. As mulheres pobres, principalmente, são as que mais sofreram com isso. Os cortes atuam como uma desculpa para limitar a nossa entrada”, comenta a física Márcia Barbosa.

O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) passou por um corte de 42% – cerca de R$ 2,1 bilhões. O Ministério da Ciência sofre com cortes e congelamento de verbas desde 2015, e em 2018 instituições de pesquisas alertavam para os danos ao desenvolvimento científico do país em caso de continuidade destas ações.

“Os cortes que estão sendo realizados anunciam o desmonte da estrutura científica que temos hoje”, esclarece a pesquisadora Moema de Castro.

Esta é a 1ª reportagem de uma série sobre mulheres na ciência.

Fonte-https://observatorio3setor.org.br/carrossel/mulheres-na-ciencia-os-desafios-e-conquistas-de-ontem-e-hoje/



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