Legenda da foto, Relação entre profissionais da saúde e pacientes deve ser guiada pela empatia
Agora seus estudos buscam ir além e entender a origem da doença. "Queremos mostrar que é possível prevenir a doença tratando a espiritualidade primeiro, por meio do perdão e da gratidão, além de reforçar outras atitudes positivas como solidariedade, compaixão, humildade, paciência, confiança e otimismo", diz ele, que não se importa com eventuais céticos no meio científico. "Se alguém diz que isto não é ciência está sendo dogmático, porque escolhe o que investigar".
Até 2019, antes da pandemia do novo coronavírus, as doenças cardíacas eram a principal causa de morte entre adultos no Brasil. Foram 116.766 óbitos em 2019 relacionados aos males do coração, informa o Ministério da Saúde. Segundo Avezum, já existem artigos e estudos sobre espiritualidade e covid-19 no mundo (eram 110 até o último dia 25 de abril, segundo registros do buscador PubMed, da National Library of Medicine, dos Estados Unidos). Mas os resultados ainda são inconclusivos, diz.
"Para combater o coronavírus, o melhor é não se expor e se valer da religiosidade e da fé para enfrentar os desafios do isolamento social", afirma.
O interesse de Avezum no tema começou com o trabalho da médica americana Christina Puchalski que, desde 1996, procura inserir o componente espiritual no cuidado com os pacientes. Christina dirige o Instituto George Washington para Espiritualidade e Saúde (GWish), da Universidade George Washington. Ela defende que os médicos levantem o histórico espiritual do paciente para entendê-lo de forma integral. O objetivo é identificar as crenças e valores que realmente importam ao indivíduo, e como isso atua na forma como ele lida com a doença.
"Se o paciente acredita que a meditação o acalma, o médico deve ter essa informação em mãos e recomendar que ele mantenha a prática, ao mesmo tempo em que toma a medicação", diz o médico Frederico Leão, coordenador do Proser do IPq. "É preciso adotar a prática espiritual que esteja em harmonia com as crenças de cada um, porque isso vai contribuir para o tratamento".
Pesquisar o impacto dessas práticas na saúde mental dos pacientes é o foco do IPq, que também promove cursos sobre como o abordar o tema nos consultórios.
Segundo Leão, até o início dos anos 2000, os médicos tinham muito receio em falar sobre o assunto, mesmo sendo o Brasil um país onde mais de 80% da população se declara cristã. "Muitos não sabiam - e talvez ainda não saibam - como fazer essa abordagem", diz ele. "É o caso do cirurgião que, antes da cirurgia, pede para rezar um Pai Nosso com toda a equipe e o paciente questiona: 'Por que isso, doutor, vou morrer?'".
Leão destaca as pesquisas do psiquiatra americano Harold Koenig, da Universidade Duke, para quem negligenciar a dimensão espiritual do paciente é como ignorar o seu aspecto social ou psicológico, ou seja, ele não é tratado de forma integral. "Koenig constatou que o pensamento positivo, a meditação e a oração não afetam só a mente, mas o organismo como um todo", afirma Leão, para quem essas práticas se tornam ainda mais essenciais em tempos de pandemia do novo coronavírus. "Só os muito alienados não estão revendo seu padrão de vida neste momento".
Pânico e ressentimento Helma Gonçalves do Nascimento Martins acordou se sentindo estranha naquela sexta-feira, 8 de janeiro. Aos 48 anos, a fisioterapeuta achou que a dor e o cansaço eram resultado do treino cardiovascular feito na véspera. Mas os sintomas do novo coronavírus vieram com força. "Tive febre, dor no corpo, perda de olfato, era um sintoma novo a cada quatro horas", diz. "Me faltava ar até para tomar um copo d'água". Com o marido e a filha caçula em casa, ela se isolou no quarto da criança. E aí teve início o pior dos sintomas: o pânico.
Legenda da foto, A espiritualidade vai muito além da religião e envolve nosso estado mental e emocional
"A ansiedade bateu muito forte, era o medo da morte a todo instante, não conseguia pensar em outra coisa, achava que eu não ia aguentar", diz ela, que foi monitorada pelo seu médico durante os 14 dias de tratamento. "Ele me dizia: 'Estou 100% com você, a gente vai vencer este vírus', e eu procurava acreditar. É uma doença em que você sente a morte ao seu lado e precisa estar sozinha".
O pior da covid-19 passou nos primeiros dez dias. Mas os sintomas continuaram por mais de um mês. "Eu sentia uma fraqueza muscular imensa, tontura", diz.
O tratamento com remédios foi encerrado e Helma começou a ser atendida pela tia do marido, uma terapeuta holística. Ela lhe aplicava massagens e passes de reiki. "Aquilo fortaleceu o meu espírito. Comecei a me sentir bem melhor e um mês depois já voltei a trabalhar o dia todo", afirma. Evangélica, ela acredita que a espiritualidade a ajudou na recuperação. "Você quer lutar, quer sobreviver e vem uma força, que você não sabe bem de onde, e te ajuda a buscar a luz em meio ao pânico, a superar os sentimentos ruins". Para ela, suas doenças foram agravadas pelo seu estado emocional. "Três meses antes do coronavírus, em outubro, sofri uma angina, um pré-infarto. Enfrentava uma crise conjugal e não conseguia perdoar. Depois, passei a ficar desesperada em relação ao futuro, ao trabalho, por conta da pandemia. A falta de perdão e de fé me abalaram demais".
O psicólogo Laerson Cândido de Oliveira ressalta o valor do amor, da oração, da positividade e da fé no futuro. "Costumamos ter muita solidariedade em relação a quem está distante de nós, a quem não conhecemos, mas somos incapazes de perdoar as menores faltas cometidas por pessoas do nosso convívio", diz ele, que dirige o Instituto Espírita Cidadão do Mundo (IECIM), em São Paulo.
Segundo ele, o ódio e o ressentimento aprisionam o indivíduo, levando-o a um estado doentio, enquanto o medo e o egoísmo paralisam impulsos positivos, no sentido de auxílio ao próximo.
Contra o negacionismo As práticas de massagem (ayurveda) e reiki, usadas por Helma no tratamento das sequelas da covid-19, integram a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPICs), adotada em 2006 pelo Ministério da Saúde. Hoje, a PNPICs engloba 29 recursos terapêuticos - muitos baseados em conhecimentos tradicionais como acupuntura, ioga, meditação, fitoterapia, homeopatia e quiropraxia, e outros mais recentes, como ozonioterapia e biodança. Atualmente, são oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em 54% dos municípios do país.
A adoção da PNPICs segue orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) que, em 1988, incluiu a dimensão espiritual no conceito de saúde multidimensional. Para a organização, espiritualidade é "o conjunto de todas as emoções e convicções de natureza não material, com a suposição de que há mais no viver do que pode ser percebido ou plenamente compreendido, remetendo a questões como o significado e sentido da vida, não se limitando a qualquer tipo específico de crença ou prática religiosa".
"A PNPICs pode fazer a grande diferença para a saúde da população, ao valorizar o conhecimento tradicional, as culturas regionais, amparada no aculturamento espiritualista, sobretudo a um baixo custo", diz o neurocientista Sérgio Felipe de Oliveira. "É a possibilidade de diálogo com a população", prossegue ele, para quem o diálogo entre ciência e espiritualidade nunca foi tão urgente.
"A ciência não pode se fechar em cima de si mesma, em um conhecimento hermético. Ela precisa ouvir e conversar com a população. Senão, quando nós precisamos da ciência, o povo não ouve. Aí surgem o negacionismo e as fake news", diz ele, que entre 2007 e 2014 ministrou a disciplina optativa Medicina e Espiritualidade na Faculdade de Medicina na USP.
Para Sergio Felipe, é fundamental que o médico crie uma relação de empatia com o paciente. "Tanto o povo brasileiro quanto o americano são religiosos, acreditam na força da oração e na proteção de Deus. O médico precisa valorizar a dimensão espiritual do paciente para integrá-la ao tratamento", afirma.
É neste sentido, por exemplo, que o médico deve explicar que o paciente não pode estar estressado quando for tomar o medicamento, porque a adrenalina vai atrapalhar a sua eficácia. "O estado de espírito do indivíduo interfere na farmacocinética, ou seja, na absorção e distribuição do remédio no organismo", diz. "Se a oração e a fé do paciente podem acalmá-lo, isso será importante para que a medicação surta efeito".
Risadas no centro cirúrgico Na cabeça do médico, fazer a junção entre o material e o espiritual não é tão simples. "Somos treinados a observar a dimensão física do paciente e, para a maioria, é difícil aliar este conhecimento técnico com a espiritualidade", afirma a médica pediatra Carolina Camargo Vince. "É preciso ser cuidadoso na abordagem, para que o paciente não pense que a cura dele depende de um milagre", diz ela, que integra a equipe de oncologia pediátrica do Hospital Israelita Albert Einstein e do Instituto do Tratamento do Câncer Infantil do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Legenda da foto, Cora vai rindo para a sala de cirurgia; espirituosa e alegre ,a menina sempre gostou de se enfeitar para ir ao hospital, onde brincava com quem estivesse perto
No dia a dia, Carolina costuma estender os cuidados à família da criança. "O diagnóstico de câncer afeta a saúde mental e emocional não só do paciente, mas das famílias, especialmente quando se trata de uma criança", diz ela. É comum em um primeiro momento haver um sentimento de revolta por parte dos pais, que se perguntam por que isso acontece com o filho deles, ou por que não foram eles o alvo da doença, no lugar das crianças, afirma.
"O câncer te coloca frente a frente com a questão da espiritualidade, é um momento de reflexão existencial", diz Carolina, para quem as crianças, em geral, desenvolvem sua espiritualidade de maneira plena. "Não passa pela cabeça delas desistir ou desesperar, elas vão procurar mecanismos dentro delas mesmas para se adaptar a um novo momento de vida, que envolve muitos remédios, picadas, desconfortos e às vezes longos períodos de internação".
Paciente de Carolina, Cora Grigio foi diagnosticada com leucemia quando tinha cinco anos e meio. "Para mim, até então, essa doença era sinônimo de morte", conta Patrícia Ferreira Silvério, mãe de Cora, que viu a filha encarar a situação com leveza.
"A Dra. Carol explicou para ela o que estava acontecendo de maneira didática e delicada", lembra. "E durante todo o tratamento, que durou dois anos e dois meses, minha filha só chorou uma vez". Espirituosa e alegre, Cora sempre gostou de se enfeitar para ir ao hospital, onde brincava com quem estivesse perto. "Deitada na maca, ela ia rindo com as médicas para o centro cirúrgico", lembra Patrícia, que hoje alimenta o Instagram da filha, uma modelo de 8 anos. "Ela começou a fazer campanhas quando ainda estava carequinha, tamanha a autoestima".
Mas para a mãe o processo nunca foi tranquilo. "Um dia, depois das primeiras sessões de quimioterapia, levei um susto quando um tufo de cabelo dela saiu na escova. Cora percebeu e começou a cantar para me alegrar", diz Patrícia. "Não aguentei e chamei meu marido, precisava chorar um pouco".
Para Patrícia, a doença da única filha foi capaz de lhe mostrar que ela não está no controle de tudo. "Eu sempre fui a que tomava a frente das coisas, a que resolvia tudo. Mas me deparei com algo que eu não conseguia resolver. Eu tinha que buscar paz para passar pelo sofrimento", diz ela, uma católica que se aproximou do espiritismo na época do tratamento de Cora.
Legenda da foto, A forma como o paciente e sua família lidam com a doença pode fazer diferença no resultado final do tratamento e na recuperação
Mentes perturbadas A pediatra intensivista Cíntia Tavares Cruz sempre quis tratar do tema espiritualidade com as famílias, mas não sabia como abordar. Ao longo do seu curso de medicina na Universidade de Campinas (Unicamp), o mais perto que ela chegou do assunto foi quando aprendeu sobre ética e humanização.
"O paciente que chega à UTI está em colapso do corpo físico. Existe alto grau de incerteza, tudo sai do falso controle. Depois de resgatá-lo, é preciso tratar de questões que o levaram até ali e vão além do físico", diz ela, que só ouviu falar sobre espiritualidade quando se especializou em medicina paliativa. Voltada a doentes crônicos, a especialidade busca proporcionar ao paciente e sua família uma qualidade de vida integral, envolvendo físico, social, emocional e espiritual. "Neste sentido, as práticas integrativas fazem toda a diferença".
Na opinião da fisioterapeuta Juliana Faria do Nascimento, as PNPICs contribuem para o equilíbrio energético e permitem melhorar a imunidade do indivíduo. "Por isso, o Conselho Nacional de Saúde pediu que este tipo de tratamento não fosse interrompido durante a pandemia", diz ela, que trabalha em Adamantina (SP) e tem entre os seus pacientes diabéticos, hipertensos e portadores de doenças cardiovasculares que viram aumentar seu grau de ansiedade e estresse durante o confinamento. "Uma mente perturbada não consegue evoluir na parte física", afirma.
Cíntia Cruz concorda. "A adoção de práticas integrativas ajuda a desbloquear a espiritualidade do paciente. Isso não vai acabar com o seu sofrimento, mas vai ajudá-lo a lidar melhor com este momento difícil, ao sair da inércia e da vitimização", diz a pediatra, que trabalha como intensivista no Hospital Infantil Sabará, em São Paulo, e como paliativista no Hospital das Clínicas.
Foi o que aconteceu com o pequeno Kaleb, de 10 anos. Vítima de sarcoma histiocítico, um tipo raro e agressivo de câncer, que se disseminou por todo o corpo, ele passou a ter contato no hospital com a meditação para controlar a dor. "Por vezes eu estava no quarto conversando com a médica e ele pedia silêncio para meditar", lembra a mãe de Kaleb, Fernanda Hochstedler.
"Deus não se esqueceu da gente" Legenda da foto, Fernanda (ao centro) com toda a família, antes da doença de Kaleb (à frente); "Deixá-lo ir, depois de tanto sofrimento, trouxe muita paz", diz ela
Foi a segunda vez que Kaleb teve câncer. Na primeira, quando ele ainda tinha 8 anos, foi diagnosticado com leucemia. Se incomodou com a perda de cabelo, mas respondeu bem ao tratamento ao longo do primeiro ano. Um dia, porém, começou a sofrer com febres altas e persistentes. Uma investigação profunda levou ao diagnóstico de sarcoma.
"Foi muito difícil dizer a ele que surgiu um novo câncer e que ele precisava passar por um transplante de medula", diz Fernanda. "Dissemos a ele que não sabíamos o final da história, mas que ele jamais estaria sozinho e que Deus não se esqueceu da gente", diz ela que, com o marido e outros quatro filhos, segue a Igreja Internacional do Calvário, de origem canadense.
O transplante foi feito em novembro de 2019. As sessões intensas de quimioterapia levaram a uma reação no pulmão e ele voltou a ser internado em 3 de março do ano passado. "Quando surgiu a pandemia, fiquei o tempo todo com ele no hospital, passei quase um mês sem ver meus outros filhos", diz Fernanda. Para suprir em parte a falta dos irmãos, a quem Kaleb sempre foi apegado, a mãe sugeriu que eles fizessem novos amigos no hospital - alguns mantidos até hoje.
"Quando você foca na vida da outra pessoa, você cria empatia e transforma a sua própria perspectiva", diz ela. "Isso nos ajudou a lidar com as emoções e a não nos entregarmos ao desespero".
O momento de dor profunda, porém, chegou. Kaleb precisou ser entubado em abril e, em 12 de maio de 2020, faleceu. Dois dias antes, sem perspectiva de melhoras, Fernanda e o marido questionaram se os irmãos queriam se despedir de Kaleb. Todos concordaram. O garoto permanecia sedado, mas os irmãos conversaram com ele. "O meu caçula disse: 'Vá para casa, Kaleb. Nós vamos mais tarde'", lembra Fernanda, que chegou a colocar o filho já morto no colo. "Deixá-lo ir, depois de tanto sofrimento, trouxe muita paz", diz ela, para quem Deus se tornou muito mais real depois de toda a experiência. "É claro que houve dor e desespero, mas a fé nos permitiu não permanecer lá e voltarmos a viver".
Fonte:https://www.bbc.com/portuguese/geral-56655826
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