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A SOMBRA EM NOSSA PERSONALIDADE E O ARQUÉTIPO DO BODE EXPIATÓRIO

 

A sombra em nossa personalidade e o arquétipo do bode expiatório


POR FREDERICO MORIARTY 

Caravaggio recriou o mito de Judith e Holofernes no quadro que abre este texto. Judith é viúva. Sua cidade foi invadida e há desesperança entre as gentes. Ninguém é capaz de derrotar o conquistador Holofernes. Utilizando da sedução e malícia, a viúva embriaga o soldado, penetra em sua alcova, onde termina por decapitar o poderoso homem. Judith é a sombra daquele povo, seu lado obscuro e talvez sombrio, mas que, com sua inteligência, força e perseverança divinas (afinal, a heroína judia recebe o comando do próprio Deus do Velho Testamento), enfrenta o indestrutível e o derrota com uma força desconhecida e subterrânea.

Caravaggio levou ao extremo o chiaroscuro. O equilíbrio entre luz e sombra adquiriu tal intensidade que formou uma escola, o Tenebrismo. Foi dessa escola artística que o filósofo Nietzsche tirou sua visão estética como um eterno conflito entre a mente apolínea (racional, exata, geométrica) e a dionisíaca (intuitiva e hedonística).

David e Golias. Caravaggio e chiaroscuro

chiaroscuro aparece na cena clássica do assassinato no filme Psicose de Hitchcock. Propositalmente temos um filme em preto & branco. Norman Bates (Anthony Perkins) é a mente perturbada, sombria. Seu principal hobbie é uma chave para entender a personagem: ele é taxidermista. Empalha a imagem externa dos animais mortos, assim como deixa de existir como pessoa. Marion (Janeth Leigh) é uma atriz loira de pela quase transparente de tão alva. Quando ela está ao banho no Bates Motel, os azulejos são brancos, a banheira é de louça branca, a cortina é transparente e por ela assistimos a chegada do assassino, uma imagem escura, amedrontadora com uma imensa faca nas mãos. O sombrio desfaz a claridade. Mas Hitchcock conhecia a alma humana como poucos. Bates não é o bom filho e o administrador cauteloso como pensamos. Trata-se de um psicopata. Marion não é a boa moça e funcionária exemplar que aparenta. É uma ladra e fugitiva. O ser humano não é apenas uma divisão estereotipada entre o bem e o mal. Ele é a completude do certo e do errado; do elevado e o subterrâneo; ele é norte e sul; é o começo e o fim de tudo; ou como propõe o IChing, somos a meia-noite que encerra o meio-dia.

Norman Bates e Marion. Cena de estúdio de “Psicose”

Jung, o fundador da psicologia analítica e amigo intelectual de Freud até 1913, defendia uma constituição diferente da mente humana daquela proposta pelo médico de Viena. Para ele, todos nós nascemos dotados da Self (tradução difícil, mas talvez algo como o “si mesmo”). A Self é a somatória de todos os nossos desejos, aspirações, vontades e necessidades. À medida que crescemos, nossa Self constrói o Ego. Por sua vez, o Ego recebe a influência da criação familiar, da escola, da religião, do trabalho, dos relacionamentos amorosos e assim vai moldando nossa personalidade e afastando-se da Self, vai selecionando aquilo que lhe interessa para a formação do nosso caráter. É uma escolha consciente. Ser irascível, ser cordato, ser magnânimo, ser fiel, ser amoroso. Ergue-se uma capa protetora sobre a Self e passa -se a interpretar um papel que cabe a nossa Persona. Papel este designado pelo lado consciente da nossa mente. Tudo aquilo que é desnecessário para o Ego vai para o submundo, para os grotões da mente humana. Ali estão nossos medos, nossas frustrações, nossos desejos reprimidos. Nessa região fica nosso Inconsciente. Um lado sombrio e desconhecido da personalidade.

Jung denominou essa região inconsciente como Sombra. Não é o lugar das coisas ruins ou desprezíveis, mas sim a parte que não gostamos de aceitar como nossa, a negação dos desejos que não cabem em nosso ego. São nossos esqueletos guardados no armário, como dizia Jung. A Sombra é o ponto de equilíbrio da psyché humana. Lidar com a Sombra, entender seus desígnios é parte essencial da vida. Caminhamos assim na existência, tentando equilibrar a Luz do Ego com as Sombras da Mente. Consciente e inconsciente se mesclam, se encontram e desencontram continuamente. Somos a confusão de uma miríade de opostos, como o lado feminino – Ânima – e o masculino – Animus. Todo ser é um pouco Ânima e outro Animus. Nenhum homem é 100% hétero. Ninguém jamais será totalmente boa pessoa. Em cada um de nós habita um monstro.

Representação da Ânima e Animus. Fonte desconhecida

No conto “O Espelho” de Machado de Assis temos cinco velhos amigos conversando. Um deles, o Jacobina, defende uma tese inusitada: o ser humano tem duas almas, uma a interna e a outra seria a alma externa. Jacobina explica que certa vez vestiu-se de alferes a pedido de uma tia. Transformou-se num homem sério, respeitado e altivo. Sempre mimado pela tia e seus serviçais. Sem o fardão de soldado tornava-se um homem reles, envelhecido e solitário. Um belo dia resolve vestir a roupa de alferes e subitamente toda a respeitabilidade voltara.

Jacobina se aproxima da divisão entre o Ego e a Sombra propostos por Jung. Existe o homem que cumpre um papel social: soldado, honesto, respeitável, religioso, virtuoso, valoriza a família. Um Ego que beira a perfeição. Ao mesmo tempo, há o ser sombrio e grotesco. A Sombra inconsciente, ou segunda alma como queria Machado. Outro aspecto da teoria junguiana pode ser percebido no conto a Enantiodromia. O conceito original veio do filósofo Heráclito. Segundo ele, o Devir (movimento) é sempre pendular. Hora pende para o lado da vida, noutra pende para a morte. Jung ressignificou o conceito. Para o médico suíço, a personalidade humana é uma busca de equilíbrio entre opostos, como visto antes. Temos um lado racional e outro intuitivo; somos extrovertidos ou às vezes introvertidos; somos lua e sol. O desequilíbrio é sinal de problema, como no filme “O feitiço de Áquila “, em que uma maldição faz com que dois amantes jamais se encontrem, pois são almas divididas. O cavaleiro é uma águia durante o dia e homem a noite; a dama é uma linda égua durante a noite e mulher durante a manhã. Os dois só se encontram por um breve instante no crepúsculo dos dias. Quando nossa personalidade pende apenas para um lado, normalmente o do Ego, temos a falsa impressão de que controlamos o mundo. O desequilíbrio é sinal claro de neurose. Ninguém consegue fechar hermeticamente seu armário. A Sombra é um Houdini que destranca todas as chaves, portas e fechaduras. Pior: não reconhecer a Sombra é viver num castelo de areia, pois no momento em que vier a onda certeira ela será devastadora, provocando traumas profundos, depressões, pânico, suicídio e em muitas das vezes um desequilíbrio brutal para o outro lado do pêndulo. Sabe aquele deputado homofóbico, que pede a morte dos gays e viados, até que um dia é preso numa orgia com homossexuais? É só um fruto natural da mente desequilibrada, a Enantiodromia proposta por Jung. Ou aquela mulher séria, recatada e do lar que nas tardes entediantes dentro da mansão burguesa em que habita dedica-se à prostituição? Como a personagem de Catherine Deneuve em “La Belle de Jour”. Um trauma, um fato corriqueiro, uma traição podem desencadear um processo psíquico que mergulha a pessoa perfeita na Sombra eterna.

Cena de estúdio de “Ladyhawke”

O caminho da vida é, portanto, por meio das Sombras e da Escuridão de nossa alma. A travessia é longa e muitas vezes dolorosa, mas necessária. Todos nós pecamos, todos nós temos desejos sórdidos, vontades sexuais escondidas. Fugir do desequilíbrio e da Enantiodromia é aceitar isso. Como na passagem bíblica de Jesus Cristo e Madalena. Cristo afirma o não julgueis ao perguntar aos homens e mulheres que estavam a apedrejar Madalena até a sua morte.

“Atire a primeira pedra quem nunca pecou”

Quem nunca pecou? Quem jamais pecou mais e verdadeiramente do que Maria Madalena? Somos pérfidos, maldosos, egoístas ao extremo. Não temos empatia por ninguém. Só temos força em apontar o dedo e atirar pedras, facas e palavras vis ao outro. Incapazes de aceitar as diferenças, queremos matar as Marias Madalenas do mundo.

E neste caso temos um arquétipo junguiano novo: o Bode Expiatório (leia sobre os Arquétipos Femininos AQUI). A história é pré-mosaica. Os pagãos, antes da lei hebraica, realizavam uma cerimônia religiosa em que todas as pessoas da tribo se reuniam em volta de um sacerdote e um bode escolhido. Aos poucos, todos os membros do grupo se dirigiam ao animal e diziam a ele os pecados que cada um cometera. Terminado o expurgo dos males, o sacerdote sacrificava o animal. O bode morreria e levaria junto com ele todos os pecados da tribo, servia como um receptáculo do mal. Expiava os pecados que não eram dele. Moisés derruba este e outros cultos e cerimônias pagãs para impor a lei de Jeová. Mas a ideia de alguém absorver o mal e expiar os pecados dos outros permanece no inconsciente coletivo de nossa sociedade. Políticos elegem os inimigos do povo. Professores escolhem o aluno-problema. Clubes de futebol demitem técnicos. Casais se esbofeteiam acusando um ao outro das próprias falhas e da incapacidade de aprender a conviver a dois. Moralistas pregam contra o homossexualismo, o aborto, o feminismo. Senhoras de família rejeitam as filhas lésbicas. O racismo estrutural tem um claro componente desse arquétipo. Desumanizar o negro é natural para um ego e uma sociedade doentia. O Holocausto judeu talvez seja o exemplo da mais doentia e devastadora neurose coletiva da história. Por quatro anos, muitos alemães mataram seis milhões de judeus, simplesmente por serem o receptáculo da vilania alheia.

Campo de Concentração Nazista

Outra forma de neurose coletiva é a identificação de algum membro de uma família como o Bode Expiatório. Todo mundo já ouviu a história da “ovelha negra” (que já traz o preconceito de cor no conceito). Todos os familiares, em graus distintos e em momentos díspares despejam todos os seus traumas, dores, sofrimentos e pecados no membro/ bode escolhido. Há uma construção de que a família é perfeita, as pessoas são socialmente aceitas e moralmente corretas. A ovelha desgarrada, ao contrário, não segue as regras de sucesso do grupo. Em geral são criativas, livres, espontâneas e inspiradoras, por um motivo bem simples, são personalidades que buscaram sua identidade no caminho das pedras encontrada no submundo da Sombra. Mentes que trabalharam seu inconsciente e retiraram seus esqueletos do armário. A função repressiva da familia é brutal. É necessário exterminar a Maria Madalena da casa, sob pena do Castelo ruir. Despejam toda sua maldade sobre o filho pródigo e muitas das vezes conseguem destruir sua personalidade de tanta virulência contra alguém tão autêntico. Assistimos isso no filme “Frances Farmer” que acompanha a história de uma atriz linda, carismática, livre e independente dos anos 20 e 30 nos EUA. A perseguição brutal da mãe é de tal monta que, incapaz de controlar a vida da talentosa filha, termina por autorizar uma lobotomia na atriz. O romance familiar não permite brechas. A questão que fica é como a ovelha negra poderá se livrar da projeção injusta e doentia de quem só sabe conviver consigo mesmo. Afinal, quantas mentes brilhantes não foram destruídas em nome de Deus, dos costumes e da familia?

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