Famílias são separadas na fronteira da Ucrânia com países vizinhos
RADOVAN STOKLASA/REUTERS - 25.2.2022Ucrânia, um grande desafio para o Ocidente.
Entrevista com Andrea Graziosi
04 Março 2022
“A guerra de Putin na Ucrânia é
um divisor de águas cuja dimensão histórica é equiparável ao colapso da União
Soviética em 1991. E, ainda mais do que a dissolução da URSS,
ela representa um desafio para o Ocidente que hoje deve se
reinventar.”
Autor de livros sobre a URSS traduzidos
em todo o mundo, fellow do Harvard Ukrainian Research
Institute, Andrea Graziosi é o
historiador italiano que estudou o genocídio ucraniano por obra de Stalin,
a quem é dedicado o livro “Lettere da Kharkov”, publicado em
1991 pela editora Einaudi.
A entrevista é de Simonetta Fiori,
publicada por La Repubblica, 01-03-2022. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Por que a guerra na Ucrânia marca um ponto de
virada?
Ela nos obriga a olhar para a realidade. E a sair
da bolha em que várias décadas de bem-estar e de paz nos encerraram. Putin é um “louco”
movido por um plano lúcido, mas preferimos ignorá-lo. Em vez disso, bastava
ouvir o seu “discurso”.
Qual é essa narrativa?
Há pelo menos 15 anos, ele vem teorizando a
reconstrução de uma grande potência eslava dominada pela Rússia e
baseada na ordem, hierarquia, ideologia iliberal e desprezo pelo Ocidente corrupto.
A sua retórica se alimenta de pedaços da história muito diferentes. Por um
lado, ele remonta ao nacionalismo grão-russo anterior a 1914. Por outro recupera a herança de Stalin ao
escolher a vitória soviética na Segunda Guerra Mundial como o
evento legitimador do novo Estado russo: uma guerra de libertação dos nazistas,
certamente; mas também – como Vasily Grossman nos contou – uma
guerra de opressão dos povos do Leste Europeu. A essas raízes
históricas, acrescenta-se a retórica da humilhação que o povo russo teria
sofrido depois do colapso da URSS.
O mito da nação humilhada move as guerras. Basta pensar no uso que Hitler fez delas.
Você está dizendo que havia todas as premissas para
uma nova guerra imperial?
A agressão da Ucrânia nasce
dentro desse “discurso” de czar refundador. Desde 2014, Putin tenta
conquistar um país ao qual não reconhece a autonomia: para ele, os ucranianos
são russos liderados por um governo ilegal construído pelos ocidentais após a
expulsão do seu emissário Yanukovych. Daí a retórica oficial
segundo a qual ele manda os tanques para libertar o povo dos governantes
“drogados” e “nazistas”. Mas a resistência dos ucranianos desmentiu a sua
ideologia: já se viu algum libertador rejeitado desse modo? Outra verdade
demonstrada por esta guerra é que, para existir, você deve resistir. A Ucrânia já
existia antes, mas até que ponto ela era realmente reconhecida pelos europeus?
De fato, éramos culturalmente subalternos à propaganda de Putin: só
víamos a Rússia e, relegado em um canto, “o país das
cuidadoras”. A resistência à agressão colocou a Ucrânia de
volta no mapa mental da Europa e além.
Esta guerra teve o efeito de nos precipitar
novamente no século XX: por um lado, o tirano; por outro, as democracias
ocidentais.
Na realidade, ela nos leva de volta ao início do
século XX, a uma época histórica anterior à Grande Guerra, quando
existiam as grandes potências e as relações internacionais ainda não tinham
conhecido o wilsonismo e o princípio da autodeterminação. A Rússia e
a Turquia permanecem prisioneiras desse esquema, de uma
política de anexações e divisões. Hoje, sobre a mesa de negociações, quer-se a
divisão da Ucrânia.
Um salto para trás além do século XX?
Por 70 anos, a Rússia viveu
separada da Europa. Quando a URSS entrou
em colapso, esperávamos que pudesse haver uma nova convergência com a Europa e
os valores do Ocidente. Mas esse processo fracassou por enquanto:
a ferida provocada por 1917 não
cicatrizou.
Nos últimos dias, tanto Putin quanto o presidente
Zelensky usaram uma palavra do século XX como “genocídio”. Que traços culturais
e psicológicos o genocídio de Stalin deixou na Ucrânia de hoje?
Em 1932, Stalin usou a fome para
esmagar a construção nacional ucraniana iniciada nos anos 1920. E, na memória
contemporânea dos ucranianos, o Holodomor é
a experiência que define o seu século XX, além de ser o fundamento da reconstrução
estatal de 1991. A partir dessa escolha, a Ucrânia foi forçada
a se apresentar como uma nação aberta, inclusiva, não étnica. Não é por acaso
que o presidente é judeu. E é interessante a contraposição dessa memória
vitimista e a memória russa, que, como vimos, se baseia na exaltação do poder.
Você defende que a guerra ucraniana representa hoje
um desafio maior do que em 1991. Por quê?
Naquela época, parecia que havia um Ocidente sólido:
bastava estar do lado certo do mundo para resolver todos os problemas. Mas hoje
não existe mais um modelo confiável: nos Estados Unidos havia Trump, na Europa sopram
os ventos soberanistas. Hoje temos que reconhecer que o Ocidente nascido
em 1945 a partir de uma Europa pequena e do gigante americano
não existe mais: é um objeto histórico deteriorado. Então, é preciso inventar
um novo Ocidente. Esta guerra nos dá a oportunidade para
repensá-lo. E eu espero que dê aos italianos um renovado senso de realidade de
que precisamos em matéria de energia, assim como de demografia ou dos grandes
planos econômicos lançados antes da guerra, em condições já distantes.
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