SONIA GOMES,ARTISTA PLÁSTICA MINEIRA: MEMÓRIAS DA IDENTIDADE RACIAL BRASILEIRA POR MEIO DE ESCULTURAS E OBJETOS TÊXTEIS

 

Sonia Gomes (Foto: Acervo Pessoal / Divulgação)

Sonia Gomes (Foto: Acervo Pessoal / Divulgação)

Sonia Gomes: memórias da identidade racial brasileira por meio de esculturas e objetos têxteis

Parte da série de entrevistas que antecipam o debate sobre o centenário da Semana de Arte Moderna de 22, a cineasta Sabrina Fidalgo conversa com a escultora mineira que vem revolucionando a arte através de esculturas de panos, bordados e lembranças que ressignificam memórias antepassadas

Sonia Gomes (@soniagomesarte) é a nossa quinta entrevistada, portanto, penúltima dos seis artistas afro-brasileiros que compõem essa série que problematiza a celebração do centenário da Semana da Arte Moderna de 1922, que ocorrerá no próximo ano. “O que é levar tanto tempo? Eu acho que levei o tempo que tinha que levar. Cada artista tem uma história e trajetória”, responde com firmeza e convicção a artista plástica mineira, ante à pergunta sobre sua estreia no mundo das artes somente aos 65 anos de idade.

Hoje, Sonia Gomes vive e trabalha em São Paulo, onde tem seu ateliê. Aos 73 anos de idade, ela se encontra em pleno vigor físico e artístico. Seu nome consta no panteão dos maiores das artes plásticas não somente no Brasil, como também no exterior. Em 2018 a artista teve suas primeiras grandes mostras institucionais monográficas no Brasil expostas no Museu de Arte de São Paulo (MASP) e no Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Niterói. 

Seus trabalhos também foram incluídos em mostras coletivas institucionais como Gwangju Biennale, Coreia do Sul (2021); Liverpool Biennial, Reino Unido (2021); 56ª Biennale di Venezia, Italia (2015); Turner Contemporary, Margate, Reino Unido (2017); Revival, The National Museum of Women in the Arts, Washington, EUA (2017); Art & Textiles – Fabric as Material and Concept in Modern Art, Kunstmuseum Wolfsburg, Alemanha (2013); Out of Fashion - Textile in International Contemporary Art | Kunsten – Museum of Modern Art, Aalborg, Dinamarca (2013), entre outros.

Sonia ainda é representada por duas grandes galerias norte-americanas, a Pace, de New York, e Blum & Poe, de Los Angeles, que trabalham em colaboração com sua galeria brasileira, a Mendes Wood DM, de São Paulo. Em 2019, Sonia Gomes participou de uma coletiva junto à pintora Marina Perez Simão no espaço temporário de Pace em East Hampton. Ainda esse ano, ela terá sua primeira individual com a Blum & Poe, em Los Angeles, seguida de sua primeira individual com a Pace em Manhattan, New York, em 2022.

Mas esses passos largos não vêm de agora, na verdade, eles vêm de longe, muito longe… Foi no início dos anos 1990, aos 45 anos de idade, que Sonia tomou uma decisão radical e sem precedentes em sua vida: abandonou a carreira de advogada para se dedicar a sua verdadeira vocação de artista. Para isso, ingressou na Universidade de Arte Guignard de Minas Gerais. Mas foi somente no ano de 2013 que ela participou de sua primeira mostra no grupo institucional A Nova Mão Afro-Brasileira, no Museu Afro Brasil, em São Paulo. E foi a partir desse momento que  sua carreira nas artes decolou.

Rodilhas na cabeça

Natural de Caetanópolis, pequena e antiga cidade têxtil de Minas Gerais, Sonia é o resultado da mistura entre uma mãe negra e um pai branco. Sua avó materna foi parteira, benzedeira e useira de rodilhas na cabeça. Por outro lado, da família de seu pai, herdou a manutenção das lembranças, das fotos e dos retalhos de tecidos.

E são essas memórias, de um Brasil profundo, que ajudaram a forjar tanto a identidade racial de Sonia, quanto sua identidade artística impressa até hoje em sua produção. Suas obras se transformam em objetos têxteis vivos, que além de tecidos, se utilizam de matérias-primas como madeira e pedra. Sua série de estruturas de pêndulos Acordes Naturais (2018), remete às formas de animais pendurados em videiras ou árvores. Outra obra sem título desse mesmo ano é um arco colorido de arame de tecido sobre madeira.

Sonia Gomes (Foto: Divulgação)

Sonia Gomes (Foto: Divulgação)

Pessoas do mundo todo, de todos os tipos, credos e religiões doam seus pertences pessoais à artista, de modo que ela possa ressignificá-los. São roupas, conjuntos de mesas, fragmentos de fantasias de Carnaval e até mesmo um vestido de noiva passa por um processo alquímico pelas mãos da artista.

“Sinto que quando as pessoas me dão esses itens, elas estão me concedendo uma grande responsabilidade em uma espécie de apelo, me pedindo para não deixá-los morrer”, disse ela em perfil publicado pelo The New York Times em agosto de 2020. E continua: " É como se as pessoas estivessem me dizendo: ‘dê à isso uma nova vida, não deixe isso morrer’. É algo tão precioso para aquela pessoa que ela quer que se torne algo maior, algo eterno.”

E para além de ressignificar a memória através das texturas, cheiros e cores, o trabalho de Sonia Gomes resgata, sobretudo, a experiência e a cultura afro-brasileira, que continuam a ser diminuídas e apropriadas no último país do mundo ocidental a abolir a escravidão. Em suas obras, basta um olhar mais atento, para sentir a herança ancestral em elementos que remetem diretamente ao legado da cultura africana no Brasil. Também é possível perceber o entrave que a artista, enquanto mulher negra brasileira, travou ao longo de sua vida contra o preconceito e racismo estrutural. São torções e tensões em suas esculturas que dicotomizam com uma suposta e almejada ideia de paz.

Antropofagia versus Racismo Indigesto

“Oswald de Andrade foi um marco para a sociedade brasileira; ele decidiu escrever sobre os valores culturais de um país que há poucos anos atrás ainda comercializava negros como escravos.  Era o atraso do colonialismo que o incomodava;  daí  a  ideia  antropofágica de devorar outras culturas e reelabora-las segundo as idiossincrasias do povo brasileiro. Para João Cézar de Castro Rocha:

O  gesto  antropofágico é uma  forma criativa de assimilação de conteúdos que, num primeiro momento, foram impostos. Sem mais nem menos: impostos. A antropofagia pretende transformar a natureza dessa relação através da assimilação volitiva de conteúdos selecionados: contra a imposição de dados, a volição no ato de devorá-los (ROCHA, 2011, p. 666).’

Peça de Sonia Gomes (Foto: Divulgação)

Obra de Sonia Gomes (Foto: Divulgação)

A antropofagia não se resume em uma repetição da cultura do colonizador para um linguajar brasileiro. É nesse sentido que o antropófago oswaldiano buscará escancarar, por meio da  literatura, as várias ancestralidades de uma civilização tipicamente  nossa; uma civilização cujos valores culturais foram obnubilados pelas imposições coloniais. A aposta de Oswald de Andrade  fez-se, portanto, genuína. Todavia, pecou por não conseguir encontrar uma correspondência com uma realidade brasileira composta por negros que continuaram trajando máscaras brancas.

Se a escravidão puniu e privou as pessoas negras de manifestarem a sua cultura em solo  tupiniquim, a abolição não permitiu que elas participassem ativamente da devoração. O racismo permaneceu indigesto! Nesse cenário segregacionista, a cultura negra não digerida transformou-se em resistência; resistiu sob as vestes da negritude; a negritude que, segundo Munanga possui a seguinte origem:

A negritude nasce  de um sentimento de frustração dos intelectuais negros por não terem  encontrado no humanismo ocidental todas as dimensões de sua personalidade. Nesse sentido, é uma reação, uma defesa do perfil  cultural do negro(…)  uma  recusa da assimilação colonial, uma rejeição política, um conjunto de valores do mundo negro, que devem ser reencontrados, defendidos e mesmo repensados. Resumindo, trata-se primeiro de proclamar a originalidade da organização sociocultural dos negros, para depois defender sua unidade através de uma  política de contra-aculturação, ou  seja, desalienação autêntica (MUNANGA apud ROCHA, 2015, p. 117).’”  trecho do artigo acadêmico de Charles Nunes Bahia, Mestre em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; “Apropriação Cultural Antropofágica e as Máscaras Brancas do Racismo Indigesto” publicado em 2018 pela Complexitas - Revista de Filosofia Temática.

Agora com vocês, Sonia Gomes!

VOGUE: Como era a relação com a arte na sua infância? Quais foram as suas influências e referências?
Sonia Gomes: Quando jovem, em um ato de rebeldia, comecei a customizar minhas roupas, criar minhas bijouterias, confeccionar minhas bolsas e acessórios. Eu modificava tudo. O meu corpo era o suporte que usava para comunicar. Sempre fui muito inconformada com o que estava pré-estabelecido. Creio que já era o apelo da arte, mas não tinha essa consciência.

Esse impulso de modificar tudo que vejo me acompanha desde sempre.

Sonia Gomes  (Foto: Pablo Saborido / Divulgação)

Sonia Gomes (Foto: Pablo Saborido / Divulgação)


Seu trabalho é marcado por uma busca ancestral na reconstrução das lembranças familiares, pertencimento e memória. Por que esse tema te atravessa tanto?
A memória no meu trabalho tem a ver com as histórias dos objetos que me são entregues por pessoas conhecidas. Me interessa as marcas do tempo, do corpo, da memória contidas nas roupas, toalhas, tecidos e objetos em geral.  Minha busca é estética e poética.

Vindo de uma família mineira diversa – pai branco e mãe negra – como se deu sua percepção de mundo em relação a consciência de raça e cor? Como isso se reflete em seu trabalho?
Nunca tive dúvida de que sou negra. Reconheço a  importância da representatividade negra inclusive para que hoje eu chegasse até aqui com meu trabalho. No entanto, meu trabalho não tem essa objetividade de representar algo, situação e/ou movimento. É claro, que o que vivemos reflete em nossa criação, mas eu tenho um processo criativo que não é figurativo, não começo um trabalho com objetivo de representar isso ou aquilo.

Tenho um processo criativo buscando sempre entender a materialidade e as relações que o objeto apresenta até um caminho de abstração, é muito intuitivo. E minha obra é aberta a interpretações as pessoas atribuem significados e relações diversas.

Qual o seu objetivo enquanto artista?
Fazer o que faço e me manter viva.

Fonte:https://vogue.globo.com/Vogue-Gente/noticia/2021/10/conheca-sonia-gomes-artista.html


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