'ENCICLOPÉDIA NEGRA': CONHEÇA O LIVRO QUE RELATA VIDAS NEGRAS E COMPILA REPRESENTAÇÕES CRIADAS POR 36 ARTISTAS

Capa de 'Enciclopédia Negra' (Foto: Divulgação / Cia das Letras)

Capa de 'Enciclopédia Negra' (Foto: Divulgação / Cia das Letras)

'Enciclopédia Negra': Conheça o livro que relata vidas negras e compila representações criadas por 36 artistas

Beta Germano apresenta os detalhes da nova publicação 'Enciclopédia Negra' e compartilha a história de 4 mulheres que merecem ser reconhecidas e lembradas

Não faz muito tempo que um artista brasileiro me falou que até hoje, quando ele entra num restaurante, as pessoas guardam os celulares. Apesar de ter plena consciência do racismo estrutural desenvolvido e impregnado na cultura brasileira, aquele relato me abalou completamente. Tentei não desmoronar e seguir a entrevista. Pouco depois, gritei mentalmente comigo mesma “Está chocada por que?! Você vive em que planeta? No de Pollyanna? Você algum dia acreditou no mito da democracia racial? É claro que esse tipo de violência acontece todos os dias”. 

Hoje acho que aquela reação era um reflexo da própria forma como o racismo se estruturou por aqui: uma coisa é ver/ler uma estatística sobre a escravidão e as lutas por liberdade , outra coisa é se deparar  com narrativas da vida real - com nomes, sobrenomes, rostos, passado e sonhos para o futuro. Há um grande silêncio que habita boa parte dos documentos e livros brasileiros em relação à população negra que por aqui viveu, escravizada ou liberta, durante muitos anos. A violência cotidiana vivida por esses personagens até hoje toma diferentes formas e acontece em diversos níveis e uma delas é o próprio apagamento.

Ciente dessa dupla morte, a física e a da memória, os autores Jaime Lauriano, Flávio dos Santos Gomes e Lilia Schwarcz começaram a criar, em 2014, uma grande Enciclopédia Negra, editada pela Cia das Letras, lançada esta semana. Relatam as histórias de ícones - como Chica da Silva, Itamar Assumpção, Rubem Valentim, Chico Rei e Chiquinha Gonzaga - ao lado de anônimos cujas vidas precisamos conhecer, urgentemente.

Vitória, Catarina e Josefa: VOGUE (Foto: Elian Almeida / Divulgação)

Vitória, Catarina e Josefa: VOGUE (Foto: Elian Almeida / Divulgação)

Foram pessoas que se agarraram ao direito à liberdade; profissionais liberais que romperam com as barreiras do racismo; esportistas que desafiaram as amarras de seu tempo; mães que lutaram pela alforria de suas famílias; professoras que ensinam seus alunos a respeito de suas origens; indivíduos que se revoltaram e organizaram insurreições; curandeiros e médicos que salvaram doentes; músicos que criaram e expandiram maneiras diferentes de fazer cultura; ativistas que escreveram manifestos importantes, fundaram associações e jornais; religiosos que reinventaram outras Áfricas no Brasil.

Se vidas negras importam, elas não podem mais ser contadas apenas por meio de números. Se a "moda" é ser decolonial, é preciso saber que este não é um conceito novo, a voz negra grita no Brasil há muito tempo. Como Carlos de Assumpção afirma: "Senhores o sangue dos meus avós que corre nas minhas veias são gritos de rebeldia.". Assumpção é apenas um entre tantos que nunca parou de gritar. "Restabelecer a trajetória desses mais de 500 personagens significa tirá-los das estatísticas ou dos registros que não lhes conferem identidade ou singularidade e reconstruir seu passado, nomeando, assim, a violência de nosso presente e também a atuação incansável desses que foram verdadeiros protagonistas da nossa história", escrevem os autores.

Conheça a vida de Amálias, Benedita, Chicas, Celinas, Franciscas, Iracemas, Joanas, Marieles Rosas, Teresas e Zeferinas.

Para retratar alguns desses personagens, que nunca foram fotografados ou desenhados,  os autores convidaram 36 artistas plásticos negros cujas obra estarão expostas na Pincacoteca de São Paulo a partir do mês que vem, maio de 2021.  Confira abaixo 4 mulheres representadas por 5 artistas:

Caetana nossos nãos (Foto: Juliana dos Santos / Divulgação)

Caetana nossos nãos (Foto: Juliana dos Santos / Divulgação)


1. Caetana por Juliana dos Santos
Vale do Paraíba, São Paulo


Foi uma escravizada que não se dobrou às imposições senhoriais. Era mucama e foi obrigada a se casar por seu proprietário, o fazendeiro capitão Luís Mariano de Tolosa. Ela tinha 17 anos e seu esposo, Custódio, que tinha uns "vinte e tantos", trabalhava como alfaiate. Ambos faziam parte da "elite de escravizados" já que suas ocupações lhes facultavam acesso à casa grande, mas isso não quer dizer que viviam longe da senzala. Caetana não aceitou a vida imposta pelo proprietário e gerou um processo para anulação do casamento. 

Catarina Cassage (Foto: Panmela Castro / Divulgação)

Catarina Cassage (Foto: Panmela Castro / Divulgação)


2. Catarina Cassange por Panmela Castro
África


Era comum que muitas mulheres escravizadas fugissem quando engravidavam tanto para ter um parto mais tranquilo quanto para impedir que sua prole continuasse escravizada ou fosse separada por venda senhorial. Catarina foi uma delas. Seu proprietário, Manuel da Rosa, divulgou no Diário do Rio de Janeiro que havia escapado grávida de 4 meses. Marcas corporais, traços e personalidade foram detalhadamente descritos. Ela conseguiu ficar um ano foragida, sendo capturada em 1839. Quem lhe ajudou foi o liberto Aleixo, um africano mina que tinha o ofício de barbeiro. Ela conseguiu ter o filho durante o pouco tempo em liberdade, o José.

Ana de Jesus (Foto: Jackeline Romio / Divulgação )

Ana de Jesus (Foto: Jackeline Romio / Divulgação )


3. Ana de Jesus, por Jackeline Romio
Ouro Preto


Muito provavelmente Ana conquistou a liberdade pelo acúmulo de ouro encontrado nos rios da província de Vila Rica, em Minas Gerais. Com a mineração alguns podiam enriquecer rapidamente e comprar alforrias - apenas 10% conseguiram. Não se sabe ao certo como Ana ganhava a vida, mas ela deveria ser abastada a ponto de manter sua própria escravaria. Ela se casou com Tomás de Freitas e o relacionamento duradouro prova que é falha a tese que dizia que os escravizados, de forma geral, não apresentavam uniões estáveis.  

Francisca Luiz: Quando o segredo é revelado (Foto: Castiel Vitorino / Divulgação )

Francisca Luiz: Quando o segredo é revelado (Foto: Castiel Vitorino / Divulgação )


4. Francisca Luiz, Castiel Vitorino
Salvador, Bahia

Francisca era uma negra natural do Porto, em Salvador; sabia "ler a cartilha"; e, tinha uma "irmã mulata", filha de sua mãe com um homem branco.

Foi abandonada pelo marido, Domingos Soares, e foi denunciada por "dormir carnalmente com Isabel Antônia". Oito meses depois da denúncia, em 14 de setembro de 1592, Francisca foi chamada para declarar "todas suas culpas". Ela confessou que havia 13 anos mantinha uma "amizade" com Isabel, "mulher que não tem marido, que diziam que veio degredada do Porto por usar do pecado nefando com outras mulheres (...) ficou em sua casa um mês quando pecou com ela o dito pecado nefando algumas vezes em diferentes dias, pondo-se uma em cima da outra".

Francisca foi, talvez, a única mulher condenada pela Inquisição, no Brasil, por lesbianismo. No entanto, como Isabel já havia falecido na época, o Santo Ofício resolveu não castigá-la com desterro.

Fonte:https://vogue.globo.com/Vogue-Gente/noticia/2021/04/enciclopedia-negra-livro-relata-vidas-negras-e-compila-representacoes-criadas-por-36-artistas.html



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