Os bilionários e suas estripulias desumanizantes
"Os críticos de tecnologia não deveriam
acreditar nas fantasias divulgadas que pessoas como Elon Musk vendem;
o controle da mente não está mais perto do que qualquer um dos
sonhos do passado futurista, como carros voadores ou socialismo",
escreve Danielle Carr, doutoranda na Universidade de Columbia e
escritora, em artigo publicado por The Baffler e reproduzido
por Outras palavras, 20-07-2021. A tradução é de Gabriela
Leite.
Uns vão ao espaço, outros querem enfiar coisas na
sua cabeça. Neuralink, de Elon Musk, tenta
conectar cérebros a computadores. Tecnologia, porém, existe há 56 anos… Sua
“inovação” atual: capturar mais dados, sem que você sequer perceba.
A decepção assume duas formas. A primeira nos
permite manter a ilusão em relação ao objeto de desejo, que simplesmente saiu
do controle ou talvez tenha se voltado contra nós; a segunda revela que, desde
o início, aquilo em que acreditamos nunca foi real.
Diante da possibilidade de escolher entre dois
modos de decepção com relação ao futuro da tecnologia, as crianças mimadas da
era espacial e seus incompreendidos problemas de millenial se veem tentados
pelo conforto do primeiro tipo. Essa decepção manifesta que não é que os
jetpacks e o teletransporte que lhes foram prometidos fossem uma fantasia, mas
que tais tecnologias emergirão em sua forma sombria, oferecidas pelos senhores
do Vale do Silício. É melhor ser traído do imaginar que o próprio
desejo tenha sido uma ilusão desde o início; a tal ponto que, se não
vamos chegar a Marte, pelo
menos outra pessoa o fará.
Do download de memórias e dos escravos digitais
do Black Mirror ao
tráfico biológico de Blade Runner, mesmo as
visões mais distópicas do triunfo da tecnologia são preferíveis à melancolia
de Alphaville (1965), de Jean-Luc Godard, um filme
de ficção científica de baixo orçamento rodado nas ruínas futuristas da Paris
modernista. Não há tecnologias deslumbrantes em Alphaville, nem
mesmo as malignas. No entanto, há vestígios de uma arquitetura deteriorada que
foi construída quando as pessoas imaginavam que o futuro seria diferente; isso,
além de um supercomputador que observa todos os nossos movimentos. O futuro se
parece com o presente, só que pior.
Nossa situação atual é mais parecida com Alphaville do
que com Black Mirror: em meio a um agravamento do colapso ecológico
e das infraestruturas, a única tecnologia que parece estar em constante
atualização são os dispositivos móveis, que oferecem uma fuga para o virtual.
Tudo está desmoronando por engano, exceto o seu iPhone, que se deteriora por
projeto. Dada a falta de opções, até as alternativas oferecidas por um ser
maligno podem parecer um alívio temporário.
Isso poderia explicar a credulidade com que as
declarações de Elon Musk sobre
o Neuralink têm sido
recebidas pela imprensa, mesmo por aqueles que se consideram seus críticos. Na
primeira demonstração pública da secreta empresa de implantes neurais, Musk apresentou
um estudo com um conjunto de porcos que nos dois meses anteriores tinham vivido
com um protótipo do dispositivo Neuralink inserido em seus
dentes. Diante de um slide que mencionava doenças que incluíam vício, perda de
memória, cegueira, ansiedade e paralisia, Musk argumentou que
as doenças foram causadas por “sinais elétricos que os neurônios enviam ao
cérebro”. Portanto, “se esses sinais forem corrigidos, tudo, da perda de
memória à depressão, pode ser consertado”. Mais tarde, em uma fala elaborada
demais para ser espontânea, ele disse que o dispositivo deveria ser
“considerado como um smartphone embutido no crânio”.
Nossa situação atual é mais parecida
com Alphaville do que com Black Mirror: em meio a um agravamento do colapso
ecológico e das infraestruturas, a única tecnologia que parece estar em
constante atualização são os dispositivos móveis - Danielle Carr
Em sua versão atual, o “Link” é um chip do tamanho
de uma moeda de um dólar implantado rente ao crânio e preso a fios de eletrodos
flexíveis contendo 1.024 canais “costurados” através do córtex, a camada mais
externa do crânio. O chip comprime informações sobre o cérebro coletadas pelos
eletrodos e identifica padrões ao ouvir as explosões de atividade elétrica
conhecidas como “picos” que ocorrem quando um neurônio é ativado. Quando o
dispositivo emparelha o pico in vivo com seus modelos codificados, ele pode
reduzir o “ruído” de um cérebro vivo cacofônico a um “sinal” digital pequeno o
suficiente para ser transmitido por uma interface de largura de banda limitada,
como o Bluetooth.
Essas palavras talvez impressionem, mas para os
padrões atuais de neuromodulação, o Link é decepcionante.
Cientistas registram picos neuronais no cérebro desde 1868 e usam eletrodos
internos conectados a computadores desde 1951. A cascata de tons musicais no
estilo Aphex Twin que Musk reproduziu na
demonstração, representando “sinais em tempo real” transmitidos pelo Link,
qualquer pessoa durante a sua pausa para o almoço, com um programa de
computador capaz de atribuir uma nota musical a um valor numérico, pode criar.
De acordo com Andrew Jackson, professor de interfaces neurais da
Universidade de Newcastle, 1.024 canais não representam nada de extraordinário,
e o fato de o aparelho poder prever aproximadamente o movimento de um porco ao
caminhar não é novo — já foi inclusive publicado. Não há, ainda, novidade no
que diz respeito a objetivos básicos de curto prazo do Neuralink: em 2013 foi
lançado um dispositivo de neuromodulação, chamado NeuroPace,
que já é capaz de detectar a atividade cerebral e intervir em circuitos neurais
em tempo real para prevenir convulsões.
Portanto, a apresentação espalhafatosa era teatro
científico, não ciência. A ostentosa exposição foi calibrada para dar
plausibilidade à visão de longo prazo de Musk, uma fábula de
ficção científica mais ou menos assim: o Neuralink produzirá
um dispositivo de neuromodulação voltado para o consumidor
capaz de regular qualquer doença psicológica ou neurológica, ou mais
especificamente, aumentar a capacidade do cérebro com a computação, face a uma
suposta ameaça iminente de uma Inteligência Artificial sobre-humana. Ele será
implantado por meio de um procedimento automatizado, que pode ser realizado
durante a hora do almoço, tão simples quanto a cirurgia Lasik, que
dispensa as taxas dispendiosas de um cirurgião e um anestesista, tornando-o
acessível a qualquer pessoa. O sistema será retirado do cérebro e atualizado de
tempos em tempos, como um telefone.
Em sua pressa para levantar as questões políticas e
éticas óbvias que tal tecnologia apresenta, a maioria dos críticos do
dispositivo comprou a premissa de que Musk poderia fazer
o que ele promete com credibilidade. Se a descrição acima soa como “controle da
mente” ou “suicídio da mente”, é porque supõe-se que seja apresentado assim. É
melhor, para Musk, falsamente admitir durante uma sessão de
perguntas e respostas que talvez suas aspirações soassem “como um episódio do
Black Mirror” do que reconhecer que suas afirmações sobre como o dispositivo
funciona poderiam ser descartadas, por serem propaganda para agradar
investidores.
***
Se o sistema Neuralink não é
particularmente inovador, tampouco o é seu horizonte imaginativo. O fato de a
tecnologia ainda não existir evidencia formidáveis obstáculos técnicos e
regulatórios no horizonte da suposta inovação histórica que Musk apresenta.
Seu lançamento está longe de ser o primeiro a fazer afirmações elaboradas sobre
a remodelação da natureza humana por meio de interfaces de computação do
cérebro, desde que os cientistas neurológicos começaram a trabalhar com
computadores em meados da década de 1950.
A malfadada encenação de Elon Musk com os
porcos ciborgues foi, no mínimo, uma versão mais decepcionante do que o
espetáculo público que, em 1965, o neurofisiologista de Yale, José
Delgado, deu em uma tourada em Córdoba, na Espanha.
Esse evento foi registrado em uma importante reportagem de capa do New
York Times:
“A luz do sol da tarde caía sobre as altas
barreiras de madeira em direção à arena. quando o bravo touro se lançou sobre o
‘matador’ desarmado, um cientista que nunca havia enfrentado um animal
daqueles. No entanto, os chifres do animal que atacava nunca alcançaram o homem
por trás do manto vermelho. Momentos antes que isso acontecesse, o Dr. José
Delgado, o cientista, apertou um botão em um pequeno rádio transmissor em
sua mão e o touro freou. Então ele apertou outro botão no transmissor e o touro
obedientemente virou para a direita e saiu trotando.
O touro obedecia às ordens que seu cérebro recebia
por meio de estimulação elétrica – por sinais de rádio – em certas regiões
onde, no dia anterior, haviam sido implantados cabos finos, sem dor.”
O Times disse com entusiasmo que
esta foi “provavelmente a demonstração mais espetacular já feita de modificação
deliberada do comportamento animal por meio do controle externo do cérebro”.
Delgado não
era uma figura marginal e era cético em relação aos lobotomistas que, na época,
eram aceitos nas pesquisas convencionais sobre o cérebro; ele sentia que
estavam invadindo grosseiramente sua magnífica arquitetura. Na vanguarda dos
estudos científicos sobre o cérebro, em meados do século XX, foi uma estrela em
ascensão do que então se chamava neurofisiologia.
Depois de ser nomeado o mais jovem ganhador do prêmio mais importante de ciência
do cérebro da Espanha, ele estudou em Yale com o renomado
neurofisiologista John Fulton e, logo em seguida, conseguiu um
cargo de professor e ganhou vários prêmios de prestígio em instituições como
a Fundação Guggenheim. Na década de 1950, Delgado começou
a construir métodos para estimular e registrar o cérebro vivo, desde tentativa
de encontrar correlatos fisiológicos para os movimentos à tentativa de mapear
mecanismos de controle neural para estados subjetivos como fome, desejo sexual,
prazer, raiva e motivação.
A demonstração do touro foi seu momento de
destaque, quando apresentou seu “Stimoceiver”, um implante neuronal
controlado por radiofrequências que poderia estimular as partes do cérebro onde
fosse implantado. Nos anos seguintes, Delgado trabalhou para
adaptar o Stimoceiver aos humanos. Em 1969, ele publicou os
primeiros resultados usando fundos de pesquisa fornecidos pela Força Aérea dos
Estados Unidos, pelo Office of Naval Research e pelo Serviço de Saúde Pública
dos Estados Unidos.
A arquitetura básica do dispositivo era muito
semelhante à do Neuralink, embora tivesse menos pontos de contato
para os eletrodos. O Stimoceiver acoplava até quarenta
eletrodos intracranianos, implantados em todo o cérebro, com um transmissor e
receptor de ondas de rádio conectado à cabeça do paciente. O amplificador na
cabeça do paciente recebia os sinais dos eletrodos de profundidade para
controlar a frequência do transmissor, enviando sinais sem fio para as entradas
de um dispositivo de gravação eletroencefalográfico e um gravador de fita
magnética localizado a até 30 metros de distância do paciente. Simultaneamente,
as conversas e atividades dos pacientes foram gravadas com equipamento de som.
O objetivo era descobrir “correlações entre padrões elétricos [no cérebro] e
manifestações comportamentais”, a fim de fornecer à equipe médica informações
sobre o alvo neural mais eficaz para a psicocirurgia para
cada paciente. Os padrões neurais foram analisados por um computador para
determinar qual região neuronal correspondia a cada determinado comportamento.
A malfadada encenação de Elon Musk
com os porcos ciborgues foi, no mínimo, uma versão mais decepcionante do que o
espetáculo público que, em 1965, o neurofisiologista de Yale, José Delgado, deu
em uma tourada em Córdoba, na Espanha - Danielle Carr
À medida que os jornais e a televisão cobriam seu
trabalho, muitas vezes usando fotos e imagens de divulgação de seu laboratório,
começaram a sair artigos sugerindo que Delgado estava
desenvolvendo um “controle mental” capaz de transformar radicalmente as emoções
e a subjetividade. Delgado cortejou a mídia para dar essa
impressão; fazendo um comentário bem a seu estilo, em um artigo escrito para a
imprensa popular, em 1959, ele declarou que “animais e humanos podem ser
controlados como robôs, apertando botões”. Com a publicação de seu livro, de
1969, Physical Control of the Mind: Toward a Psychocivilized Society (Controle
Físico da Mente: Rumo a uma Sociedade Psicocivilizada, em tradução
literal), Delgado expôs defendeu a adoção da engenharia
humana, por meio da reprogramação do cérebro. Tudo está em evolução permanente,
argumentou; em seu próximo passo, a humanidade deve aproveitar a tecnologia
neural para alcançar sua própria renovação a serviço do avanço da espécie, em
vez de sua própria aniquilação por meio de horrores tecnológicos como a bomba
atômica.
Se a sociedade psicocivilizada de Delgado coincide
com a aspiração de Musk de prevenir a obsolescência humana
sincronizando o cérebro com a inteligência artificial,
ela pode ser melhor entendida como um investimento político do que uma
coincidência. Como um espanhol culto, liberal e antifranquista ferrenho, Delgado imaginou
a engenharia humana como uma consequência natural da governança
social-democrata, não muito diferente das campanhas de habitação pública de Le
Corbusier ou de vacinação estatal. Portanto, é apropriado afirmar que o
movimento antipsiquiatria dos anos 1970, que tomou Delgado como
seu arqui-inimigo, estava ligado exatamente às mesmas sensibilidades
libertárias que, como o historiador Fred Turner demonstrou, acabariam por dar
origem à política do Vale do Silício.
Mas o erro do movimento antipsiquiatria em relação
a seu terrível medo de Delgado é, ironicamente, onde Musk está
aproveitando para afirmar que o controle da mente já chegou. Simplificando, é
muito mais fácil manipular as funções motoras do cérebro do que influenciar
(quanto mais controlar) pensamentos e sentimentos, e obter o domínio técnico do
movimento corporal não significa que o controle da mente esteja iminente.
***
O espetáculo de Delgado com o
touro foi baseado em um truque fundamental. Embora afirmasse ter encontrado os
mecanismos de controle da motivação e da subjetividade do animal, a explicação
era muito mais simples: o dispositivo foi implantado em uma área motora do
cérebro que impossibilitava o touro de continuar avançando. Mas o teatro
funcionou. O público estava convencido de que o controle da mente estava no
horizonte, enquanto na realidade o implante apenas interferia no movimento
físico.
Os correlatos neurais do controle motor são fáceis
de localizar, são encontrados vasculhando o cérebro e zapeando até que a
resposta desejada seja alcançada. É muito mais difícil, senão impossível, fazer
o mesmo com sentimentos de origem social como “tristeza” ou “trauma”. Portanto,
não é surpreendente que as primeiras aplicações previstas para o Neuralink sejam
para distúrbios do movimento, como paralisia. Para uma empresa mergulhada no
caos interno, descrita por um ex-funcionário como dividida por rotatividade
frequente e mudanças de estratégia extremamente confusas, direcionar os
distúrbios do movimento é um alvo felizmente fácil, que tem a vantagem de já
ter sido atingido por muitas outras equipes de pesquisa.
Quanto à possibilidade de o Neuralink dar
o salto da aplicação motora para a aplicação psicológica, um emaranhado de
obstáculos técnicos e normativos se interpõe no caminho. Por um lado, o robô
cirúrgico que ele usa só consegue costurar filamentos de eletrodos finos e
flexíveis na superfície do cérebro, que controla em grande medida a sensação
física e motora; falta a capacidade de implantá-los em estruturas mais
profundas abaixo do córtex. Como as experiências subjetivas e emocionais
envolvem estruturas cerebrais profundas, é provável que não seja possível
influenciar emoções ou doenças mentais apenas a partir do córtex.
De acordo com Alik Widge, líder
nacional em estimulação cerebral para transtornos psiquiátricos, qualquer
tentativa de usar o robô cirúrgico para
implante mais profundo do que o córtex enfrentará dois grandes problemas de
engenharia. Em primeiro lugar, você precisa descobrir como fazer com que os
delicados eletrodos flexíveis do dispositivo Neuralink alcançarem
o cérebro profundo. Além disso, o robô conta com visão artificial para evitar
vasos sanguíneos e um único erro pode ser fatal. Widge disse
que a ideia de que uma cirurgia de implante cerebral poderá ser totalmente
automatizada em curto prazo é uma fantasia: “Implantar eletrodos é fácil, se
tudo sai bem, mas é melhor não pagar pra ver como fica quando dá errado. Cabe
perguntar-se se isso poderia ser feito em um shopping center com um cara com
diploma de ensino superior e um curso de treinamento de duas semanas. Talvez,
quando a tecnologia estiver suficientemente desenvolvida. Mas se você for uma
das primeiras 10.000 pessoas a tê-lo, precisará de um neurocirurgião por perto,
para garantir.”
Diante do paradoxo de Zenão, da
pesquisa à comercialização, podemos nos perguntar por que Elon Musk jogaria
maços de dinheiro em um espaço de investimento definido pela incerteza. O que
você ganha contribuindo com mais de U$ 100 milhões dos U$ 158 milhões que a
empresa arrecadou? - Danielle Carr
David Darrow,
um neurocirurgião que trabalhou com sistemas de neuromodulação na
última década, mostrou-se ainda mais cético em relação à perspectiva de uma
cirurgia cerebral profunda automatizada: “É absolutamente impossível. Nunca
haverá ninguém para fazer isso, exceto cirurgiões altamente qualificados, o que
cria um óbvio obstáculo para que essa cirurgia seja feita no estilo Lasik.”
Se um único caso der errado, o dispositivo pode ser jogado no mesmo limbo
regulatório que interrompeu a terapia genética por uma década após a morte de
um jovem de 18 anos em um ensaio clínico.
Além desses obstáculos logísticos formidáveis,
existe um problema epistemológico mais avassalador. Não existe um substrato
biológico universal que corresponda a noções como “depressão”, “tristeza”,
“raiva” ou “alegria”. Esses conceitos são compostos de linguagem e política;
não são universalmente compartilhados entre pessoas ou, mais especificamente,
corpos. Nas palavras de Widge: “Mesmo se o Neuralink estivesse
pronto para implantação amanhã, ainda não poderíamos usá-lo para doenças
psiquiátricas porque a ciência não saberia o que fazer com ele.” As
vicissitudes da pesquisa sobre o uso da estimulação cerebral profunda,
atualmente o padrão-ouro para dispositivos de neuromodulação para tratar a
depressão severa, ilustram muito bem o problema. “A palavra depressão é quase
inútil” do ponto de vista neurológico, explicou Widge. “Não define
uma única entidade biológica.” As profundas diferenças sobre o que é a
depressão são a razão pela qual alguns pacientes respondem à terapia, enquanto
outros não experimentaram nenhuma mudança. Um grande ensaio clínico visando a
estimulação cerebral profunda para tratar a depressão que buscava a aprovação
do FDA foi encerrado em 2013, quando não mostrou resultados suficientemente
promissores. Como resultado desse ensaio fracassado, os principais fabricantes
de dispositivos de neuromodulação retiraram-se das pesquisas sobre transtornos
do humor e reduziram seus investimentos para se concentrar no campo mais seguro
dos transtornos de movimento.
Diante do paradoxo de Zenão, da
pesquisa à comercialização, podemos nos perguntar por que Elon Musk jogaria
maços de dinheiro em um espaço de investimento definido pela incerteza. O que
você ganha contribuindo com mais de U$ 100 milhões dos U$ 158 milhões que a
empresa arrecadou?
Na última década, várias startups na confluência de
tecnologia e um serviço “real” – como Uber ou DoorDash —
receberam torrentes de dinheiro de capitalistas de risco aparentemente
despreocupados com o fato de seus investimentos nunca terem dado lucro. Alguns
comentaristas levantaram a hipótese de que o Uber e similares estão fazendo uma
aposta arriscada na automação, alimentando suas empresas com infusões de
capital de investimento enquanto esperam que a concorrência, formada por
trabalhadores humanos, morra. Mas outros teorizaram que o modelo de negócios já
está funcionando: o verdadeiro prêmio que os capitalistas buscam não é o ganho
monetário imediato, mas os dados coletados por plataformas e dispositivos.
Alguns argumentam, então, que a economia de dados deve ser entendida como uma
nova variante do capitalismo em que os dados em si não são uma mercadoria, mas
capital, isto é, algo que os capitalistas desejam possuir porque gera valor por
meio de relações de exploração.
***
Uma característica notável do protótipo Neuralink é
que seus eletrodos são atualmente mais adequados para “ouvir” no cérebro, do
que de estimular a atividade neural. Isso faz sentido, uma vez que
o uso a mais curto prazo do aparelho será para combater a paralisia, aplicativo
que conta com o uso de computadores para reduzir as diferenças entre a
atividade das áreas sensoriais e motoras do cérebro e as próteses. Mas também é
o que caberia esperar de uma empresa descrita por um ex-funcionário como uma
tentativa de ser, ao mesmo tempo, “uma empresa de tecnologia e de dispositivos
médicos”. Como uma empresa de tecnologia, seu braço de dispositivos médicos não
precisa ser lucrativo ou mesmo muito usado para gerar dados sobre a atividade
neural que pertencerão legalmente ao Neuralink.
Informações em tempo real sobre a atividade neural
são atualmente uma das formas de dados mais difíceis de adquirir: todo mundo
tem um telefone, mas muito poucas pessoas têm implantes neurais. É por isso que
os pesquisadores tratam os pacientes com implantes de estimulação cerebral
profunda como recursos muito valiosos: eles costumam trabalhar simultaneamente
em várias equipes de pesquisa executando experimentos nos quais os dados do
cérebro coletados pelo dispositivo podem ser combinados com dados comportamentais.
Ao combinar diferentes formas de dados — o tipo de informação que seu telefone
coleta, por exemplo, e a atividade do córtex — os dois conjuntos adquirem mais
significado. Ou seja, eles se tornam mais úteis para prever e direcionar o
comportamento.
Embora não seja imediatamente discernível quais
modelos de negócios surgirão para capitalizar os dados neurais, Rune
Labs, uma empresa de tecnologia fundada por um ex-aluno do
departamento de biociência da Alphabet, Verily
Life Sciences, sugere uma resposta aproximada. A maioria dos
fabricantes de dispositivos médicos são gigantes da velha economia e não têm
recursos para selecionar a vasta quantidade de dados que seus dispositivos
geram. O mesmo é verdade para pesquisadores universitários, que com suas bolsas
de pesquisa raramente têm a oportunidade de comprar ou construir as ferramentas
computacionais necessárias para correlacionar grandes quantidades de dados
comportamentais e neurais. Confira a página do Rune Labs, que
oferece a fabricantes de dispositivos e pesquisadores uma oferta: dê-nos acesso
aos dados gerados por seus implantes neurais e, em troca, forneceremos acesso a
computação e armazenamento de dados de última geração.
Os críticos de tecnologia não
deveriam acreditar nas fantasias divulgadas que pessoas como Elon Musk vendem;
o controle da mente não está mais perto do que qualquer um dos sonhos do
passado futurista, como carros voadores ou socialismo. Temos que nos preocupar
é com algo muito mais decepcionante: que o futuro se pareça com o presente -
Danielle Carr
Desde o seu início, o Rune Labs desenvolveu
uma variedade de aplicativos de telefone para coletar dados sobre
o humor autorrelatado (pesquisas semelhantes estão em andamento no ramo da
“psiquiatria digital”, para criar aplicativos que coletam dados sobre qualquer
coisa, de modulação de voz a exercícios, que podem então ser combinados com
informações sobre a atividade cerebral coletadas de dispositivos neurais). A
única restrição ao uso de dados de dispositivos neurais por Rune é
que eles precisam manter os pacientes anônimos. Isso se assemelha cada vez mais
ao modelo de negócios que definirá os implantes neurais. Como Alik
Widge comentou: “Com os implantes cerebrais, a ideia de que seus dados
são o produto já é real. A Neuropace já disse que está avançando para ser menos
uma empresa de implantes e mais uma empresa de dados cerebrais.”
De todas as especulações malucas que Elon
Musk fez durante o lançamento do Neuralink, a previsão
mais precisa foi sua piada que brincava que o dispositivo é “como se o seu
telefone entrasse no cérebro”. Na verdade, é “algo semelhante”: o Neuralink é
como um telefone no sentido de que é uma máquina construída para gerar dados.
Embora o dispositivo não represente um grande avanço nas interfaces
cérebro-máquina, e aplicativos que resolvam algo além dos distúrbios de
movimento ainda levem décadas para aparecer, o que o Neuralink oferece
é uma oportunidade de coletar dados sobre o cérebro e acoplá-los aos tipos de
dados sobre nossas escolhas e comportamentos que já estão sendo constantemente
coletados. O dispositivo é mais bem entendido não como uma ruptura com o
passado, mas como uma intensificação das formas de vigilância e acúmulo de
dados que passaram a definir nosso cotidiano.
Os críticos de tecnologia não deveriam acreditar
nas fantasias divulgadas que pessoas como Elon Musk vendem;
o controle da mente não está mais perto do que qualquer um dos
sonhos do passado futurista, como carros voadores ou socialismo. Temos que nos
preocupar é com algo muito mais decepcionante: que o futuro se pareça com o
presente, só que melhor. Nesse sentido, Musk tem razão: o
futuro já está aqui.
Fonte:http://www.ihu.unisinos.br/611349-os-bilionarios-e-suas-estripulias-desumanizantes
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