Tenzin Wangyal Rinpoche escreve sobre a crença tibetana que associa a
fonte das doenças ao desequilíbrio de energia que os seres humanos criam entre
si e toda a existência
O fundador da tradição religiosa Bön, que é nativa do Tibete,
foi Tonpa Shenrab Miwoche, e um seguidor de seus ensinamentos é
chamado de um Bonpo. Um termo antigo para um mestre praticante
dos ensinamentos de Shenrab é Shen. Os Bonpos classificam os
ensinamentos espirituais e práticas que Shenrab expôs em nove caminhos ou
veículos. Eles são divididos em quatro caminhos causais e cinco caminhos
resultantes. O xamanismo tibetano é encontrado dentro dos quatro primeiros,
nos caminhos causais. Xamãs no Tibete tomam uma abordagem muito terrena e
dualista em relação à vida, curando os distúrbios e doenças nesta vida sem se
preocuparem com a próxima vida. Apesar de a motivação deles ser a aspiração
altruísta de aliviar o sofrimento dos outros, falta nela a geração da
compaixão universal que é encontrada nos caminhos resultantes. É a ausência
do cultivo da compaixão por todos os seres sencientes, e da aspiração de
realizar a Budeidade como a inspiração para a prática, a maior diferença
entre o caminho causal e o caminho resultante. Os quatro primeiros meios causais do caminho dos xamãs nativos do
Tibete são chamados: Chashen (O Caminho do Shen da
Predição), Nangshen (O Caminho do Shen do Mundo
Visível), Trulshen (O Caminho do Shen da Ilusão ‘Mágica’),
e Sichen (O Caminho do Shen da Existência). Chashen, o
primeiro caminho, inclui diagnósticos médicos e cura, assim como uma
variedade de antigos ritos astrológicos e divinatórios performados pelo xamã
para determinar se a pessoa que precisa ser curada tem um desequilíbrio
energético, ou se está sendo provocada por um espírito demoníaco, ou energia
negativa (como mencionado acima). Hoje em dia esses ritos ainda são
amplamente praticados nas comunidades tibetanas. O segundo caminho, Nangshen, inclui vários rituais para purificação a
fim de invocar energia e aumentar a prosperidade, para suprimir e liberar
forças negativas, e para invocar e fazer oferecimentos para deidades
poderosas, e pagar resgates para espíritos demoníacos. Essas práticas são
muito amplamente difundidas no Tibete. As famílias performam rituais
pequenos, enquanto rituais de larga escala são usualmente performados
coletivamente em cidades, vilarejos e monastérios. Em ritos de resgate, é
preparada uma efígie que representa o beneficiário do rito, ou o praticante
xamânico que está performando o rito. Eu lembro que quando minha mãe ficou
doente por um longo tempo, nós tentamos curá-la por meio de diferentes
tratamentos médicos, mas nada ajudou. Nós então performamos vários ritos
menores, mas não funcionaram também. Então, finalmente nós convidamos alguns
monges xamãs, que performaram um grande rito de resgate, no qual eles
prepararam uma grande efígie dela (de fato, as pessoas com frequência fazem
efígies do tamanho real da pessoa) e nós vestimos a efígie com as roupas
dela, assim a efígie era muito realista e parecia muito com a minha mãe.
Então, nós performamos o ritual, oferecendo a efígie no lugar dela para pagar
seu débito cármico para com os espíritos. Foi dado a ela um novo nome, Yeshe
Lhamo, no lugar do seu nome antigo, Drolma, um tipo de novo nascimento no
mundo, e ela se recuperou da doença. Os xamãs do terceiro caminho, Trulshen, vão aos locais onde há uma
energia selvagem forte, onde performam práticas para conquistar os espíritos
e demônios que habitam esses lugares, subjugando-os para servirem ao xamã. A
pessoa alcança isto através da prática de mantra (palavras
de poder mágico), mudra (gestos significativos com as mãos
para se comunicar com deuses e espíritos), e samadhi (meditação),
enquanto performa sadanas (práticas devocionais) para
engajar várias deusas iradas como Walmo e Chenmo.
O objetivo dessas práticas iradas, que são direcionadas contra inimigos dos
ensinamentos, é proteger os praticantes e os ensinamentos contra perigos e
ameaças. É muito importante performar essas ações com uma atitude de amor e
compaixão para com os outros seres, e não devem ser performadas apenas para o
benefício do xamã. Trabalhar com a alma dos vivos e dos mortos é a
característica mais importante do quarto caminho, Sichen, que contém uma
explicação detalhada do princípio da la (alma), da yid (mente),
e da sem (mente pensante). “A la é o traço cármico, que é
armazenado no kunzhi namshe (ou consciência base). A sem segue o traço
cármico e produz experiências felizes, experiências dolorosas e experiências
neutras que são experienciadas pela yid.” Quando a alma de uma pessoa viva é perdida, despedaçada, ou
desordenada, existem práticas para chamá-la de volta e reforçar a energia da
pessoa, como o resgate da alma. Em relação aos mortos, existem explicações de
81 tipos diferentes de morte, como morte acidental, suicídio, assassinato, e
morte sinistra. Seguindo esses tipos de morte, é muito importante performar
ritos apropriados, especialmente se a morte ocorre em um lugar que é
energeticamente perturbado (por exemplo, um lugar onde eventos desfavoráveis,
como acidentes, acontecem regularmente). Um método particular específico encontrado nesse caminho é o das
“quatro portas”, para derrotar espíritos negativos, usando 360 métodos
diferentes. Também existem ritos funerários para guiar a alma imediatamente
após a morte, comunicando-se com o fantasma do falecido e alimentando-o até o
próximo renascimento. Uma das práticas mais importantes performadas pelos xamãs tibetanos do
caminho Sichen é o resgate da alma — Lalu (literalmente
resgatar, ou comprar de volta a alma), e Chilu (resgatar a
energia-vida). Essas práticas são muito difundidas na tradição Bön e também
em todas as escolas de budismo tibetano. Uma pessoa poderia discutir
filosoficamente sobre a alma e a energia-vida durante muito tempo; mas, de
forma breve, energia-vida é a força que mantém a mente e o corpo juntos, e a
alma é a energia vital da pessoa. Negatividades externas podem fazer com que
essas duas forças diminuam, sejam perturbadas, ou até mesmo perdidas. Através
dos ritos lalu e chilu, essas forças podem ser chamadas de volta, reparadas e
balanceadas. Para chamar de volta a força da vida no ritual chilu, o xamã
envia energia como raios de luz, como um gancho, para pegar as bênçãos dos
Budas; o poder de todos os protetores, protetoras e guardiões(ãs); o poder
mágico de todos os espíritos e das oito classes de seres; e a energia vital
da força vital dos seres dos seis reinos. Ele invoca essa poderosa energia de
todos os cantos do universo e a condensa em sílabas, que ele introduz no
coração da pessoa perturbada através do chakra da coroa, reforçando a sua
força vital. Foto: Marek Piwnicki (Unsplash) Os xamãs performam vários ritos diferentes de resgate da alma. Em um
rito, um veado— que irá chamar de volta a alma — é colocado em um prato
flutuando em um vaso com leite. O xamã então mexe o leite com uma dadar (flecha
auspiciosa de longa-vida), a fim de determinar se a alma retornou. De fato,
se o veado está de frente para o altar da casa quando o prato para de rodar,
o rito foi bem sucedido; se ele ficar de frente para a porta é porque não foi
bem sucedido, e o rito tem que ser repetido. Em outro rito, o beneficiário tem que jogar um dado branco em um pano
branco, apostando contra uma pessoa do signo oposto (de acordo com a
astrologia tibetana), que está jogando um dado preto em um pano preto. Quando
o beneficiário ganhar, isso significa que o rito foi bem sucedido. Um dos
principais modos de reforçar a força vital é a recitação do mantra da deidade
da vida. O texto diz que, através desse poder, o xamã traz de volta a força
vital de onde quer que ela tenha se perdido. Se ela está acabada, ele a
prolonga; se ela declinou, ele a reforça; se ela está rasgada, ele a costura;
se ela foi dividida, ele a une. O resgate da alma Lalu é performada de modo similar; o xamã invoca o
espírito que roubou ou perturbou a alma da pessoa, e oferece a ele uma torma (bolo
oferenda) representando a união dos prazeres dos cinco
sentidos — satisfazendo-o completamente com o objeto visualizado, assim ele
irá devolver imediatamente a alma que pegou. Também parece haver uma forte conexão entre a prática do resgate da alma
e a prática popular de lungta, que é performada para reforçar a
fortuna e a capacidade ao ‘levantar o cavalo-vento’. Esse é um rito muito
poderoso, performado por grandes grupos de tibetanos, no topo de montanhas,
no primeiro ou terceiro dia do ano novo. Os participantes estimulam e invocam
os espíritos das montanhas ao fazerem oferecimentos de fumaça, pendurando
bandeiras de oração e jogando para cima cartões de cinco cores com mantras
escritos, a fim de reforçar o prana (ar vital), que é o suporte da la. Deste
modo a la também é curada e reforçada, e consequentemente a capacidade,
fortuna e prosperidade dos participantes aumentam, e qualquer jornada
perigosa que eles empreendam se torna bem sucedida. Esses ritos de cura, nos
quais mestres e xamãs Bön se comunicam (seja completamente consciente ou
através de experiências fora do corpo) com espíritos e demônios, são
amplamente praticados em todas as escolas de Budismo Tibetano. É interessante notar que uma das formas que as escolas budistas
tentaram usar para suprimir o Bön foi acusar os praticantes Bön de serem
‘intelectualmente descivilizados’ — de serem meros xamãs primitivos. No
entanto, no sentido mais profundo, crenças xamânicas são o próprio sangue
vital dos tibetanos. Tibetanos de qualquer escola religiosa que ficam doentes
vão praticar rituais, como pendurar bandeiras de oração, invocar os seus
espíritos guardiões e performar ritos de resgate para remover espíritos
perturbadores, sem hesitar nem por um instante. O xamanismo contém muita sabedoria que é usada para harmonizar
desequilíbrios, trabalhando para restabelecer bons relacionamentos com os
espíritos. O trabalho de xamãs nativos americanos de entrar em contato com os
animais guardiões para obter orientação, força e conhecimento, é de grande valor
para curar e para restaurar um relacionamento harmonioso com os animais, os
elementos, o céu e todo o meio ambiente. Um praticante dos caminhos do Bön,
no entanto, pode advertir xamãs ocidentais contemporâneos sobre os perigos
inerentes a certas práticas que eles performam. A jornada do tambor, usada
para encontrar o animal ‘guardião’ (no qual eles confiam completamente) e
colaborar com ele na cura, é um exemplo. Não há meios de ter certeza que o
animal ‘guardião’ que o xamã encontrará durante a jornada do tambor vai ser
benéfico. Nesse tipo de jornada, ou experiência fora do corpo, a pessoa pode
encontrar centenas de seres diferentes, do mesmo modo que um ser não-humano,
vindo para o mundo humano, irá encontrar centenas de humanos. A experiência xamânica é muito importante, então é crucial ter o
guardião correto, que deve ser encontrado através da consciência e da
realização verdadeiras. Na maioria dos locais do Tibete, cidades e montanhas
têm seus próprios guardiões protetores, assim como as várias escolas
religiosas compartilham deidades guardiãs protetoras. Entretanto, foram
yogis, lamas e mestres realizados que reconheceram, subjugaram e iniciaram
esses seres poderosos como darmapalas, ou guardiões dos
ensinamentos. Até encontrarem esses mestres, muitos desses seres eram
espíritos selvagens e inconfiáveis, ou fantasmas de pessoas malignas ou
confusas, assim como os animais guardiões que o xamã encontra podem ser
malignos. Para concluir, parece-me que muitos xamãs agora ativos no Oeste focam
em trabalhar com as emoções e problemas desta vida, relacionando-se com os
espíritos através de jornadas xamânicas de tambor para curarem a si mesmos e
a outras pessoas. Essa prática é muito benéfica para curar perturbações
mentais e físicas, e certamente o trabalho que os xamãs fazem é também muito
importante para restaurar o equilíbrio ecológico, mas ele não deveria
permanecer nesse nível. Em vez disso, o trabalho deles poderia ser aprimorado
pelo aprofundamento do seu conhecimento, para obterem compreensão da natureza
da mente, e gerarem a aspiração de se engajarem na prática contemplativa para
realizarem a Budeidade. De forma similar, se os meios causais do xamanismo fossem amplamente
praticados no mundo, seriam de grande benefício para o ambiente e para a
comunidade mundial. Seria de benefício ainda maior se todos os nove veículos
fossem praticados. *Nota do Tradutor: O texto original refere quatro demônios, mas lista
apenas três. The post O xamanismo na tradição Bön nativa do Tibete appeared
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