POSITIVIDADE TÓXICA: VOCÊ JÁ OUVIU FALAR? A FALSA FELICIDADE,EMOÇOES CONSTRUTIVAS E DESTRUTIVAS




Positividade tóxica. Você já ouviu falar?

Movimento que ganhou força nas redes sociais com a #Goodvibesonly mascara a realidade e pinta vida só de coisas boas, negando a existência de problemas

Ser positivo. Ser otimista. Ser feliz. Mantra do mundo atual, perseguido, caçado, buscado e tão desejado a ponto de, mesmo infeliz, triste e pessimista, fingir uma imagem alegre, para cima, de excitação para ser aceito, aprovado, mesmo que a vida compartilhada no mundo digital, cantada aos quatro ventos, não seja de todo real, verdadeira.

Por que agir assim? Quais as consequências para a saúde mental e física? A chamada positividade tóxica, que ganhou força e destaque nas redes sociais com a #Goodvibesonly (só boas energias, em tradução livre) é um compromisso de destacar as coisas boas da vida e esconder, jogar para debaixo do tapete, fingir e até mesmo negar a existência de problemas, quedas, rasteiras, decepções e infortúnios da vida. É a repressão a tudo que é negativo. Não parece a melhor saída.

Ainda que possa imaginar que a positividade tóxica nasceu no mundo digital, ela já existia antes das redes sociais. Felicidade vende e há milhões dispostos a pagar por ela, mesmo sem receber o “produto”. O pensamento positivo é bem de consumo e alimenta um mercado milionário, seja de filmes, livros, palestras ou treinamentos há anos. Mas, claro, as redes sociais mais uma vez potencializaram uma demanda humana.

Consultamos especialistas da saúde mental para entender os riscos de não aceitar ou reconhecer as adversidades da vida, de ter o direito de se sentir mal, inseguro, com medo, triste, negativo, de não querer estar sempre sorrindo. Todos sabem do valor do equilíbrio, seja qual for a seara da vida, mas também reconhecem a batalha que é conquistar o autocontrole para se manter de pé na corda bamba. Os profissionais vão ajudar a entender a diferença entre positividade tóxica e o ser otimista, assim com a psicologia, a psicologia positiva e a psiquiatria conseguem ajudar.

Quantas vezes você já não ouviu por aí, independentemente das circunstâncias, ruins ou devastadoras, que você tem de “ser forte”, “ser grato”, “que poderia ser pior”, “quanto pessimismo”, “não seja negativa”, “não se deixe abalar”, “não fique triste, está tudo bem”, “ao menos...”, “é só pensar positivo”... Todas essas tentativas de exaltar só o positivo e reprimir o negativo são a positividade tóxica. É como se os momentos infelizes precisassem ser invalidados emocionalmente. O que muitos ainda não perceberam é que o pensamento positivo não é suficiente para prevenir infortúnios e bloquear ou ignorar emoções ditas “negativas” e tal atitude trará consequências à saúde. Esconder-se das dificuldades por trás de uma fachada de positividade pode refletir desde problemas mentais a de pele.

É NATURAL SENTIR-SE TRISTE, INFELIZ, FRUSTRADO E TER MEDO

Felicidade vende e há milhões dispostos a pagar por ela. O pensamento positivo é bem de consumo e alimenta um mercado milionário, seja de filmes, livros, palestras ou treinamentos

(foto: Amanda Jones/Unsplash)


É natural sentir-se triste, infeliz, frustrado, com raiva, inseguro, com medo e ter inveja. Assim como feliz, alegre, de alto-astral, esperançoso e divertido. Todos são formados por esses dois lados, mas o ser humano sempre tende a se complicar, é complexo e, por isso mesmo, cheio de facetas. Neste momento de pandemia, fase em que milhões de pessoas estão em isolamento social, perderam o emprego, passam fome, enfrentam o luto, a dor, perdas emocionais e materiais, tempo de consequências negativas que afetam emocionalmente qualquer pessoa, muitos se deixam aprisionar na cartilha da positividade tóxica.

Quem não se deparou, principalmente no início desta tragédia, com a ordem para ser produtivo, otimista, aproveitar a quarentena para aprender inglês, se qualificar, fazer cursos, estudar, buscar conhecimento, participar de lives, palestras, começar um projeto, manter o bom humor... Ou seja, agir como a vida estivesse no curso normal, e quem não embarcasse nesta canoa furada estaria errado e a consequência é o risco de ser isolado, posto de lado, evitado.

A psicóloga clínica Renata Borja enfatiza que o bem-estar não está no dinheiro, no status, no poder, no prazer, nas facilidades, nem na perfeição. “Ele está na capacidade de reconhecer que viver é difícil mesmo, é compreender que somos vulneráveis, frágeis e que iremos ser rejeitados, desvalorizados, poderemos fracassar, perder as pessoas e coisas que valorizamos, mas mesmo assim podemos viver bem, com boas relações e em harmonia com nossas emoções e pensamentos, sabendo que na vida tudo é passageiro, tanto os bons quanto os maus momentos e está tudo bem mesmo assim.”

QUATRO PASSOS: PARA OTIMISTAS E PESSIMISTAS 

O fundamental é que todos tenham em mente que o mais importante é buscar a consciência e a vivência de que está tudo certo se não estiver bem sempre. E não é para esconder, com ou sem a máscara. Mestre em psicologia positiva pela Universidade da Pennsylvania (EUA) e pós-graduada em terapia focada em compaixão pela Universidade de Derby (Inglaterra), Adriana Drulla enfatiza que é impossível ser positivo sempre.

“É tóxico porque a ditadura da felicidade nega a natureza humana, que é de altos e baixos. A pessoa passa a se culpar por não ser sempre otimista e estar sempre feliz, o que gera mais

negatividade, naturalmente. Corpo e mente respondem pior ao estresse quando negamos o que estamos sentindo. É impossível estar bem quando estamos em guerra com nós mesmos. Quando se aceitam os momentos difíceis, entendendo que fazem parte da natureza, é possível se apoiar durante esses períodos com gentileza, como fazemos com um grande amigo. A partir da nossa compreensão e apoio internos fica mais fácil dar a volta por cima, dar para nós mesmos o que a gente precisa, e superar as dificuldades.”.


(foto: J. Mantovani/Divulgação)

É tóxico porque a ditadura da felicidade nega a natureza humana, que é de altos e baixos. A pessoa passa a se culpar por não ser sempre otimista e estar sempre feliz, o que gera mais negatividade, naturalmente. Corpo e mente respondem pior ao estresse quando negamos o que estamos sentindo. É impossível estar bem quando estamos em guerra com nós mesmos

Adriana Drulla, mestre em psicologia positiva pela Universidade da Pennsylvania (EUA) e pós-graduada em terapia focada em compaixão pela Universidade de Derby (Inglaterra)

Adriana Drulla comanda os podcasts “Crescer humano” (https://open.spotify.com/show/0Ci43iTKORzjg9ZmNzOrik), onde fala sobre psicologia, e “Mente compassiva” (https://open.spoti fy.com/show/7jysb5HI0go9fx4mY5iOt6si?=5au1k27mStGl8gZBlyS6Yg&nd=1). Ela enfatiza que achar a dose certa entre pessimismo e otimismo inclui encontrar a calma necessária para que se possa analisar o diálogo interno de forma realista. Para isso, tanto os pessimistas quanto os otimistas podem fazer um exercício de quatro passos: primeiro, imagine e se possível escreva o pior cenário possível; depois, imagine e escreva o melhor cenário possível; e terceiro, descreva o cenário realista. A partir do cenário realista, construa um plano para lidar com a situação”.

Como se blindar da positividade tóxica?

1 – Em vez de dizer “não pense nisso, seja positivo”, diga “me diz o que você está sentindo, eu te escuto”
2 – Em vez de falar “poderia ser pior”, diga “sinto muito que está passando por isso”
3 – Em de vez “não se preocupe, seja feliz”, diga “estou aqui para você”

Como agir? 

1 – Autogentileza: acolha o seu desconforto
2 – Fica atenta às suas emoções, elas são sinais importantes
3 – Lembre-se que não há nada de errado com você
4 – Autocompaixão: capacidade de fornecer suporte emocional a nós mesmos

Positividade tóxica: a falsa felicidade

A positividade tóxica é um subproduto da atual cultura que sobrevaloriza o individualismo, a competição e o sucesso


É fundamental acolhermos todas as nossas emoções, sejam elas agradáveis ou difíceis(foto: vishnu vijayan/Pixabay )


Alguém aí já levou ou ouviu falar do “jogo do contente”? Aquele em que a missão é extrair algo de bom e positivo em tudo, mesmo em situações ruins ou nada legais. Quem não conhece a história de Poliana, este jogo é o que ela aprendeu com seu pai. Poliana, portanto, só via o lado positivo das coisas, o que é um erro cognitivo. O livro é de 1913, século 20. Em 2021, chamamos tal comportamento de positividade tóxica, o que muitas vezes é confundido com psicologia positivista.

Por isso, a psicóloga clínica Daniela Queiroz, especialista em psicologia positiva e hipnoterapia ericksoniana, explica que um dos pilares da psicologia positiva é de fato dar permissão para sermos humanos. O que significa que é fundamental acolhermos todas as nossas emoções, sejam elas agradáveis ou difíceis. Já na positividade tóxica, as emoções negativas são negligenciadas. Como se o sujeito só pudesse dar lugar, ou foco, às positivas. “É por isso que se torna algo tóxico, porque não tem congruência com a vida real. Todos, diariamente, vivenciamos emoções diferentes.”

Daniela Queiroz destaca que não estar sempre feliz causa frustração e estar bem o tempo todo carrega a ideia de perfeição, especialmente, para as pessoas que vivem no universo da comparação: “Atendo muitos pacientes que acompanham a vida de celebridades nas mídias sociais e se sentem extremamente frustrados com seu estilo de vida. Ninguém consegue estar bem o tempo todo, isso soa como algo não real.”

Para muitos, é difícil entender como outras pessoas se afetam tanto pela vida alheia, a ponto de não sacar que aquela vida não é realidade, a rotina do dia a dia e, ainda mais intrigante, sofre com isso. Para a psicóloga, sofremos cada vez mais a influência da mídia digital, dos algoritmos bem retratados no documentário “O dilema das redes”. “Já dizia Freud que o ser humano é movido pelo princípio do prazer. Somos 'presas' fáceis para o imediatismo, para certezas absolutas, queremos sempre eleger alguém que nos conforte, direcione a nossa vida.”

Sem cair na armadilha da positividade tóxica, seria possível sentir gratidão e ver o lado bom em tudo o que acontece na vida? Para Daniela Queiroz, quando nos permitimos ser humanos, todas as emoções são acolhidas e logo as mais difíceis de ser digeridas vão se transformando em lições e aprendizados. Um outro alerta é que muitos acreditam que o pensamento positivo é suficiente para prevenir infortúnios: “Não temos esse poder. Catástrofes, imprevistos acontecem. Como vamos reagir e lidar com eles, sim. Quanto maior a aceitação maior será a nossa flexibilidade em ajustar de novo”, alerta a psicóloga.



(foto: Arquivo Pessoal)


Atendo muitos pacientes que acompanham a vida de celebridades nas mídias sociais e se sentem extremamente frustrados com seu estilo de vida. Ninguém consegue estar bem o tempo todo, isso soa como algo não real

Daniela Queiroz, psicóloga positivista

AS PESSOAS NÃO SE ESCUTAM 


Daniela Queiroz chama a atenção para quem vive uma situação emocionalmente difícil e já se sente sozinha e isolada. Quando outros tentam, pensando que estão ajudando, silenciar essas emoções, especialmente familiares e amigos, o efeito é o contrário. A velha cartilha de conselhos tipo “é só você pensar positivo”, “veja o lado bom”, “podia ser pior”, “precisa se conformar” ou “siga em frente” não funciona.

Segundo ela, a negação do sofrimento, das angústias alheias só nos afasta uns dos outros. Fala-se muito em empatia, mas se nega a todo tempo as nossas vulnerabilidades. “De fato, há uma tendência em depositar apenas nos consultórios de psicologia a permissão para falarmos das nossas dores.”

Além da generosidade da escuta de quem é próximo e dos profissionais da saúde mental em seus divãs, Daniela Queiroz lembra ainda da hipnoterapia ericksoniana, que propõe um modelo de terapia sob medida para cada paciente. “A singularidade de cada um é respeitada, não tem algo que serve para todos. Logo, o foco será sempre uma transformação de dentro para fora, e não o contrário.”


COMO ACEITAR A TRISTEZA E PEDIR AJUDA

As emoções humanas são universais, determinadas geneticamente e selecionadas pela evolução da espécie. A tristeza, por exemplo, sinaliza que precisamos de ajuda – seja para lidar com os sentimentos ou para substituir e reparar aquilo que foi perdido. Pesquisa da Universidade de Yale identificou que a quantidade de ajuda que os voluntários recebiam das outras pessoas aumentava quando os voluntários expressavam a tristeza. A função da tristeza revela que a natureza humana é coletiva, precisamos uns dos outros. Portanto, quando estiver triste, lembre-se de que é um sinal de que precisa de apoio. O apoio que vem do outro, mas também do apoio que vem de si mesmo.

Adriana Drulla, mestre em psicologia positiva, alerta que a tristeza revela que a natureza humana é coletiva e que precisamos uns dos outros(foto: J. Mantovani/Divulgação)

1 – Pratique a pausa da autocompaixão 
Kristin Neff, pesquisadora referência no tema, operacionalizou autocompaixão com três elementos: mindfulness, humanidade comum e autogentileza. Nos momentos difíceis, faça uma pausa e primeiro investigue sua experiência com mindfulness, ou seja, com curiosidade e abertura, em vez de negar o sofrimento ou lamentar excessivamente. Segundo, lembre-se da humanidade comum, que é o entendimento de que o sofrimento é inerente à condição humana. Quando você entende que as suas dificuldades são parte da experiência humana, e não provas de incompetência ou fraqueza, fica mais fácil acolher o que você sente com o terceiro elemento da autocompaixão, a autogentileza.

2 – Acalme-se com toque e respiração 
Os pensamentos são capazes de afetar o corpo, por exemplo, produzindo taquicardia quando se está ansioso. Da mesma forma, o estado corporal afeta o funcionamento da mente. Quando se sente ameaçado, os pensamentos são capturados pela ideia que o assombra. Portanto, em vez de usar os pensamentos para ficar mais calmo, use o corpo para acalmar a mente. Respire profundamente por três minutos algumas vezes durante o dia. Lembre-se de fazer expirações tão ou mais longas que a inspiração, isso é importante para ativar o sistema nervoso parassimpático. Enquanto respira, você pode também usar o toque, colocando as mãos sobre o coração ou outra parte do seu corpo que te comunique segurança.

3 – Fale com você mesmo como você falaria com um amigo 
É mais fácil termos clareza, gentileza e sabedoria quando apoiamos o outro do que quando refletimos sobre os nossos próprios problemas. Portanto, pense sobre como você encorajaria ou apoiaria um amigo na mesma situação, e fale com você da mesma forma. Evidências científicas demonstram que, quando falamos com nós mesmos como se fôssemos outra pessoa, somos mais capazes de lidar com situações emocionalmente desafiadoras e agir com mais sabedoria.

4 – Limite o consumo de notícias e repense quem você segue nas redes sociais 
Lembre-se de que quando estamos no sistema de alarme, tendemos a consumir informações que alimentam o nosso medo, raiva e tristeza e nos mantém no sistema de alarme. Portanto, planeje a frequência que você pretende se engajar com notícias e com as redes sociais. Se possível, deixe de seguir conteúdos que prejudiquem seu estado emocional.

5 – Construa um kit autocompassivo 
Experiências sensoriais são poderosos ativadores emocionais que podem ajudar a estimular o sistema afiliativo. Podem fazer parte do seu kit objetos que lembrem a experiência de ser cuidado, como por exemplo um óleo essencial com cheiro tranquilizador ou uma música calma e tranquila.

*Fonte: Adriana Drulla, mestre em psicologia positiva pela Universidade da Pennsylvania (EUA)


Positividade tóxica: emoções construtivas e destrutivas

O mundo vive a cultura da urgência da felicidade. Abraçar a positividade saudável é reconhecer que uma situação não é necessariamente só boa ou ruim



Não é possível dizer que tristeza, raiva e medo são negativas, enquanto alegria é positiva(foto: Gino Crescoli/Pixabay)


Não é fácil lidar com a dor, com perdas, decepções, mas tanto as emoções negativas quanto as positivas têm funções e são úteis. Por isso, Renata Borja, psicóloga clínica especialista em terapia cognitivo-comportamental, explica que não podemos dizer que tristeza, raiva e medo são negativas, enquanto alegria é positiva. Essa é uma ideia completamente distorcida sobre as emoções.
O correto seria dizer emoções construtivas e destrutivas, terminologia que não está vinculada a emoções específicas, mas à forma como as utilizamos e as expressamos. Portanto, bloquear emoções não é positivo, já que nos faz compreender que o problema está na emoção, enquanto na verdade está na reação que temos diante dela.

Conforme Renata Borja, entender a emoção como problema faz temê-la e tentar evitá-la em vão, o que acabará por aumentar a emoção e o desconforto: “As emoções podem ser destrutivas quando temos uma reação desproporcional à situação ou quando há comportamentos tão vinculados a elas que podemos ter dificuldade de diferenciar o que é emoção e o que é comportamento”.

Segundo a especialista, a raiva pode ser utilizada para um posicionamento sem que precise ser agressivo, e o medo pode ser usado como energia para produtividade. Tentar bloquear a raiva, o medo, a tristeza, a ansiedade pode gerar sérias consequências, uma vez que não é possível deixar de sentir. Essa atitude pode gerar culpa, cobrança, autocrítica severa e acarretar uma intensidade maior nas emoções que a pessoa quer “evitar”. “Ela entrará em um círculo vicioso negativo, promovendo mal-estar e estresse emocional.

Para a psicóloga, o risco da positividade tóxica não está nas redes sociais, mas em como as pessoas as utilizam e como os outros compreendem o que está lá. A sociedade apresenta uma cobrança excessiva de sucesso e todos querem mostrá-lo na tentativa de serem reconhecidos como capazes, serem amados e valorizados. “Na realidade, queremos nos sentir pertencentes. E se existe uma valorização da aparência, do status, do poder e do sucesso financeiro, as pessoas querem mostrar isso na tentativa inútil de conexão. Muitas pessoas, portanto, podem se tornar escravas das redes sociais e criar falsas postagens na tentativa de se sentirem conectadas. Entretanto, essa falsa demonstração de felicidade as faz sentirem-se mal, principalmente quando se comparam com outros que julgam melhores, mais ricos, mais famosos e mais felizes”, diz.

OTIMISTA SEM SER TÓXICO 



(foto: Rafaela Lima/Divulgação)

"Viver é difícil mesmo, é compreender que somos vulneráveis, frágeis e que iremos ser rejeitados, desvalorizados, poderemos fracassar, perder as pessoas e coisas que valorizamos, mas mesmo assim podemos viver bem com boas relações e em harmonia com nossas emoções e pensamentos, sabendo que na vida tudo é passageiro, tanto os bons quanto os maus momentos e está tudo bem mesmo assim"

Renata Borja, psicóloga clínica

Renata Borja alerta que o problema não está no otimismo, mas ao achar que a solução está em se sentir alegre todo o tempo. E as redes sociais dão a falsa impressão. A pessoa teve vários momentos ruins durante o dia, mas a tendência é postar somente sobre os bons, ou até mesmo forjá-los. “Dizer para alguém deprimido que ela precisa ver que a vida é linda só vai fazê-la se sentir ainda pior.
É possível ser otimista sem ser tóxico para alguém. Mas para que isso ocorra é importante valorizar a função e a existência de todas as emoções. Podemos compreender que o outro se sente triste e apenas acolher a emoção sem precisar obrigá-lo a se sentir feliz. Não é querer, ao ver alguém mal, que ela transforme a sua emoção e fique boa, isso só faz com que a pessoa em sofrimento se sinta mais inadequada, sozinha e incapaz.”

A psicóloga se lembra do filme “Divertidamente”, a emoção da alegria fica o tempo todo incomodada com a tristeza, como se ela fosse uma emoção inútil e prejudicial. Mas em um determinado momento do filme ela compreende que a tristeza é importantíssima para a conexão e a empatia. “Esse exemplo mostra que se queremos que alguém que amamos se sinta bem, temos que deixar os julgamentos sobre as emoções de lado. A alegria nessas horas pode ser tóxica e a tristeza pode ser fonte de conexão e resgate.”

Para Renata Borja, a positividade é muito importante. Esperança e otimismo ajudam a vencer desafios e a alcançar metas e objetivos. Falar coisas boas que estimulem, motivem e ajudem é ótimo, o que não é bom é cobrar de si e dos outros sentir somente emoções positivas, ou achar que os motivos são menores ou sem sentido. 

“Não é porque eu tenho mais coisas que muitas pessoas que não posso sentir tristeza e que eu não tenho o direito de ter emoções negativas. Esses pensamentos são distorções, porque nos fazem ver as emoções como permanentes e situacionais. Não existem motivos específicos para que alguém seja mais otimista ou pessimista ou mais positivo ou negativo. Não existe uma forma certa ou errada de sentir. Existe uma individualidade que tem de ser respeitada.”

O PESSIMISTA É MALVISTO 

Renata Borja reconhece que o pessimista é malvisto, não por ser pessimista em si, mas por ser “reclamão”. “Posso ser mais otimista, mas não preciso cobrar que os outros sejam como eu só porque isso dá certo para mim. Do mesmo jeito que não preciso ficar por aí reclamando da vida. Mas isso também não significa que eu tenha que me calar em nenhuma das duas situações. Todos têm momentos otimistas e pessimistas na vida. Momentos em que seremos melhores companhias e em outros não, e está tudo bem, mas isso não significa que deva deixar de conviver quando não está bem. Pode sair com as pessoas mesmo que a sua emoção não esteja em sintonia com a delas. A convivência ajudará a melhorar, desde que não nos cobre ou seja cobrado.”

A psicóloga destaca que respeitar emoções não significa deixar que elas o dominem. “Não é porque estou triste que tenho que reclamar com os outros, ou porque fiquei com raiva que devo me vingar de alguém, ou porque senti ansiedade que devo desistir de um objetivo. Posso dizer coisas boas mesmo estando triste, posso corrigir sem me vingar, e posso atingir metas utilizando a minha ansiedade. E se alguém não está bem, posso acolhê-lo nas suas emoções. E ajudá-lo sendo um ombro amigo.”





A busca do bem-estar requer abertura ao aprendizado e valorizar o caminho, o processo, os fracassos(foto: Magic Creative/Pixabay )


Renata Borja diz que a busca pelo bem-estar é um caminho e ele está, principalmente, na confluência de vários fatores, mas não necessariamente no excesso ou na perfeição. Sono de qualidade, atividade física, alimentação equilibrada, gestão emocional, flexibilidade. Ela lembra que Martin Seligman, da psicologia positiva, diz que o bem-estar tem cinco fatores: emoção positiva, engajamento, relacionamentos, sentido e realização. “Eu concordo, mas compreendo que para se ter emoções positivas precisamos nos permitir sentir emoções que consideramos negativas ou ruins, lembrar que somos imperfeitos e que a vida é cheia de sofrimentos, problemas, mas mesmo assim podemos aceitar nossa condição de humanos e acolher e validar as emoções que sentimos.”

A psicóloga, que lançou um e-book gratuito de bem-estar (http://bit.ly/cognitivaautocuidado), lembra que para se ter engajamento é preciso dar abertura ao aprendizado e valorizar mais o caminho, o processo, os fracassos e acreditar na capacidade do que é possível construir e se desenvolver errando e arriscando. O sentido está no amor, no exercício da espiritualidade e na noção de que somos únicos e precisamos nos dedicar a algo que nos faça sentir plenos. Para que tudo isso aconteça não é necessária uma situação perfeita. “O sentido pode ser encontrado mesmo nas situações mais doloridas. A realização se relaciona diretamente com a ação. Pode ser transformando o problema em desafio. O bem-estar, portanto, tem relação direta com a sabedoria de enfrentar as adversidades e sofrimento com os recursos que temos.”

FIQUE POR DENTRO

Instituto Feliciência

“A felicidade legítima é uma experiência intrínseca, dispensa o reconhecimento de terceiros. Sorrisos pasteurizados em fotos sob filtros, vozes cuidadosamente moduladas e falas que se assemelham a pregações são apenas artifícios, esses sim, tóxicos, daquilo que surgiu bem antes da internet: a vida de fachada e a venda de receitas mágicas”, esse é o alerta diante da positividade tóxica de Carla Furtado, mestre e doutoranda em psicologia pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e expert em felicidade interna bruta (FIB). Fundadora do Instituto Feliciência (http://www.carlafurtado.com.br/interna.phppagina?=sobre), centro de formação nos campos das ciências relacionadas aos temas bem-estar, saúde mental, felicidade, liderança e sustentabilidade, com atuação no Brasil e em Portugal. Essa “pura felicidade” só bloqueia as emoções negativas: “É importante observar que a psicologia positiva não orienta que se bloqueie ou evite emoções negativas. Do ponto de vista humano, isso nem sequer é possível e não seria recomendável. Emoções são comportamentos autônomos em resposta a estímulos. É sempre importante ressaltar que felicidade não é uma emoção, mas costuma ser confundida com a alegria.”

TRÊS PERGUNTAS PARA...


Marco Túlio de Aquino, médico psiquiatra e terapeuta cognitivo-comportamental afirma que positivismo tóxico não é a solução adequada para as grandes questões da vida
(foto: Arquivo Pessoal)

Marco Túlio de Aquino,
médico psiquiatra cooperado da UNIMED-BH, mestre em ciências da saúde e terapeuta cognitivo-comportamental  

1 - Quais danos a positividade tóxica causa à saúde mental?
Importante dizer que sentir emoções como tristeza, ansiedade ou medo diante de tudo que estamos vivenciando é um sentimento universal e denota capacidade empática. O reconhecimento do nosso sofrimento e do sofrimento de toda a sociedade nos permite fazer escolhas humanistas diante das adversidades, nos proporcionando a possibilidade de acolher, compreender, intervir, se proteger, proteger o outro e ajudar efetivamente. Entender a origem ou os gatilhos para as emoções mais básicas, inclusive as negativas, nos permite escolher caminhos alternativos para uma mudança ou uma melhor aceitação do que se está vivendo. Emoções não bem trabalhadas podem ser gatilhos importantes para a manifestação de transtornos mentais que podem afetar a cognição, o controle do comportamento, podendo interferir, de maneira substancial tanto na capacidade de a criança aprender quanto na habilidade de os adultos interagirem com outras pessoas, seja na família, no trabalho ou na sociedade. Os transtornos mentais envolvem complexas etiologias, que incluem interações entre fatores de risco genéticos e não genéticos ligados ao meio em que vivemos e os seus estressores. A sua alta prevalência na população geral pode trazer grande impacto na qualidade de vida, principalmente quando não tratados ou tratados inadequadamente.

2 - Como não cair nesta armadilha de imaginar que tudo tem de estar bem sempre e acobertar o que há de negativo e ruim na vida e no mundo?
Podemos dizer que existem cinco aspectos que interferem na experiência de vida na presença de qualquer problema ou mesmo a ausência dele: os pensamentos, o ambiente, o estado de humor, o comportamento e as reações físicas. Importante ressaltar que essas cinco áreas estão interligadas e cada aspecto diferente da vida e da experiência de uma pessoa influencia todos os outros. Considerando esses aspectos, fica claro que os pensamentos influenciam o comportamento, humor e até as reações físicas. Nesse sentido, o “positivismo tóxico” não é a solução adequada para as grandes questões da vida. Se tentarmos ter somente pensamentos positivos quando experimentamos qualquer emoção mais intensa, usualmente deixamos de perceber sinais importantes de que algo está errado. É recomendável, ao contrário de negar, considerar o maior número de ângulos possíveis de um determinado problema para encontrar novas conclusões e soluções mais adequadas.

3 - Quem já tem algum distúrbio ou tendência a transtornos psiquiátricos, a positividade tóxica é um desencadeador desses quadros preexistentes, como depressão, ansiedade etc...
Para o filósofo grego Sócrates, somente após a falsidade ser afastada é que a verdade pode emergir. A emoção é um sinal importante para a identificação de situações de vida que devem ser no mínimo pensadas. Negar as emoções dificulta a identificação e a percepção das situações estressantes. Vários estudos demonstram que o estresse continuado e não bem identificado e trabalhado adequadamente está relacionado à piora dos quadros depressivos e ansiosos, além da piora de outras condições de saúde. Fazendo um contraponto, é importante esclarecer que pessoas com tendência depressiva ou ansiosa tendem a focar excessivamente nos aspectos mais negativos, levando também a uma visão distorcida da realidade. O ideal seria contrabalançar. Devemos aceitar e ser verdadeiros com todas as emoções, não ter receio de expressar que se está triste, irritado, deprimido ou ansioso. Reconhecer que não está em um bom momento e saber que isso pode ocorrer com a maior parte das pessoas em algum período da sua vida. Recomendo que ao perceber que está adotando um tipo de comportamento de negação das emoções, de forma repetitiva e automatizada ou está evoluindo com sintomas clínicos limitantes, ou mesmo somatizações, é importante procurar ajuda especializada.

Fonte:https://www.em.com.br/app/noticia/bem-viver/2021/05/30/interna_bem_viver,1270561/positividade-toxica-emocoes-construtivas-e-destrutivas.shtml


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