O Sepultamento de Cristo
O CRISTO REINTERPRETADO: ESPÍRITAS,
TEÓSOFOS E OCULTISTAS DO SÉCULO XIX.
Profa. Dra. Eliane Moura Silva.
UNICAMP/IFCH/Dep. de História.
Durante o
século XIX, no Ocidente, o conhecimento científico tornou-se o crivo
obrigatório da sociedade. A este conhecimento aliou-se a razão, o progresso e o
materialismo. Juntos refletiam o lado luminoso da sociedade. As certezas
racionais afirmaram a instrução, o darwinismo social, a modernização e foram as
bandeiras sob as quais abrigaram-se diferentes segmentos sociais. Este avanço
do evangelho racional e científico teve, como contrapartida, um recuo das
religiões tradicionais, pelo menos nos centros mais urbanizados e
intelectualizados.
Para
cientistas e intelectuais da segunda metade do século XIX, o materialismo apresentava
para a Humanidade um futuro sem sobressaltos, num progresso contínuo e sem
dramas. A razão humana tornava-se todo-poderosa, progressivamente “perfeita” e
o conhecimento material ampliado conduzia a uma confiança absoluta na educação
científica, numa espécie de otimismo messiânico, com o império da Liberdade, da
Felicidade e da Riqueza.(1). O
otimismo combinava com o positivismo e a crença numa evolução ilimitada.
Aliava-se ao desenvolvimento do conhecimento científico, a redescoberta das
culturas antigas, mitológicas e extra-ocidentais. A expansão colonial trouxe
contatos com povos, épocas e culturas diferentes.
Da segunda
metade do século XIX em diante, duas vozes dissonantes alimentaram uma polêmica
recíproca: a causa da ciência e da natureza em nome de uma religiosidade
exclusivamente secular. Contra esta extrema secularização levantaram-se os
direitos irrevogáveis da consciência, da deficiência insanável da Razão e do
poder sobre-humano do Sagrado e do Mistério.
A crise
religiosa revelada desta época manifestou-se, freqüentemente, contra a
oficialidade de todas as formas de tradição, de todas as figuras históricas e
espiritualmente gastas, vazias, sem criatividade ou inventividade. Esta crise
apontou a necessidade de uma religiosidade espiritualmente mais adequada, de
novas utopias de salvação.
As novas
criações religiosas desde o século XVIII e, sobretudo no XIX, são marcadas por
uma concepção espiritualista de inspiração e interpretação das Escrituras, da
recuperação de uma vida interior diretamente em contato com a divindade. Temos,
inclusive, um campo propício para o estabelecimento de vínculos entre a mística
espiritualista, o esoterismo e o racionalismo, num desejo de articular um tipo
de exegese religiosa em bases contemporâneas com as aparências do método
científico, apresentando novas mensagens cristãs. (2).
O pensamento
naturalista seguiu o caminho das novas conquistas da Ciência e da
Epistemologia, com o alargamento da doutrina do conhecimento sobre qualquer
aspecto ou problema do Universo. Mas a forte recuperação da consciência
religiosa, cristã ou não, instituiu uma polêmica sem paralelos.
Um novo e
abundante discurso espiritual procurou integrar Ciência e Fé, Ocidente e
Oriente, o Novo e o Antigo. De um lado, um neo-evangelismo que pregava um
Cristianismo Universal nas bases da tolerância, fraternidade e paz. De outro
lado, o retomar de um ideal humanista buscando reforço nas antigas doutrinas de
uma Verdade Universal, na sabedoria de religiões extra-cristãs. Profetas
modernos, esoteristas, espiritualistas científicos espalharam o gérmen de uma
nova e ampla espiritualidade.(3).
O esoterismo
tornou-se uma definição obrigatória para alguns movimentos religiosos do
período. O termo “esoterismo” define uma doutrina segundo a qual uma ciência,
um sistema de crenças filosófico-religiosas, reflexões epistemológicas e
ontológicas da realidade última não devem ser vulgarizadas e nem divulgadas
senão entre adeptos, conhecidos e eleitos. No século XIX a palavra “esoterismo”
converteu-se frequentemente, em sinônimo de oculto, de ocultismo, sendo
aplicado a campos de estudo e conhecimento como a magia, a mântica e a cabala.
Estas definições abrangentes abarcam uma realidade histórica complexa e difusa.
Crenças, teorias, técnicas místicas e iniciáticas que poderíamos classificar
como esotéricas já eram populares na Antiguidade Tardia, não desaparecendo na
Idade Média, tornando-se importantes na Renascença, atravessando os séculos
XVII e XVIII para ganharem fôrça e expressão no século XIX. Uma definição ampla,
sugere a existência de um campo específico e abrangente, com fronteiras comuns,
debates e metodologias particulares. Porém, o termo aplica-se, de várias
formas, a diferentes concepções religiosas. O “esoterista” é o pensador
-cristão ou não- que desenvolve suas
crenças, estudos e religiosidade sobre três pontos: analogia, teosofia e igreja
interior. A analogia é a crença (ou como será percebido à partir do século do
XVIII, uma lei) segundo a qual existem, entre seres e coisas, relações
necessárias, intencionais que não são necessariamente, temporais ou espaciais:
o análogo atua sôbre o análogo e desta forma explica-se a magia e o
conhecimento que conduz ao “espírito das coisas”. Desta forma, no pensamento
analógico, conhecer o Mundo é conhecer Deus, porque a Natureza representa uma
revelação gradual. A Ciência adquire uma significação religiosa. A teosofia,
que não tem o mesmo significado da Sociedade Teosófica fundada no século XIX,
dá sentido a analogia e compreende tanto uma interpretação profunda de textos
sagrados como a experiência mística pura. O pensamento teosófico insiste em
determinados pontos dos dogmas sôbre os quais a religião constituida e
institucionalizada tende a ignorar para, através desta exploração e indagação
metódica chegar a iluminação interior. A mística especulativa confere a
teosofia o poder de proporcionar o conhecimento e inspiração. A igreja
interior, espiritual e individual, independente de religiões organizadas,
coloca-se como a experiência mística por excelência. A Alma Humana tem origem
divina e, portanto, pode acercar-se de Deus, onde reside esta mesma Alma. A
União divina é imanente a natureza humana e graças a iniciações, conhecimentos
sagrados e secretos, pode-se chegar a este reencontro divino. A iniciação
implica em regeneração que depende de gnose. Esta igreja interior é a única
verdadeira e eterna, ao contrário das Igrejas materiais, que serão sempre
destruídas, sobrevivendo, exclusivamente, a igreja invisível e interior. Este
sentido permanece entre as correntes esotéricas do século XIX surgindo formas
de esoterismo cristão s sofrendo as influências pagãs e místicas do esoteristas
dos séculos anteriores e que incluiam magia, alquimia, meditação, êxtases
místicos, necromancia, cabala, numerologia, ordens secretas, etc. No começo
deste século o orientalismo invadiu a Europa que descobriu os livros do Egito,
da India e do remoto Oriente fornecendo um novo campo de construções e
representações para os movimentos espirituais desta época. Foi o Oreinte
romantizado que alimentou o orientalismo espiritualizado do período.(4).
O
desconhecido, o incompreensível, o sobrenatural, tornaram-se populares. A voga
do ocultismo, magnetismo, magia, espiritismo, esoterismo, espiritualismo,
hipnotismo, homeopatia, de várias versões do misticismo e da religiosidade
oriental, ganhou espaço na sociedade, inclusive nos meios científico,
intelectual e artístico.
No fin de siécle o interesse e as
influências desempenhadas pelo ocultismo é sentido pelo cético Anatole France. Em 1890, ele dirá na Revue Illustrée que “(...) um certo conhecimento das Ciências Ocultas tornou-se necessário
para a compreensão de certas obras literárias do período. A magia ocupou um
lugar importante na imaginação de nossos poetas e romancistas. O fascínio pelo
invisível toma conta deles, a idéia do desconhecido os perseguiu, e o tempo
voltou a Apuleio e Flegon de Trales”. (5).
Este interesse
e curiosidade pelo oculto aliaram-se com
uma forte tendência positivista e
otimista, evolucionista e baseada na ética do trabalho da sociedade burguesa do
período, formando, assim, a base de alguns importantes movimentos místicos e
espiritualistas da segunda metade do século XIX em diante, sobretudo o
Espiritismo de 1848 em diante, a Sociedade Teosófica fundada em novembro de 1875
e diferentes pensadores ocultistas desde a segunda metade deste período.
No caso do
Espiritismo, tratava-se de um grande movimento espiritual, filosófico e
científico centrado no contato regular e sistemático com os mortos, nas
manifestações conscientes dos espíritos desencarnados e nos ensinamentos por
eles transmitidos. Embora a prática de invocar os mortos, de tentar contactar
os mortos seja um aspecto antigo de diferentes culturas e religiões, no
Espiritismo moderno, estas questões adquirem um novo influxo, de acôrdo com os
princípios da ciência positiva, da filosofia secularizada. Se por um lado a
imortalidade da alma e a sua sobrevivência a morte física, possuia o perfil de
um problema filosófico ou teológico passível de ser “equacionado” através de teorias
e da interpretação de textos, por outro, era profunda e intensamente vivenciada
pelas camadas não “eruditas” da população mesclando-se ao seu cotidiano, de
agora em diante, com experiências que
demonstrariam, cientificamente, a origem natural dos fenômenos ditos
sobrenaturais. (6).
Novas imagens
do Céu, do Inferno, das penas espirituais compunham uma nova expressão
religiosa, acenavam com promessas de salvação e esperança, livres das
condenações eternas pesadas nas consciências.(7).
As
representações da sobrevivência espiritual dos mortos em formas etéreas,
fluidas e diáfanas formavam imagens romantizadas. Expressavam uma
particularidade da época na qual materialidade e fluidez podiam ser
representadas e explicadas em associação com a luz, a energia elétrica e, mais
tarde, as ondas de rádio recém- descobertas. Esta era a magia dos espetáculos
da feérica Loiue Fuller, bailarina performática que encantava os teatros da
Belle Epoque com seus espetáculos de dança, jogos de luz e sombra, que lhe
conferiam uma aspecto mágico e sobrenatural.(8).
Na França
organizou-se um movimento espírita muito importante e que exerceu importante
influência inclusive no Brasil, ligado a figura de Allan Kardec.(9). O movimento espírita kardecista
francês colocava-se como cristão. Suas bases de interpretação estavam nos
conhecimentos fornecidos pelos espíritos. Era uma nova revelação das verdades
cristãs, de uma nova interpretação do cristianismo, a terceira revelação da lei
de Deus, onde os ensinamentos de Cristo seriam completados pela aliança com a
Ciência que deixaria de ser exclusivamente materialista. Para esta aliança, o
Espiritismo trazia o conhecimento das leis imutáveis que regiam o Universo
espiritual e suas relações com o mundo material, os astros e a existência dos seres.
Procurou desvendar os mistérios ocultos da grandes verdades do Cristianismo.
A figura de
Cristo na doutrina espírita foi a do mestre, iniciador da mais pura moral
evangélico-cristã, renovadora do mundo e de integração entre todos os homens,
sem raça, cor, classe ou sexo. Era o consolador, pacificador, místico e
espiritual cujos ensinamentos ocultavam-se nas parábolas:
“ Assim o Espiritismo realiza o que Jesus
disse do Consolador prometido: conhecimento das coisas, fazendo que o homem
saiba donde vem, para onde vai e porque está na Terra; atrai para os
verdadeiros princípios da lei de Deus e consola pela fé e esperança.” (10).
O Cristo espírita simbolizou a paciência, a bondade, a afabilidade, a
doçura, a obediência aos desígnios do divino, o perdão, a caridade, o amor ao
próximo, a virtude ativa na prática desapegada do bem. Foi o divino salvador, o
justo por excelência, o mestre da evolução espiritual, o emissário de Deus para
instruir os homens e revelar as coisas ocultas e os mistérios divinos. Cristo
foi antecedido por Sócrates, Platão, Moisés, João Batista, os precursores da
idéia cristã e do Espiritismo.
A natureza da divindade de Cristo foi reavaliada em confronto com o
dogma da identidade Cristo-Deus. Milagres não qualificavam a divindade de Cristo:
eram fenômenos naturais, de qualidade semelhante aos produzidos por médiuns,
videntes, sonâmbulos e curadores através dos séculos e demonstrados, no século
XIX, pelo Magnetismo e Espiritismo. Para os espíritas Cristo não era Deus e uma
correta interpretação dos Evangelhos mostrava isto. Ele era um servidor de Deus
mas Filho do Homem, pertencendo a Humanidade. Suas virtudes o encaminham para
Deus: amor a divindade, ao próximo e a caridade como caminhos da Salvação.
O Espiritismo valorizou a figura do Cristo histórico, o representante
das idéias fundamentais da Igreja primitiva e a parte moral de seus
ensinamentos. Foi o Cristo exemplo, o Cristo interior, imagem de perfeição
Humana:
A
interpretação da figura do Cristo pelos espíritas apoiava-se na tradição
humanista, no contexto científico e histórico de sua época, evolucionista e
positivista, apontando a graduação do conhecimento como elemento definitivo
para a compreensão da progressividade da revelação divina: Moisés e os
profetas, em seguida Jesus, em terceiro a verdade espírita, todas estas fases
proféticas de acôrdo com o progressivo evoluir da Razão, do cultivo das
faculdades espirituais, da capacidade de trabalho constante e dos avanços da
Ciência. Jesus correspondeu ao mundo histórico, a maturidade espiritual de sua
época, as condições de seu tempo.
Em 1885 surgiu
em Avignon, na França, um livro
psicografado por uma senhora de instrução rudimentar que passou a ser conhecido
pelo título de Vida de Jesus: ditada por ele mesmo. Era uma obra
mediúnica que contava uma história de vida de Cristo ditada pelo próprio para
esclarecer aos cristãos sua verdadeira vida, princípios morais e experiências
religiosas. Um Jesus-homem, com suas dúvidas e dramas romanceados, adquirindo
perfeição espiritual depois de sofrimentos e estudos que incluiam a Cabala. Sua
inspiração divina vem dos espíritos superiores que o ensinavam a máxima virtude
e sabedoria, livre das instituições sacerdotais de sua época. Ao contrário, o
Cristo-espírita foi instruido por médiuns que recebiam inspiração direta de
Deus para transmitir aos homens, incluindo explicações acerca da reencarnação:
“Deus manda a todos os mundos instrutores,
mas a cada mundo lhe estão destinados como instrutores, espíritos do mesmo
mundo. Os messias são instrutores avançados, cujos ensinamentos parecem
utopias. Minha missão não podia impor uma regra de conduta em um século de
ignorância, tendo que limitar-se a fazer nascer idéias de revolução nos
espíritos e prepará-los para a renovação do estado social futuro.(...).)”. (11)
A
representação deste Jesus espírita fundamentou uma fé sob uma ótica científica,
social, numa compreensão da natureza e da vida. Revelou uma visão histórica e
otimista da evolução humana, do modo de ser no tempo e na sociedade, a condição
espiritual de uma aliança entre Cristianismo e Ciência, uma confiança nos
milagres científicos e tecnológicos característicos de sua época.
Este mesmo
espírito otimista e positivista marcou o outro grande movimento religioso do
renascimento ocultista da segunda metade do século XIX: A Sociedade Teosófica
fundada em Nova Iorque, em novembro de 1875, por Helena Petrovna Blavatsky.(12)
As doutrinas
filosófico-religiosas da Teosofia apoiavam-se num conjunto teórico eclético e
resultaram um movimento iniciático e parareligioso que influenciou as idéias de
pensadores, cientistas, artistas e acadêmicos. Neste movimento, bastava ler a
obra completa de Blavatsky, tornar-se membro de um grupo teosófico para ser,
gradualmente, iniciado nos mistérios do Universo e da alma imortal
transmigrante em círculos encarnatórios.
Para a
Teosofia a figura de Cristo foi a de uma encarnação das virtudes divinas, de um
iluminado, um adepto dos antigos Mistérios e iniciado na sabedoria oculta,
assim como Pitágoras, Platão, Sócrates, Jâmblico. Jesus-homem, amigo de Deus,
um personagem histórico que expôs suas doutrinas segundo os princípios de
Hermes Trismegistos, Platão, Pitágoras, Amonio Saccas, Filaleteu e outros
iniciados. O objetivo de sua ação e doutrina era o de restaurar a sabedoria dos
antigos, reduzir as superstições e exterminar os erros das diferentes
religiões.
O Cristo dos
teósofos foi interpretado pelo seu caráter esotérico, secreto, característico
do Cristianismo primitivo que teria um lado oculto. Cristo-ocultista, místico,
iniciado e cujas pregações o aproximam de Buda, mas também lutando contra os
males espirituais e sociais, porém um símbolo e exemplo da transformação
interior:
“A vinda de Cristo significa a presença de
Christos num mundo regenerado e, de forma alguma, a verdadeira vinda em corpo
de Jesus Cristo; este Cristo não deve ser buscado nem no deserto nem no
interior da casa nem no santuário de qualquer templo ou igreja construídos por
homens, porque Cristo - o verdadeiro Salvador esotérico não é nenhum homem, mas
o Princípio Divino em cada ser humano”.(13).
Ao lado destes
movimentos, encontramos também diversos pensadores ocultistas dos mais variados
matizes. O Ocultismo neste período foi, básicamente, um campo de conhecimento, práticas, técnicas
e procedimentos intencionais alcançados através dos poderes secretos e
desconhecidos da Natureza e do Cosmo para se chegar a resultados empíricos
como, por exemplo, a sucesssão dos acontecimentos ou a alteração do curso
normal.
Na verdade, costuma-se ligar o surto neo-ocultista
do século XIX a figura do seminarista francês Alphonse Louis Constant,
conhecido pelo pseudônimo de Eliphas Levi. Fortemente influenciado pelo
renascido movimento rosacruz europeu do século XIX, pela maçonaria mística,
pelos estudos da Cabala, por Jacob Böhme, Emanuel Swedenborg e vários místicos
e visionários do século XVIII, Eliphas Levi foi o precursor do surto ocultista
do século XIX. (14).
Sob a perspectiva de Levi, Jesus simbolizava
Deus unido a Humanidade, a divindade humana. Era o Rei dos Magos, um
representante da Alta Magia antiga. Sua história e existência revelavam ser ele
um grande místico e iniciado na sabedoria secreta ancestral. Para Levi, o
Cristianismo do Cristo foi esotérico e mágico e assim poderiam ser explicados
os milagres e sentido oculto de seus ensinamentos, das evocações e da própria
ressurreição. Na perspectiva ocultista o que importava era a Doutrina Secreta
de Cristo:
“ A doutrina secreta de Jesus era esta: Deus
tinha sido considerado um Senhor e o príncipe deste mundo era o mal; eu que sou
o Filho de Deus, vos digo: não procuremos Deus no espaço, ele está nas nossas
consciências e nos nossos corações. Meu pai e eu somos um e quero que vós e eu
sejamos um. Amamo-nos uns aos outros como irmãos. Não tenhamos mais que um coração
e uma alma. A lei religiosa é feita para o homem e não o homem para a lei.
(...).
Eu sou vós e vós sois eu, no espírito da
caridade que é o nosso e que é Deus. Crêde isto e fareis milagres.” (15).
Mas também foi uma vítima da liberdade, um
messias que se revoltou contra a desigualdade, contra o egoísmo e a injustiça
pregando um fim para as velhas sociedades injustas e hipócritas. O verdadeiro
Cristo consolava os sofredores, amparava os orfãos, não separava pobres e
ricos, não julgava nem condenava seus irmãos, ao contrário daquilo que a Igreja
havia feito durante séculos. O segredo da Vida Eterna de Cristo era ter vivido
para os outros e pelos outros: esta era a fonte da eterna juventude
simbolizando a força do Homem-Deus que regenerava a Humanidade através do amor
absoluto.
Dentro desta
tradição ocultista e do esoterismo cristão do século podemos destacar também
Stanislas de Guaita. (16). Nele a
figura de Cristo alcançou um sentido místico e divino absoluto. Para Guaita, de
acôrdo com a tradição cabalista, a lenta e progressiva descida do Espírito na
Matéria passou pela divinização de Adão-Kadmon, cuja alma coletiva foi Jesus
Cristo. Cristo era, portanto, Espírito Divino, a Absoluta Bondade e Verdade, um
representante da Alta Magia herdada dos caldeus através de Abraão, reformada
por Moisés e divinizada por Cristo. Assim o Cristianismo oculto e secreto, a
verdadeira Igreja do Cristo, procurava desenvolver a positividade do homem
tornando-o um Ser de Vontade:
“Creio na imortalidade da Igreja do Cristo, pois
Cristo realizou hierarquicamente o Grande Arcano sobre a Terra e divinizou-se
pelo seu espírito até no ventre de sua mãe. Nasceu de Deus porque era
fatalmente destinado a realizar o todo divino em si.” (17).
Em Guaita
prevaleceu o significado oculto do Cristo Glorioso, o símbolo da Divina Magia.
Cristo era o Fogo regenerador, veículo de vida e reintegração, a divindade
manifestada em Verbo, a união do Espírito e da Alma universais, aquele que veio
resgatar o homem do fundo da Criação
para passa para um novo mundo de Deus. Todas estas interpretações eram
marcadas por uma forte carga mística, explorando e sentido esotérico das
alegorias:
“ Pois, o Adão decaído ou Cristo doloroso,
síntese mística da Igreja Militante, geme, aprisionado no Universo-Substância
que elabora, após ter passado o ato; o Adão-Celeste ou Cristo Glorioso, síntese
da Igreja triunfante, preenche sempre com sua glória o Universo-Essência, que é
sua Obra.” (18).
O Cristo em
missão divina para resgatar as verdades eternas, dando-lhes uma roupagem nova,
mais coerente com a alma mística do mundo rejuvenescido: foi assim que Guaita
viu o Cristo.
Os movimentos
espírita, teosófico e ocultista não foram os mesmos, porém tiveram vários
elementos comuns: Todos revelavam uma profunda insatisfação com o Cristianismo
institucional nas suas mais variadas vertentes. A síncope histórica do
Cristianismo no período aqui apresentado produziu um grande vazio entre os
intelectuais e classes médias da época.
Este vazio foi sendo preenchido por estes movimentos religiosos, anti-clericais
e de livre-pensadores, assim como pelo desenvolvimento de teorias políticas e
sociais libertárias. Assim, alguns tentaram chegar à fonte da matéria prima da
Criação, da verdadeira natureza de Deus, dos sentidos ocultos da natureza e do
Cosmos, enquanto outros buscavam Mestres invisíveis, comunicação com espíritos.
Em suma, a
busca das Origens, marca de diversas vertentes do conhecimento intelectual da
segunda metade do século XIX, inclusive na História, na linguística, na arte e
na emergente psicanálise. A procura das origens puras da religião articulou-se
com a procura das origens das instituições e criações culturais humanas, num
prolongamento da Origem das Espécies, da origem da vida, da terra e do
Universo, numa nostalgia pelo primordial e original.(19).
O interesse
pelo oculto, pelo sobrenatural, pela transformação espiritual dos indivíduos e
da sociedade, as tentativas de organizar movimentos parareligiosos que
respondessem a perguntas existenciais profundas e ocupassem o vazio deixado
pela crise das religiões tradicionais foi uma das marcas da história
intelectual deste período.
Todos estes
movimentos marcaram o pensamento de sua época. Solaparam certezas políticas,
científicas e religiosas, metáforas ideológicas e o imperialismo. Tentaram
oferecer alternativas ao liberalismo e à crise social. A idéia geral de que o
materialismo, a razão e a ciência reinaram soberanos neste período da História
deve ser repensada à luz destes movimentos.
Notas:
1) Eliade, M. Origens,
Lisboa, Ed. 70, 1990, p. 60.
2) Ver: Faivre,
A. Acces to the western esoterism, NY,
Suny Series, State University of NY Press, 1996, pp. 49-94.
Marty, M. The
Occult Establishment, Social Research, 37: 212-30, 1970
Tiryakin, E.A. Toward
the sociology of esoteric culture, American Journal of Sociology,
78: 491-512.
Reed, J. The
Occult: Studies and Evaluation, Bowling Green,Ohio, 1972.
O’Keefe, D.L. Stolen
Lightning - The Social Theory of Magic, NY, Vintage Books, 1983.
Galbreath, T. The
History of Modern Occultism: a Bibliographical Survey, Journal of Popular
Culture, 5: 126-54, Winter 1971.
Guerin-Ricard, L.
História del Ocultismo,
Plaza Janes, Barcelona, 1967.
Faivre,Antoine/Needleman,Jacob
(org.)Modern Esoteric Spirituality. NY, Crossroad Publ., 1991. Vol 21 da World of Spirituality: An Encyclopedic
History of the Relious Quest.
James,Marie-France.
Ésotérisme, Occultisme,
Franc-maçonnerie et Christianisme aux XIX et XX siècles. Explorations
bio-bibliografiques, Paris, Nouvelles Ed. 1981
Mozzari,
Eloise. Magie et Superstitions de la la
fin de L’Ancien Régime a la Restauration, Paris, Robert Lafond, s.d.
3) Eliade,
M. Mefistófeles
e o Andrógino, SP, Martins Fontes, 1991, pp. 1-7.
4) V, Faivre, op.cit. pp. 82-95.
5) São muito fortes as ligações entre os movimentos
literários e a sensibilidade mística e espiritualista do século XIX,
principalmente no Romantismo e Simbolismo. Byron, Yeats, Longfellow, Poe, Hugo,
Huysman, entre outros, expressavam esta tendência. Ver Eliade, M. Ocultismo, Bruxaria e Correntes Culturais,
BH, Interlivros, 1977, pp.57-76; Christy,A.
The
Orient in the American Transcendentalism, NY, Octagon Books, 1963; Berry, Thomas. Spiritualism in Tsarist Society and literature, Baltimore,
Edgar Allan Poe Society, 1985; Kerr, Howard. Mediuns, spirit-rappers and roaring radicals: Spiritualism in American literature (1850-1900),
Urbana, Univ. of Illinois Press, 1972; Faivre, A (org) Cahiers de L´Hemetism: Magie et Literature, Paris, Albin
Michel, 1989.
6) Silva, E. M. Vida
e Morte: O Homem no Labirinto da Eternidade, Tese Doutorado, UNICAMP,
1993, pp. 164-5.
7) “ .
op.cit., p.166.
8) “ .
“ , p.167
9) Allan Kardec era o pseudônimo do professor e médico
francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-69) que organizou o movimento
espírita na França à partir de determinadas obras mediúnicas. Sua biografia e
envolvimento com as doutrina espírita são exemplares para entender os caminhos,
nem sempre bem conhecidos, que tomaram as relacões entre Ciência e Fé, Razão e
religião no século XIX. Suas principais obras foram O Livro dos Espíritos (1858), O Céu e o Inferno (1865), O Evangelho
segundo o Espiritismo (1866), A Gênese (1868).
10) “O
Cristo Consolador” in Kardec, A. O
Evangelho segundo o Espiritismo, RJ, FEB, 1972, pp.35.
11) Vida de
Jesus ditada por ele mesmo , ( publicado na França em 1885). RJ,
Freitas Bastos, 1995, p.168.
12) Aventureira, contraditória, talentosa, esta russa
fugiu a todos padrões religiosos e sociais que a época impunha às mulheres,
sobretudo de certas categorias mais elevadas da sociedade. Emancipou-se muito
cedo dos papéis tradicionais atribuídos a mulher, percorreu o mundo por lugares
inóspitos, num tempo que somente aventureiros arrojados ousavam desafiar os
limites do mundo civilizado e confortável. No campo das idéias
filosófico-religiosas, provocou escândalos ao repudiar o Cristianismo e
divulgar ao mundo o conhecimento tradicional da Índia, numa época em que o
neo-colonialismo submetia este continente a forte opressão e era considerado um
mundo selvagem e primitivo onde pululavam as crendices e superstições.
Dizendo-se inspirada espiritualmente por mestres oriundos do Extremo Oriente,
sobretudo do Tibete e da Índia, Blavatsky (1831-91) produziu numerosas obras de
revelação ocultista. Em Isis revelada
(1877), A Doutrina Secreta,(1888) entre outras obras foram lançadas as
bases de uma teoria de evolução espiritual indefinida através da metempsicose e
da iniciação progressiva.Ver.H.P.
Blavatsky: Collected Writings (1874-8), Adyar/Madras, Theosophical
Publishing House, 1966.
13) Blavatsky, H.P. A Doutrina Oculta (publicado em 1889). SP, Hemus, 1977,
p.160.
14) Eliphas Levi era o pseudônimo de Alphonse Louis
Constant (1810-75). Maçom, rosacruz, teósofo, iniciado em várias sociedade
secretas da época, Levi foi um dos líderes do renascimeto ocultista do século
XIX e influenciou todas a gerações posteriores. Durante sua juventude teve
grande atividade política radical que custaram três prisões, além de intensa
produção literária. À partir de 1856 começa a escrever sobre Magia e Ocultismo.
Suas principais obras são: Dogma e
Ritual da Alta Magia(1856), História da Magia (1860), A Chave dos Grandes
Mistérios (1867), Grande Arcano (1868). Sobre suas atividades como
ativista ver Bowman, F.P. Eliphas
Lévi Visionnaire Romantique, Paris, Presses Universitaires de France,
1969.
15) Levi, E. Grande Arcano, SP, O
Pensamento,1926, pp. 111-2)
16) Marquês Stanislas de Guaita (1869-98) foi um
destacado ocultista de sua época e ligado ao movimento simbolista na
literatura. Como literato escreveu Les
Oiseaux de Passage (1881), La Muse Noire (1883) e Rosa Mystica (1885).
Encontrou seu caminho como esoterista e ocultista após ler obras de Eliphas
Levi. Como ocultista publicou No
Umbral do Mistério (1886), O Templo de Satã (1891), A Chave da Magia Negra (que só foi publicado
em 1897), O Problema do Mal (1891).
17) Guaita, S. De. No
Umbral do Mistério, SP, Martins Fontes, 1985, p. XVII.
18)
“ Le Probléme du Mal, Paris, Ed.
De la Maisnie, 1975, pp. 10-1).
19) Eliade, M. Origens,
Lisboa, Ed. 70, 1989, pp.55-72.
Fonte:https://www.unicamp.br/~elmoura/Interpreta%e7%f5es%20de%20Cristo.doc
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