CORONAVÍRUS: É PRECISO APRENDER COM A DOENÇA


Djamila Ribeiro (Foto: Ilustração: Mariana Simonetti)
Djamila Ribeiro: "A doença pede respeito, cuidado, proteção"  (Foto: Ilustração: Mariana Simonetti)
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Coronavírus: É preciso aprender com a doença


DJAMILA RIBEIRO,FILÓSOFA*
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Em sua nova coluna, a filósofa e escritora Djamila Ribeiro escreve sobre a pandemia a partir da perspectiva das religiões afro-brasileiras: "Na matriz de religião afro-brasileira, a doença é um Orixá que atende pelo nome de Obaluaiyê, também conhecido como Omulu. A doença vem para que todos fiquem em silêncio e anuncia transformações na sociedade que, esta sim, está adoecida há muito tempo"

A doença pandêmica tem sido uma grande professora, revelando-nos realidades que recusávamos enxergar e ensinando um novo mundo possível. Na matriz de religião afro-brasileira, a doença é um Orixá que atende pelo nome de Obaluaiyê, também conhecido como Omulu. Pode parecer estranho para a tradição cristã a doença ser uma divindade, mas na tradição que cultuamos não há essa estranheza. Pelo contrário, a doença vem para que todos fiquem em silêncio e anuncia transformações na sociedade que, esta sim, está adoecida há muito tempo.
DJAMILA RIBEIRO
Nesse sentido, como bem afirma o babalorixá e doutor em semiótica pela Universidade de São Paulo Sidnei Barreto, “no Ocidente, é impossível crer que a doença é algo bom e necessário, mas é. A doença pede respeito, cuidado, proteção. É um alerta. Sim. Nós temos uma divindade-doença, e se não a tivéssemos seríamos todos bestas das mais violentas, prontas a matar e morrer prematuramente e sem sentimentos ou empatia. A doença – Obaluaiyê – nos ensina o valor da vida. O valor do cuidado com a saúde, o valor do ser humano e do criador e dos Orixás que nos habitam. Obaluaiyê pede respeito. Obaluaiyê avisa que a sociedade está doente e que adoece porque se esqueceu do valor da vida coletiva”.
Será que um país como o Brasil, que subiu o desmatamento já altíssimo em 30% durante o isolamento, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), tem aprendido com a pandemia?
Pobre da civilização que não se silencia pela passagem de Omulu e não escuta as transformações que ele anuncia. Será que um país como o Brasil, que subiu o desmatamento já altíssimo em 30% durante o isolamento, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), tem aprendido com a pandemia? O desmatamento neste ano alcançou, até abril passado, o tamanho de uma cidade como Nova York, megalópole estadunidense. A considerar o nível de depredação do planeta pelos seres humanos, em especial pelos latifundiários e especuladores brasileiros, o coronavírus não será a única pancada coletiva que assolará a população em um futuro próximo.
Nos centros urbanos, as raízes coloniais de uma sociedade fundada sobre a injustiça e a desigualdade dão um formato à pandemia. Dados iniciais do Ministério da Saúde mostram que, no Brasil, a doença é mais letal entre negros do que entre brancos. As razões para isso são várias. Segundo Thiago Amparo, advogado e professor de diversidade na Fundação Getulio Vargas, “nos ombros de mulheres negras recai desproporcionalmente os cuidados de sua família e serviços precarizados. Doenças respiratórias são agravadas por condições socioeconômicas, afetando de modo desigual negros. Isso sem citar a extensa literatura que mostra como médicos gastam menos tempo e recursos com pacientes negros do que com os brancos”. A realidade é semelhante nos Estados Unidos. Na Louisiana, 70% dos mortos são negros, embora apenas um terço da população seja negra. Em Chicago, onde menos de um terço da população é composta por negros, os mortos ultrapassam a metade.
 Precisamos aprofundar o debate e questionar as raízes desse sistema, caso desejemos viver um tempo posterior à doença. Nesse sentido, uma pergunta é necessária: será que discursos políticos baseados em inumanidades e em desmonte público podem seguir?
No Brasil, a campanha #FiqueEmCasa repete que a prática é para quem pode ficar. E pergunta-se: qual o grupo social mais privilegiado e com condições de ficar em casa? Assistindo ao telejornal antes de escrever este texto, a repórter chamava a atenção das pessoas por irem às agências bancárias tirar dúvidas sobre o auxílio emergencial, uma vez que não seria necessário, pois bastaria fazer isso “pela internet”. Em seguida, corta para o apresentador dizer, em tom de obviedade e com voz vagarosa, como se estivesse a falar com alguém sem condições cognitivas de entender o que ele estava dizendo, que bastava o acesso à internet para regularizar o que for preciso. Ora, será que o apresentador e a equipe que prepara o editorial têm ideia do número de brasileiros e brasileiras que não possuem acesso à internet? Segundo dados de 2019 do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), 30% dos brasileiros não têm acesso à rede. Muitos não possuem saneamento, água encanada, materiais de higienização para se prevenir.
Ou seja, precisamos aprofundar o debate e questionar as raízes desse sistema, caso desejemos viver um tempo posterior à doença. Nesse sentido, uma pergunta é necessária: será que discursos políticos baseados em inumanidades e em desmonte público podem seguir?


Djamila Ribeiro: Filósofa brasileira é apontada como ...

*Djamila Ribeiro é mestre em filosofia política e feminista, autora dos livros O Que É Lugar de FalaQuem Tem Medo do Feminismo Negro? e Pequeno Manual Antirracista.
(@djamilaribeiro1)





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