COMO O ISOLAMENTO EM CASA PODE SER TRANSFORMADOR? - ESPECIALISTAS INDICAM CAMINHOS

Como o isolamento em casa pode ser transformador? Especialistas indicam caminhos (Foto: Rafael Jacinto)

Como o isolamento em casa pode ser transformador? Especialistas indicam caminhos

O inédito confinamento da população em escala global desperta sentimentos desconhecidos e perguntas ainda sem respostas ao passo em que as pessoas se confrontam com a realidade e consigo mesmas. A boa notícia é que a experiência pode ser transformadora se conseguirmos conferir nova dimensão ao isolamento em casa

E agora, José? O verso de Carlos Drummond de Andrade volta com força ao imaginário nos dias atuais. Quem diria que um novo vírus iria redesenhar a vida de bilhões de pessoas e deixar tantas perguntas em aberto? O perigo invisível transformou casa e caos em faces da mesma moeda. Se lá fora pairam medos e incertezas, é dentro do lar que as pessoas se protegem – mas isso não torna o ato de se isolar menos penoso. “O confinamento possui várias etapas, como qualquer situação em que há um corte abrupto”, explica a psicanalista Vera Iaconelli, doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). “Primeiro vem a negação, depois o choque, a revolta. Até que assumimos: é real e precisamos encarar isso.”

Como o isolamento em casa pode ser transformador? Especialistas indicam caminhos (Foto: Rafael Jacinto)
Para o fotógrafo brasileiro Rafael Jacinto, que vive há um ano em Milão, uma das maneiras de lidar com a Covid-19 foi registrar imagens da nova realidade. Ele viu a cidade, antes tão viva e pulsante, virar um deserto. “Mudou tudo desde que declararam a quarentena aqui”, lembra. “A ideia de fotografar o isolamento surgiu após duas semanas, quando entendi que as coisas não voltariam tão cedo ao normal.” Munido de smartphone e um aplicativo que conecta vizinhos, ele se disponibilizou para clicá-los nas janelas, fechados em suas residências. “Na manhã seguinte, recebi muitos contatos de gente interessada”, diz. Assim nasceram as imagens que ilustram esta matéria. O olhar de Rafael, a partir da rua, mira os habitantes dos apartamentos por volta de 18h30, horário em que ainda há um resquício de sol e, ao mesmo tempo, as luzes das casas já se acenderam, insinuando os interiores.
Como o isolamento em casa pode ser transformador? Especialistas indicam caminhos (Foto: Rafael Jacinto)
No Brasil, desde meados de março, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu que o vírus havia se espalhado em escala mundial, cada estado implantou suas próprias medidas de distanciamento social a fim de minimizar infecções. Com tantas empresas e estabelecimentos fechados, o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas estima que até 5 milhões correm o risco de perder o emprego no segundo trimestre deste ano. Neste cenário instável, aqueles com possibilidade de fazer home office se agarraram a ela. “Mas quem achou que ficar em casa seria como sair de férias já notou que não é assim”, aponta Vera. Isso sem mencionar o desafio extra de equilibrar as obrigações profissionais com a rotina de aulas on-line das crianças. “As pessoas estão passando por privações. No paralelo, intensificam-se as relações dentro de casa, com quem você está confinado e até com você mesmo. Não é pouca coisa. É preciso acessar recursos internos para administrar o tempo e criar uma agenda, o que requer organização e planejamento”, diz a psicanalista. Tudo isso pode suscitar um mix de sentimentos nada agradáveis. Normal experimentar angústia, medo, tristeza. Mas o sinal de alerta acende quando o sofrimento psíquico é muito intenso ou paralisante – aí chegou a hora de ouvir a opinião de um profissional. Atendimentos virtuais com psicólogos e psiquiatras, até mesmo gratuitos, aumentaram desde o início da pandemia. Vera cita ainda outro tema preocupante na quarentena: o abuso de medicações controladas, álcool e drogas.
Como o isolamento em casa pode ser transformador? Especialistas indicam caminhos (Foto: Rafael Jacinto)
DENTRO DA MENTE
Segundo levantamento da agência de notícias AFP, em torno de 3,9 bilhões de pessoas em todo o mundo já passaram pelo isolamento desde o início da crise – mais da metade da população do planeta. Você, possivelmente, faz parte da estatística. Se a nova rotina lhe parece desafiadora, saiba que não está só. Uma pesquisa do Institute for Employment Studies, no Reino Unido, com 500 trabalhadores, constatou que 50% estavam infelizes com o desequilíbrio entre home office e vida pessoal, 33% se sentiam sozinhos e apreensivos, e 64% relataram insônia. Sem o encontro diário com familiares, amigos e colegas, as interações, relações e diálogos diminuem muito, mesmo com contatos via telefone ou vídeo. Além de fechados no âmbito doméstico, estamos inevitavelmente mais voltados a nós mesmos, ao nosso interior, essa casa primeira. E não é fácil se ver assim. “Muito provavelmente, pessoas em quarentena desenvolverão oscilação de humor, sono irregular, ansiedade, raiva, irritabilidade, exaustão emocional, depressão e estresse pós-traumático”, escreveu o professor de psicologia Elke Van Hoof, da Universidade Livre de Bruxelas, em artigo publicado pelo Fórum Econômico Mundial. Ele entende este inusitado momento histórico como o maior experimento psicológico já realizado, e prevê que os efeitos sobre a saúde serão melhor compreendidos em até seis meses.
Como o isolamento em casa pode ser transformador? Especialistas indicam caminhos (Foto: Rafael Jacinto)
Uma revisão de estudos conduzida pelo King’s College, de Londres, mostrou que a duração do isolamento, o medo da doença, a frustração, o tédio, os prejuízos e o acesso à informações inadequadas configuram as principais fontes de estresse nessa situação. Aliás, consumir notícias com critério, sem excessos e provenientes de fontes confiáveis é uma das recomendações da OMS para conservar a sanidade mental. E quais são as outras estratégias para enfrentar tempos tão duros? “Todos os dias, a pessoa deve se levantar, tomar banho e se arrumar. É essencial montar uma rotina e destinar um canto tranquilo ao home office”, ensina o professor e psiquiatra Wagner Gattaz, diretor do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. Ele sublinha a importância de usufruir das tecnologias disponíveis para conduzir reuniões, falar com amigos e família, enfim, socializar. “O distanciamento se limita ao físico”, diz. Manter o corpo em movimento, dentro do possível, também influencia o equilíbrio psíquico, além de contribuir coma imunidade. E, claro, prever momentos prazerosos. Um estudo recente publicado pela British Academy of Sound Therapy revelou que ouvir 13 minutos de música lenta, com melodia simples e sem letra, basta para aliviar tensão muscular, minimizar pensamentos negativos e propiciar paz e satisfação. “Mais do que nunca, o lar representa segurança, proteção e aconchego. Evite enxergá-lo como prisão”, aconselha o médico.
Como o isolamento em casa pode ser transformador? Especialistas indicam caminhos (Foto: Rafael Jacinto)
DENTRO DA CASA
Para Angelo Bucci, fundador do escritório SPBR Arquitetos e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, vivemos uma conjuntura muito particular com relação às residências. “Elas vêm desempenhando papéis estendidos. Precisam acolher o convívio intenso das famílias, que, antes, mal se viam ao longo do dia”, reflete ele. Mais do que observar os aspectos arquitetônicos de seus lares durante os dias de confinamento, Bucci acredita que os moradores vão se ligar nos pequenos atos cotidianos. “Espero que todos cozinhem mais, aprendam a apreciar o sossego doméstico e valorizem o contato como outro. Que a reclusão não nos convença de que é melhor trabalhar à distância, e, sim, ressalte a relevância de estarmos juntos”, sintetiza. Mas como a arquitetura e a decoração conseguem nos ajudar a vencer essa fase com mais leveza? “A palavra lar remete a um ambiente de aconchego, de restauração. Ali não podem faltar objetos, lembranças e mobiliários que nos vinculem à nossa história”, resume a arquiteta Cláudia Garcia, vice-diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB). Fato: quanto menor a conexão emocional com a residência, mais sofrido tende a ser o isolamento nela. Se esse laço ainda não existe, chegou, portanto, a hora de criá-lo. A sugestão da professora é renovar o universo entre quatro paredes com pequenas atitudes guiadas por gostos pessoais. “Para os que amam ler, vale montar um cantinho de leitura com poltrona, mesinha e abajur. Quem curte meditação pode colocar um tapete felpudo e confortável num local reservado para a prática, com velas. E os que gostam de trabalhos manuais devem investir num miniateliê”, ensina.
Cláudia reforça a potência de outras medidas simples, porém eficientes, como abrir as janelas para que o ar circule e a luz natural entre. Cultivar plantas e distribuir vasos de flores pelos ambientes também faz toda a diferença para o bem-estar – um estudo da Universidade de Michigan mostrou que uma dose diária de 20 minutos de contato com plantas reduz os níveis de estresse. E a lista continua: organizar gavetas, doar o que não se usa, consertar um móvel, repintar uma parede, redesenhar o layout da sala, imprimir fotos antigas, espalhar porta-retratos pelos cômodos, mudar os quadros de lugar... opções não faltam para estabelecer conexões com os espaços que habitamos.
Como o isolamento em casa pode ser transformador? Especialistas indicam caminhos (Foto: Rafael Jacinto)
VAI PASSAR
Até o fechamento desta matéria, no final de abril, Milão não havia divulgado previsão de término do confinamento e o fotógrafo Rafael, sua esposa e os dois filhos continuavam dentro do apartamento. Por lá, a vida segue com pensamentos positivos e criatividade. “Dá trabalho manter tudo em ordem com quatro pessoas aqui, 24 horas por dia. Agora mesmo, há uma barraca no meio sala, feita de guarda-chuvas e cobertores para minha filha de 5 anos brincar”, revela Rafael. “É uma montanha-russa de humores, mas nós nos apoiamos, respeitamos os limites de cada um, e tentamos estabelecer uma rotina saudável.” No Brasil, boa parte da população também segue em isolamento em nome do controle da disseminação da doença. Para a psicanalista Vera Iaconelli, este episódio guarda o potencial de modificar profundamente a relação do brasileiro com a casa. “No nosso país, o lar de alguns é todo terceirizado, o que mantém um nível de limpeza e de ordem que só existe aqui, por causa da absurda desigualdade social. Muitas questões serão revistas.” O psiquiatra Wagner Gattaz concorda que tudo estará diferente após a tempestade. “Esta tragédia vai mudar o mundo. Tenho certeza de que a humanidade sairá dessa melhor do que entrou. A pandemia despertou em nós um anseio por solidariedade, de atuar mais no coletivo e menos no individual”, defende. Se muitas perguntas continuam pairando, algumas respostas já se esboçaram. Cheguem logo, novos tempos.
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"Mais do que nunca, o lar representa segurança, proteção e aconchego. Evite enxergá-lo como prisão""
Aconselha o psiquiatra Wagner Gattaz, do HC-USP
Fonte:https://casavogue.globo.com/Interiores/Gente/

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