Indígenas com
máscaras navegam pelo rio Ariaú, a 80 quilômetros de Manaus.RICARDO OLIVEIRA / AFP
Os indígenas da Amazônia lançam um SOS para pedir proteção ante
a pandemia
As
primeiras mortes e o avanço dos contágios ativam os alarmes na região da
fronteira tripartite
São Paulo
/ Bogotá / Lima - 06
MAY 2020 - 18:23 BRT
Um território
vasto e de selva, com uma população vulnerável, espalhada e majoritariamente
indígena, redes hospitalares deficientes e sob a jurisdição de vários países. O coronavírus, que ataca com ferocidade o
sistema respiratório, também põe em perigo os habitantes do chamado pulmão do mundo.
A Amazônia, esse lugar remoto e biodiverso onde as mercadorias fluem pelos rios
em vez de rodovias, acendeu os alertas das autoridades do Brasil, Colômbia e
Peru ante o avanço da pandemia.
A
covid-19 representa uma ameaça ainda mais grave para as comunidades indígenas,
historicamente dizimadas por epidemias levadas a elas pelo homem branco. Seus
defensores alertam para o risco de genocídio se nenhuma medida for adotada. É
por isso que os indígenas brasileiros pedemque a Organização Mundial da Saúde
crie um fundo especial de emergência para protegê-los.
Os sinais de
alarme proliferam no Brasil, que acumula quase 8.000 mortes e 115.000
contagiados. A doença causou seis mortes em aldeias de índios e chegou à cidade
mais indígena do país. Na semana passada foram detectadas as primeiras
infecções em São Gabriel da Cachoeira, na Amazônia, apesar de há um mês as
autoridades terem suspendido o transporte fluvial e aéreo para esta remota
localidade na fronteira com a Colômbia e a Venezuela. A tentativa de isolá-la
fracassou. Estes casos são especialmente relevantes porque 90% dos moradores
deste município, do tamanho da Bulgária, são indígenas, mais vulneráveis à
covid-19 do que os demais brasileiros. Embora tenha um hospital administrado
pelo Exército, a UTI mais próxima fica a 850 quilômetros de distância, em
Manaus, a capital do Estado, duramente castigada pela pandemia. Os leitos
de UTI da cidade mais populosa da Amazônia estão saturados há dias. O aumento
das mortes obrigou à abertura de valas comuns. “Fracassamos”, admitiu o
prefeito Arthur Virgilio Neto, referindo-se ao fato de a população não estar
cumprindo a quarentena, ignorando suas recomendações e do governador.
O fotógrafo Sebastião Salgado, imerso em um projeto
monumental na Amazônia, conseguiu o apoio de dezenas de
personalidades da cultura —de Ai Wei Wei a Meryl Streep e Pedro Almodovar— para exigir das três
instâncias de poder no Brasil medidas urgentes de proteção. A Comissão Arns é
uma entidade brasileira que pede o envio de forças de segurança para impedir a
invasão de terras indígenas e expulsar aqueles que já estão nelas. A veterana
antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, da Comissão Arns, explica em entrevista
por telefone que 23 povos indígenas vivem na região de São Gabriel da Cachoeira.
Observa que o primeiro yanomami a morrer de covid-19 era um adolescente de 15 anos que
“contraiu o vírus em terras invadidas por garimpeiros de ouro”, e que o vírus
poderia facilmente dizimar comunidades, como a malária levada nos anos oitenta
pelos garimpeiros às terras yanomamis.
Cunha critica
o fato de alguns grupos recentemente contatados que moram longe dos rios terem
que ir até as cidades para receber a ajuda do Bolsa Família porque, diz ela,
“as políticas públicas brasileiras nunca foram adaptadas às pessoas que vivem
de maneira diferente (da maioria), como povos indígenas”. Ela insiste que
"isso é perigosíssimo em uma situação de pandemia, porque os
recém-contatados ainda não têm defesas imunológicas". A antropóloga
destaca que "curiosamente copiamos uma estratégia indígena", o
isolamento, para enfrentar esta pandemia. Há povos inteiros, conta, que se
isolaram voluntariamente após experiências traumáticas com garimpeiros ou
invasores de territórios.
Também na
Colômbia, as comunidades indígenas optaram por se isolar em suas
comunidades com medo de pegar o vírus. Bogotá, uma cidade andina de mais de
sete milhões de habitantes, continua sendo o epicentro da covid-19, com mais de
3.000 dos quase 9.000 casos detectados no país. Mas o distante Amazonas, com
uma rede hospitalar precária, se tornou o departamento colombiano com os mais
recentes contágios. Depois de passar mais de um mês sem casos detectados, em
menos de duas semanas chegaram a 230 positivos. Sua capital, Letícia, no extremo
sul do mapa em forma de losango do território colombiano, tem a maior taxa de
infecções do país.
A inquietação
tomou conta de um município que registra 13 mortes relacionadas à covid-19.
Entre elas, um rosto indígena bem conhecido, o de Antonio Bolívar, o ator de 75
anos que interpretou Karamakate no premiado filme O Abraço da Serpente.
Seu personagem era o encarregado de guiar na selva um etnobotânico estrangeiro
que procurava uma planta milagrosa, na produção de Ciro Guerra e Cristina
Gallego, candidata ao Oscar em 2016.
Como parte de
sua resposta para conter o coronavírus, a Colômbia fechou formalmente suas
fronteiras desde 17 de março, mas os limites são nebulosos na floresta
amazônica. Leticia está localizada na tríplice fronteira, onde a mobilidade
constante dificulta a criação de barreiras. Separada por uma rua da Tabatinga
brasileira, são cidades siamesas com uma troca comercial fluida, muito perto da
ilha peruana de Santa Rosa. Mercadorias e viajantes costumam chegar de Manaus,
a grande cidade amazônica.
O município
colombiano, de 79.000 habitantes, possui apenas 68 leitos hospitalares, quatro
de cuidados intermediários e nenhuma UTI. Quando um paciente precisa de
atendimento especializado, costuma ser enviado de avião para Bogotá, a mais de
mil quilômetros de distância. Para agravar o panorama, há menos de um mês os
funcionários do Hospital San Rafael renunciaram a seus postos, alegando falta
de garantias trabalhistas e condições de segurança.
Essa
vulnerabilidade manifesta e histórica preocupa o Governo de Iván Duque. Na
Amazônia, “temos um foco que merece toda a nossa atenção”, declarou o
presidente em seu programa diário para tratar da pandemia. Ainda em plena
quarentena, o ministro da Saúde, Fernando Ruiz, visitou Letícia no domingo. Lá,
prometeu o envio de remédios, máscaras faciais, gel antibacteriano e outros
itens de higiene, bem como a entrega de ventiladores e a contratação de pessoal
de saúde. De todo modo, a entrega depende da Força Aérea da Colômbia, que no
final da semana passada levou um laboratório móvel para testes de covid-19. O
modelo epidemiológico do Ministério prevê que, durante o próximo ano, metade da
população estará suscetível ao contágio, e a saúde das etnias indígenas é uma
das principais preocupações.
O panorama é
igualmente complexo no lado peruano da tríplice fronteira. Em Caballococha, a
localidade mais importante, morreram com sintomas de covid-19, entre segunda e
terça-feira, dois idosos e uma mulher --da comunidade de Bellavista Callarúcom,
de acordo com relato de Francisco Hernández Cayetano, presidente da Federação
das Comunidades ticuna e yaguas do Baixo Amazonas. “Cerca
de 3.000 pessoas vivem nessa comunidade e só há uma pessoa atendendo no posto
de saúde. A maioria tem essa doença, mas não sabe porque não foram feitos
testes, o posto de saúde não tem nenhum medicamento”, denuncia em diálogo com
este jornal. Ele supõe que os três que morreram foram infectados quando
viajaram para a ilha de Santa Rosa para receber subsídios no banco.
Caballococha
faz parte da região de Loreto. Com 62 mortes e 1.500 dos mais de 50.000 casos
detectados no Peru, concentra um grande número de povos indígenas que não
receberam atenção nem informações específicas do Estado para enfrentar a
pandemia. “Não sei a quem pedir apoio. Que se lembrem de nós ... eu me sinto
impotente por causa de toda esta situação ”, diz o apu (chefe
indígena) Hernández Cayetano. Ele pede que enviem médicos até a fronteira.
"Aqui não temos como salvar quem fica doente”, lamenta.
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