REFLEXÕES PARA TEMPOS DE GUERRA E MORTE POR CORONAVÍRUS-A VISÃO DE UMA PSICANALISTA SOBRE A DESILUSÃO, PERECER PSÍQUICO E A QUARENTENA
REFLEXÕES PARA TEMPOS DE GUERRA
E MORTE POR CORONAVÍRUS
Freud segue ocupando-se do mesmo tema
durante vários anos de sua vida. Quase vinte anos depois dessas reflexões,
Freud escreve uma carta em resposta à pergunta dirigida a ele por Albert
Einsten: “Porque a guerra”[1]?
O leitor já deve intuir, senão
concluir, de imediato, a razão de retomarmos essas ”Reflexões” e o conteúdo da
carta, no sentido de extrair desses escritos, uma luz para nosso obscuro tempo.
A atualidade das reflexões de Freud,
impressiona. Estamos sim, em tempos de guerra e morte. Guerra contra o COVID-19
que se alastra em velocidade absurda e tem mutações que driblam a ciência a
cada instante, à despeito de cientistas assumirem lugar preponderante no front,
estarem exercendo sua função no mundo, empenhando todo seu esforço e
investimento na busca de vacinas, de remédios e de desativar seu funcionamento
de contágio, ainda sem sucesso.
As mortes se multiplicam em vários
países e avassalam a humanidade de quase todo o planeta. Medo e horror se
espalham, instituindo perdas, varrendo sonhos, projetos, perspectivas.
Há a guerra preventiva. A quarentena
com o isolamento social, os cuidados constantes com a higienização do corpo, da
moradia, dos objetos, são nossas (únicas) armas nessa guerra contra o inimigo
invisível mas, absolutamente potente.
Existem muitos tentando arrancar de
nós essas armas. Grupos adeptos ao (des) governo brasileiro, vão às ruas sob o
imperativo “O Brasil não pode parar”. Assim, estamos em guerra para não
arrancarem das nossas mãos, as precárias armas que temos: a quarentena. O que
isso gera?
Há a guerra do capital X trabalho. De
capitalistas, financistas e os trabalhadores. (...) ”o que gera riqueza, não é
o capital, é o trabalho. A burguesia enfim percebeu que o capital imobilizado
em máquinas, equipamentos, estoques e sistemas de computadores não gera
riqueza”.[2] O autor
prossegue dizendo que “sem o trabalho dos empregados, o capital é inútil. O que
gera o acúmulo de capital é a parcela não paga sobre o trabalho humano”.
No dizer de Judith Butler [3] o “capitalismo
tem seus limites” - mas os capitalistas não – diríamos.
Poderíamos nos perguntar porque as
pessoas vão às ruas e às redes,]apelando para que
os trabalhadores voltem ao trabalho, sabendo que milhões de vidas serão
dizimadas?
Freud intitula o primeiro Ensaio das
Reflexões de “ A desilusão da guerra”, deixando entrever sua perplexidade e
desilusão frente à desrazão que pulsava na civilização em guerra e pergunta-se
com veemência por que apesar de todas as conquistas intelectuais e científicas
da cultura moderna não foi possível diminuir o ódio e a destruição entre os
homens?
Butler nos adverte de que “o vírus
não discrimina. Poderíamos dizer que ele nos trata com igualdade, colocando
todos igualmente diante do risco de adoecer, de perder alguém próximo e de
viverem um mundo marcado por uma ameaça iminente”.
Mas a desigualdade social e econômica
garantirá a discriminação do vírus. “O vírus não discrimina, mas nós o fazemos,
moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do
racismo, da xenofobia e do capitalismo”. Diz ainda Butler:
(...) "Parece provável que
passaremos a ver no próximo ano um cenário doloroso no qual algumas criaturas
humanas afirmam seu direito de viver ao custo de outras, reinscrevendo a
distinção espúria entre vidas passíveis e não passíveis de luto, isto é, entre
aqueles que devem ser protegidos contra a morte a qualquer custo e aqueles
cujas vidas são consideradas não valerem o bastante para serem salvaguardadas
da morte".
Estas questões inquietaram a Freud e
nos inquieta, sobremaneira. Se retomamos suas Reflexões é para interrogarmos,
seguindo sua trilha, o que a psicanálise pode acrescentar e contribuir com o
que se vive hoje.
Se nos deixarmos guiar pela leitura
moral, nos transformamos num poço de raiva, indignação e angústia, surdos ao
que está em questão. Nosso caminho há de ser outro, deixando cair toda a
leitura moral, construindo a nossa, no diálogo com o texto de Freud e Lacan.
No cerne do discurso de Freud, está a
pulsão de morte, que se torna pulsão destrutiva
quando voltada para o exterior, para o outro, o estranho e pode levar o ser
humano a preservar “sua própria vida, por assim dizer, destruindo a vida
alheia” ( p. 254).
O segundo Ensaio do texto, Freud
intitula, "Nossa atitude para com a morte" .Há ali pontos
absolutamente atuais. Para Freud, se nas sociedades modernas há - como nos
assegura Butler sobre a nossa sociedade – a ausência de luto em relação à morte
de outrem, isso tem como consequência a queda cada vez mais forte da transmissão
simbólica da lei, que tornou o humano um ser social e sociável, corroborando,
assim, para ascensão da barbárie em suas mais variadas vestes.
A psicanálise sabe que não se pode
erradicar o mal, mas contribui para que cada sujeito não fique desavisado da
“parte obscura” que o habita e esteja atento e vigilante para não verter essas
sombras em ato - pois o preço desse tipo de ato é ser lançado a um gozo
mortífero que o permite, inclusive, ser indiferente à morte do outro. Daí nossa
oferta da palavra e a escuta atenta, ainda que hoje, num novo setting.
Freud havia nos advertido também
acerca de dois aspectos sobre os quais não vamos nos ater agora, mas se faz
necessário lembrar.
O primeiro diz respeito ao que chamou
´As Exceções”[4]. Freud nos
permite compreender porque algumas pessoas dizem que “já renunciaram e sofreram
bastante e têm direito de serem poupados de quaisquer outras exigências. Não se
submeterão mais a qualquer necessidade desagradável, pois são exceções” (p. 353).
Ele prossegue dizendo que para essas pessoas, dessa
reivindicação surge uma convicção de que “uma providência especial vela por
ele, protegendo-o de quaisquer sacrifícios penosos dessa natureza”.
Longe de julgar tais pessoas, ele
interroga a razão de agirem assim, querendo privilégios em relação aos outros e
conclui que se deve a sofrimentos e perturbações dolorosas vividas em algum
momento da vida.
Comportando-se como o personagem de
Shakespeare, o sujeito acredita que a vida lhe deve reparação pela sua dor ou
pelo que não lhe foi dado, “ e farei tudo para consegui-la. Tenho o direito de
ser exceção, de desprezar os escrúpulos pelos quais os outros se deixam tolher”
(p. 355).
Essa leitura de Freud nos permite
lançar luz sobre aqueles que acham que a vida deve seguir normal, “voltar” ao
normal, com todos os privilégios que reivindica, mesmo que isso custe o risco
de doença e a desproteção de outros e muitos, quiçá, a morte.
Outro aspecto que será apenas
lembrado aqui e que teremos oportunidade de tratar em outros momentos, concerne
à relação do sujeito com a falta, segundo a estrutura psíquica de cada um.
Lacan aborda a questão da falta como
um dos pontos centrais em torno do qual gravitam o trabalho conceitual da
psicanálise, desde a relação do sujeito com o objeto.
Movido pelo “horror” de que algo
falta ou pode vir a faltar, o sujeito é capaz de abdicar de seu saber sobre os
perigos desse tempo de guerras, tanto quanto lançar o outro ao perigo para que
nada lhe falte.
Para concluir, vou reportar-me ao
texto de Freud, escrito no mesmo ano: “Transitoriedade”[5]. Freud assim o
finaliza: “Caso renunciemos a tudo que for perdido, o próprio luto também
enfraquece e então, nossa libido torna-se novamente livre, pois ainda somos
jovens e cheios de vida para substituir os objetos perdidos por objetos
possíveis, preciosos ou mais preciosos ainda” (p. 224).
Com ele, reiteramos nossa aposta: “Reconstruiremos tudo o
que a guerra destruí(u)r, talvez com fundamentos mais sólidos e mais duráveis
do que antes” (p. 224), sobretudo, de humanidade.
[1] Escrito em 1932
e publicado em 1933. [2] FILHO, Wilson
Ramos. Doutor em direito, Prof, da UFPR. IN: Redes sociais. [3]BUTLER, Judith. Sobre a covid-19: o capitalismo tem
seus limites”. IN: www.ihu.unisinos.br
[4] Ver: Freud, S. Alguns Tipos de Caráter Encontrados
no Trabalho Analítico” . Edição standard das Obras Completas de S. Freud, 1976.
[5] Freud, S. Transitoriedade. Obras Incompletas de
Sigmund Freud. Arte, Literatura e os artistas. Belo Horizonte: Editora
Autêntica, 1ª reimpressão. Tradução de Ernani Chaves.
****Agradeço
a fina leitura e contribuições do Psicanalista Crasso Parente
Fonte:https://taniafbh.wixsite.com/psicanalisecotidiana/post/reflex%C3%B5es-para-tempos-de-guerra-e-morte-por-coronav%C3%ADrus
PSICANÁLISE DIA A DIA.... DA
QUARENTENA
PRIMEIRA
TEMPORADA
Fonte:https://taniafbh.wixsite.com/psicanalisecotidiana/post/psican%C3%A1lise-dia-a-dia-da-quarentena
PSICANÁLISE DIA A DIA.... DA
QUARENTENA
1. SUPORTE !!!!
Estaríamos frente a frente com o Real
- como o compreende Jacques Lacan - “O Real enquanto impossível de suportar”,
não fosse a potência criativa de cada um....
Para muitos, o problema recai mais
sobre a quarentena ( que não é nada fácil) que no devastador coronavírus, a
pandemia e o que isso tem causado em cada um, de modo particular... Mas é
diante desse inimigo invisível, destruidor e gigante, que traumatiza, angustia,
inquieta, que começam a ganhar força nossos próprios inimigos: ansiedade
generalizada; angústia e pânico;· impotência;· culpa; desespero;
devastação;desencanto. Para muitos, a lista vai se avolumando: medo, pavor,
horror.....Revolta, indignação, frustração... .... .... ...
Além disso, outras respostas como
depressão, melancolia, e até certo “enlouquecimento” – que acontece quando
alguém tem de suportar mais do que seria possível suportar - e até o
desencadeamento da “loucura” , podem ir se manifestando, segundo a estrutura
psíquica de cada um.
Diante disso, muitos psicólogos,
psiquiatras e outros profissionais, têm criado orientações”, “dicas” e
“aconselhamentos terapêuticos” online, para profissionais e para a população em
geral - O quê também é importante nesse momento.
Mas para nós, num tempo em que se
vive sob a égide de prescrições, determinações, protocolos, não se trata de
propor mais “condutas”, “formas de agir” , nem de dizer o quê ou como fazer,
mas de abrir um espaço de possibilidades de pensar, analisar e provocar elaborações sobre esse contexto e seus
efeitos em cada um....Então, vamos!!!
Nesse tempo obscuro, de privações,
incertezas, falta de controle e domínio sobre seu próprio mundo e sua
existência e, sobretudo, de ameaças concretas ao corpo e à vida, cada um há de
tecer seu jeito próprio de lidar (ou de não lidar, negando, por exemplo) com
esse inimigo invisível e devastador.
Entrar em sofrimento psíquico ou
mesmo “adoecer”, ter sintomas - físicos, até - nesse momento de pandemia, não é
para ser lido como “fraqueza", "fragilidade”, “ incapacidade” ou se
achar meio “doido”, tampouco como algo permanente. São respostas subjetivas a
essa ameaça concreta que cerca a todos, colocando cada um em risco.
Frente a esse vírus real, que incide
com tal violência, as formas "previsíveis" de funcionamento psíquico,
são rompidas e corrompidas. E de forma avassaladora.
Hoje, não podemos mais dizer de pessoas em “ situação de vulnerabilidade” social.
Todos e cada um está em situação de vulnerabilidade.... social e psíquica. Uns
mais, outros menos, segundo os suportes que cada um tem...
Diante do insuportável, cada um há de
tecer, inventar seu próprio suporte e, porque não? procurar ajuda se se sentir
num “beco sem saída”....Importante é não se tornar um “censurador” da maneira
com que está lidando com tudo isso que causa incerteza, dor e até horror.
Pode parecer impensável achar saídas
nesse breu, mas cada um tem seu potencial criativo e, se confiar nisso, há de
conter e lutar contra sua própria epidemia: as respostas de impotência e
paralisação.
Seguimos!!
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