O TRABALHO NO SÉCULO XXI: ENTREVISTA COM O SOCIÓLOGO ITALIANO DOMENICO DE MASI

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Entrevista com Domenico de Masi: o trabalho no Século XXI

No último dia 18 de agosto tive a oportunidade de ter uma ótima conversa com Domenico de Masi, o sociólogo italiano que tem seu trabalho voltado para as mudanças nas relações sociais de nossa época, a qual ele denomina de “pós-industrialismo”. Domenico de Masi ficou conhecido no Brasil especialmente por seu livro “O ócio criativo”, mas é autor de outros já traduzidos para o português, nos quais retrata a sua a sua perspectiva sobre as mudanças que a sociedade vem passando e as que ainda terá que passar para se adaptar a essa nova era. Alguns deles são: “Desenvolvimento Sem Trabalho”, “A Emoção e a Regra”, “O Futuro do Trabalho” e “O Futuro Chegou”.

Neste papo de pouco mais de uma hora, conversamos sobre o futuro do trabalho, o consumo na era pós-industrial, o Brasil, e as transformações que o mundo passará para se adaptar à esta nova fase na qual a produção cultural será cada vez maior e mais importante do que a produção industrial.
Em 3 diferentes posts aqui no blog, abordarei um pouco da visão de Domenico, agrupada em 3 assuntos que foram temas da nossa conversa: 1) O trabalho no século XXI, 2) o declínio da perspectiva industrial na economia e sociedade, e 3) o consumo e o Brasil na era pós-industrial.
Neste primeiro texto irei trazer as opiniões de De Masi sobre a evolução do conceito do trabalho, e do papel que ele imagina que o trabalho ocupará nos próximos anos.
A evolução do conceito de trabalho
Domenico faz um paralelo sobre a nossa relação com o trabalho e com a orientação cristã de alguns países. Segundo ele, existe hoje uma “adoração” pelo trabalho, como se só aqueles que trabalham fossem dignos das recompensas materiais e imateriais. Com isso, o “trabalhar”, mais do que uma obrigação, é algo que é percebido como eticamente e socialmente necessário, ao ponto daquele que “não trabalha”, ou “não produz”, ser subjugado como alguém que não contribui para a sociedade e deve ser discriminado.
Domenico relaciona essa origem ao catolicismo, ao protestantismo e sobretudo ao calvinismo. Mesmo na sociedade pré-industrial já se tinha essa perspectiva do trabalho como a possibilidade de expurgar o pecado original. E isso passa a criar, mesmo na época rural, a ascensão do conceito do trabalho como algo essencial ao ser humano. Como consequência, o ócio é subjugado apenas àqueles que não tem interesse de serem perdoados do pecado original.
Avançando em sua história, De Masi diz que o capitalismo chega com o protestantismo, principalmente com Calvino, com a teoria que nós somos premiados por Deus não quando morremos, mas sim em vida. E esse prêmio tem sua origem na virtude do trabalho. Se você não for virtuoso na sua profissão, você é um pecador. O trabalho, no capitalismo, passa a ter duas vertentes que o suportam: a religião e o consumo. Além de graça divina, o trabalho dá acesso às benesses do consumo.
Com isso, apesar da origem religiosa, a conexão entre a virtude e o trabalho se suporta pelas relações de consumo que são estabelecidas atualmente, já que aquele que tem trabalho pode ter acesso ao que o capitalismo tem de melhor – o conforto e a diversão proporcionados pelo consumo. É sob este estereótipo do passado que até hoje estamos vivendo.
O papel dos gerentes e dos cursos de gestão.
Segundo Domenico, a ideia do trabalho como um privilégio foi impregnada em toda a sociedade, mas ainda de maneira mais intensa nos cursos de gestão, como administração, economia, ou engenharia de produção, ou qualquer um que tem como princípio formar gestores.
Os gestores acabam propagando a cultura do “trabalhar mais é melhor”, e entendem que se há ainda trabalho a ser feito, deve-se continuar trabalhando, estendendo-se a jornada normal. Isso acontece, segundo Domenico, especialmente nos países católicos. Ele diz que um gerente na Alemanha, por exemplo, não tem nenhum problema em sair do trabalho às 5 da tarde. Mas os gerentes de países católicos como os EUA, Brasil, Espanha, Itália, acham que devem ficar até mais tarde, como uma espécie de penitência necessária para aquele que tem o privilégio do trabalho.
Mas em função dos métodos de gestão dominantes no mundo serem americanos, isso também acaba se tornando verdade para países não católicos, como a Coréia, a China e a Índia. De acordo com Domenico, “na Índia e na China o gerente não é indiano, não é chinês, não é brasileiro, ele é americano. Porque o gerente estuda no livro americano, ele estudo na ‘Business School’ americana. Se você vai numa livraria de aeroporto são todos livros para gerentes, e de autores americanos. Os livros dos brasileiros, dos europeus, são todos copiados de livros americanos. E no capitalismo americano o gerente é visto como a igreja católica vê um missionário, um jesuíta”.
A perspectiva de um gerente americano como um missionário é, no mínimo, intrigante. Segundo esta lógica, a expansão pelo mundo das empresas multinacionais fez se espalhar este conceito de trabalho como sendo a única atividade em que o homem é valoroso por realizar, e o trabalho que importa é aquele que leva à produção de produtos. Ou seja, é mais importante aquele que trabalha na fábrica, ou para que a fábrica produza, do que aquele que trabalha em qualquer outro ramo de atividade, como a educação, o entretenimento, ou as artes.
Desta maneira, o trabalho das fábricas, ou para a fábrica, ganhou, historicamente, uma simbologia extremamente positiva e que ainda afeta muito as relações entre os indivíduos, mesmo no século XXI e com a emergência da ideia de “economia criativa”.  Mesmo que haja uma evolução neste sentido, é possível perceber que algumas escolhas profissionais ainda são vistas como menos valiosas do que outras.
Essa perspectiva de trabalho, e a contraposição do conceito de trabalho com o conceito de diversão e ócio, ainda é realidade. Nas palavras de De Masi: “Quando falamos ‘trabalho’, isso está muito relacionado ao trabalho operário. Quando Marx escreve O Capital, Manchester era a cidade mais avançada do mundo e 97% de todos os trabalhadores eram operários. Hoje na Itália são apenas 33% de operários. O restante são analistas, ou gerentes, ou criativos. Mas ainda estamos muito baseados no trabalho operário”. Enquanto os gestores e as escolas de gestão não mudarem esta perspectiva do que de fato é “trabalho”, este conceito que vem dos anos 1930 continuará presente na simbologia da sociedade contemporânea.
O trabalho e a felicidade
O trabalho sempre esteve desassociado da felicidade. Segundo De Masi, “A felicidade começa no trabalho, mas não como felicidade, como dever, que é uma coisa diferente da felicidade. O trabalho é um dever, não é felicidade. A felicidade é o fruto do trabalho. Taylor, Ford, fazem a linha de montagem mas isso não é felicidade, me permite ganhar o dinheiro, que é o fruto do trabalho, que deve me trazer felicidade.”
A perspectiva industrial é que a felicidade era resultado do trabalho, mas diferente dele. Já na sociedade pós-industrial, este tipo de ideia está fadada a mudar, o que seria no entender de De Masi uma “grande mudança”.
A alteração do trabalho industrial para um trabalho pós-industrial, ou criativo, traz a perspectiva conjunta de trabalho e felicidade. “Um mineiro não consegue trabalhar e ao mesmo tempo ser feliz. Se o minerador é feliz trabalhando, ele é um alienado, é um louco”, diz Domenico. No entanto, um criativo pode trabalhar e ser feliz ao mesmo tempo.
Mas e as empresas como Google, Microsoft, ou outras, que colocam no ambiente de trabalho pequenas ilhas de “diversão”, como videogames, pebolim, salas de descompressão, entre outras atividades “divertidas”? É possível ser feliz nessas empresas, enquanto se trabalha?
Domenico é taxativo: “Google, Microsoft, estão no limite extremo da visão do gerente americano. É um infantilismo. Não como um fato adulto, da pessoa que se realiza (ao trabalhar), mas como um bando de crianças, com o seu pebolim. É uma ofensa à inteligência humana. Eles estão no limite da delinquência”.
Segundo De Masi, o comportamento deste tipo de empresa é limítrofe – eles operam sob a lógica do industrialismo, com as pessoas tendo que trabalhar longas horas e produzir muito, mas com a tentativa de incutir nos seus colaboradores uma visão de trabalho criativo do pós-industrialismo e, portanto, de felicidade enquanto se trabalha.
Para Domenico, estas grandes empresas devem sofrer ainda muito no futuro, em especial pela busca por mão de obra especializada e de qualidade para trabalhar dentro delas num mundo cada vez mais pautado no desenvolvimento de novas ideias, da criatividade, da pequena empresa ágil e que pode subjugar as grandes empresas.
De Masi entende que as grandes ideias não são produzidas nas grandes empresas, mas especialmente fora delas, e cita o Facebook como exemplo, que surge dentro da Universidade, e não dentro de uma empresa. Com este tópico, começaremos nosso próximo post, na próxima semana.

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