Se alguém julgava-se invulnerável, em uma sociedade narcisista, enganou-se-Yo / stock.adobe.com
A grande ciranda do coronavírus
A doença, afirma
psicanalista e escritor, nos obriga a algo que vinha faltando: a empatia
Celso Gutfreind*
Cada um tem uma
interpretação para os fatos, e temos também a nossa. Ela está borrada pela
minha própria miopia, em busca de sua verdade, conforme a imagem do Drummond,
nesta procura de algo sempre subjetivo, relativo. E todas as supostas verdades
importam para alcançarmos a melhor possível, que será modificada,
posteriormente, conforme as novas necessidades e evidências. Míope, relativa,
minha interpretação não deixa de ser vivida. Poderia sustentá-la a visão
holística para a saúde ou a abordagem coletiva de algumas comunidades mais
coesas.
Mas a psicologia também
a sustenta. Estudos sobre a comunicação dos bebês, na psicologia do
desenvolvimento, atestam mensagens analógicas, não verbais. Há uma transmissão
invisível, a cada encontro, entre famílias ou gerações. Todo novo nascimento
evoca fantasmas adormecidos, e cada sintoma corresponde ao resultado de uma
história intrincada, em que todos os envolvidos, vivos ou mortos, participam.
Segundo a teoria da literatura (representação da vida), não há protagonista sem
antagonista ou coadjuvante, assim como não existe herói sem vilão. E, antes de
seus estudos sobre a origem do totalitarismo, Hanna Arendt dedicou-se
a mostrar o papel preponderante da narrativa e da memória nas ações humanas.
Somos o que contamos da nossa história e tanto mais fortes seremos quanto mais
pudermos lembrar dela. E contá-la.
“Está rebentada a corda de tantos conflitos
inaceitáveis, com os quais viemos sendo coniventes, mesmo em nossos atos
pequenos, cotidianos. Os dados agora estão lançados. Se forem recolhidos, de
forma conjunta, ainda que estejamos isolados, teremos uma nova chance.”
A psicologia,
através da psicanálise, oferece outro construto para pensar o nosso tema, na
hipótese de que nascemos com impulsos de vida e de morte. A resultante,
decisiva, está atrelada a inúmeros fatores: genética, condições de parto, entre
tantos outros, conhecidos e desconhecidos. Ocupa a cena central do processo a
forma como fomos acolhidos pelos nossos cuidadores e o conteúdo do amor que
deles recebemos. Mitigar a morte em cada um e no entorno é um desafio dos
indivíduos e de sua coletividade, essa sustentando aqueles.
A presença do
amor é sempre fundamental, e não foi à toa que o nosso poeta maior, Mario Quintana,
expressou que todos os poemas são de amor. Acrescentamos que, a nosso ver, tudo
o que não for poema também é.
Dito isto, a
eclosão do coronavírus candidata-se
a ocupar o nosso contexto. Se alguém se considerava a salvo de todas as outras
pandemias deste mundo, enganou-se. Se alguém julgava-se invulnerável, em um
sociedade narcisista e pouco solidária, enganou-se também. No entanto, o mundo
acorda, todos os dias, em meio a números inaceitáveis de fome, desnutrição,
miséria, desigualdade, intolerância, falta de acesso a saneamento e demais
mazelas tristes e endêmicas que, fora de seus números, apontam para uma dor
tamanha, por vezes nem representável. Mas, para senti-la, precisa de empatia, e
esta vem faltando, por todos os lados. Pensa-se: não é comigo, não é com os
meus, então não é.
Mas é. Um único caso diz respeito a todos nós, em
questões de vida e morte. E há mais relações entre um chinês e um brasileiro do
que a nossa vã filosofia supõe. Focado na morte e na vida, há muitos anos, a
poesia de um inglês, retomada, séculos depois, pela prosa de um americano,
lembrou que cada sino está dobrando por todos nós. Por isso, não podemos
desdenhar um cientista, um artista, um exato, um humano, quem quer que seja. E,
diuturnamente, todos somos necessários para a manutenção da vida de cada um.
A tensão criada em torno disso vem esgarçando
os nossos dias no mundo, e o sintoma chegou ao pico. Podia ter sido uma guerra,
como elas existem sintomaticamente, mas houve este robusto acréscimo a elas e
aos efeitos do aquecimento global.
O mundo fechou, não à toa ou ao acaso, e veio um sintoma – narrativa às avessas
– que cada um interpreta do seu jeito.
Interpreto como rebentada a corda de
tantos conflitos inaceitáveis, com os quais viemos sendo coniventes, mesmo em
nossos atos pequenos, cotidianos. Os dados agora estão lançados. Se forem
recolhidos, de forma conjunta, ainda que estejamos isolados, teremos uma nova
chance.
Outra imagem possível é a de uma ciranda,
de que todos fazem parte. Ou a do amor sobrepujando a morte, desafio de todo
indivíduo e sua coletividade. Há 15 anos, a coleção Ameop, de poesia, dirigida
por Alexandre Brito e Ricardo Silvestrin, reuniu uma turma de poetas. Ali, com
meus pares, tive a oportunidade de expressar o encontro entre as imagens do
amor e da ciranda:
“Leu em Pessoa
o que expressou
por si.
Amou em Cíntia
o que aprendeu
em Ana
na grande
ciranda
do mundo.”
o que expressou
por si.
Amou em Cíntia
o que aprendeu
em Ana
na grande
ciranda
do mundo.”
*Psicanalista e escritor, autor de A Arte de Tratar – Por uma Psicanálise Estética (2019).
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