À Sombra da Religião
Vivendo quase isolados, os judeus
da Etiópia foram reconhecidos há menos de sete décadas pelos rabinos de Israel,
mas sempre conservaram vivos os seculares costumes judaicos na África oriental
São tantas pessoas ao redor que a
sensação é a de estar em uma festa de Réveillon na praia de Copacabana. Mas
estou a 10 mil quilômetros do Brasil, na Etiópia. É sábado de manhã e não para
de chover. ? “Senhor, senhor, para você: tenho um cálice da Igreja Copta. Preço
muito bom”, diz um homem negro, magro e de estatura mediana, vindo na minha
direção como se fôssemos conhecidos de longa data. Ele corre e grita
alegremente, falando um italiano enferrujado, como o meu, mas o suficiente para
estabelecermos um diálogo. Eu havia acabado de chegar, com o intuito de
observar e conhecer o lugar, e não queria comprar nada. Mas, naquele momento em
que o rapaz, chamado Shlomo, se apresentou sorridente, com um paletó de linho
arruinado pela chuva, intuí que aquele dia mudaria de rumo.
Estamos em Adis Abeba, a capital da Etiópia. Uma década antes,
no Caribe, conheci de perto a cultura rastafári, originada precisamente no país
africano. A viagem despertou minha curiosidade pelo chamado Chifre da África, a
região nordeste do continente, que engloba Somália, Etiópia, Djibouti e
Eritreia, e que tanto inf luenciou Bob Marley. De minha mãe herdei o interesse
de ver o famoso esqueleto de Lucy, um dos mais antigos vestígios humanos do
planeta, no Ethiopian National Museum. Também queria conhecer Abebe Bikila, o
atleta que, descalço, ganhou a maratona de Roma nas Olimpíadas de 1960. Mas,
até então, não sabia que lá, em território etíope, encontraria o maior mercado
a céu aberto do continente africano.
Foi no chamado Merkato que me deparei com os negros judeus da
Etiópia – Shlomo era um deles e se orgulhava de suas origens. Eles vieram atrás
de mim, querendo vender maravilhas – e, também, “gato por lebre”.
Antes de ir ao Merkato, o conselho era evitar as barracas que
pareciam trazidas do Paraguai, ofertando tênis e relógios falsos, e buscar as
lojinhas que vendem incensos e temperos, como a famosa pimenta local, a
berbere, base do prato nacional mais conhecido, o doro wat, feito de frango.
Ninguém havia falado sobre os rapazes que tentavam vender, entre
outras peças encantadoras, acessórios da Igreja Ortodoxa Copta e da Igreja
Ortodoxa Etíope. Eles mesmos se apresentavam como “negros judeus”, tentando
passar a ideia de “bons comerciantes” – o que efetivamente são, pois comprei
até aquilo que não desejava.
Era a época das chuvas em Adis Abeba, o
que dificulta bastante a circulação no mercado etíope. Lá, grande parte das
ruas é de terra, e as lojas não passam de barracas de feirantes. O curioso é
que, turisticamente, a Etiópia é conhecida como “a terra de 13 meses de sol”, o
que não é exatamente verdadeiro.
A precariedade do Merkato a maioria dos turistas, especialmente
as mulheres, que são aconselhadas a evitar o local por causa dos roubos. Os
mercadores não são simpáticos, a menos que você compre alguma coisa deles. As
figuras longilíneas, de lábios carnudos e dentes salientes não distribuem
sorrisos. É aí que entram em cena os Beta Israel, como são chamados os judeus
de origem etíope. Falantes e carismáticos, eles rapidamente começam a sorrir e,
com uma lábia irresistível, vão arrastando os clientes para seus armazéns. Lá,
há um espaço reservado, aonde levam apenas os “clientes VIP” (na verdade, todos
que abordam), a quem fazem ofertas supostamente “exclusivas”. Uma falcatrua
bastante conhecida, mas na qual muitos visitantes já caíram ao menos uma vez.
Entre as intrincadas ruazinhas do Merkato, eles oferecem café e
Katikala, um licor destilado típico da Etiópia, e começam a desfilar seus
artigos, a maioria ornamentos religiosos realmente cativantes. Parecem objetos
extraídos de cofres antigos, desenterrados há 200 anos, a exemplo dos que são
mostrados em filmes como Os Caçadores da
Arca Perdida.
Eles contam que o ancestral dos Beta Israel viveu entre 2.600 e
3.100 anos atrás, período que coincide com a existência de Aarão, irmão de
Moisés. Mas, apenas em 1947, eles foram reconhecidos pelos rabinos de Israel
(askenazis e sefarditas). Religiosamente, mantiveram os costumes da época
mosaica, período em que viveu Moisés, seguindo os rígidos ensinamentos da Torá, o texto central do judaísmo.
Até 1974, quando foi deposta pelos revolucionários, a família
real etíope proclamava-se descendente de Makeda, a rainha de Sabá, e do rei
Salomão, de Israel. Melenik, filho do casal, foi o primeiro imperador da
Etiópia. Há lendas que sustentam que a rainha de Sabá era negra e os Beta
Israel sempre se reconheceram como herdeiros dessa relação entre realezas. Por
outro lado, a casta nobre da Etiópia se converteu ao cristianismo no século 4
d.C. Eles, diferentemente dos lembas sul-africanos e outros povos, não seriam
oriundos do que hoje é o território de Israel – não seriam judeus que foram
para o Chifre da África, e sim negros africanos que adotaram o judaísmo há mais
de cinco séculos.
Também existe a hipótese de que os Beta possam descender da
tribo perdida de Dã, tendo como ancestrais hebreus que fugiram de Israel para o
Egito depois da destruição do Primeiro Templo em 586 a.C., pelos assírios, e
acabaram na Etiópia. História e mitos se confundem. É difícil saber onde
termina a realidade e onde começa a lenda.
Do grupo que me atende, o alto e magro Inbaram é o único que
tenta reforçar essa teoria, a dos Danitas, e relata a viagem de seus
antepassados. “Nossos familiares hebreus permaneceram por séculos no Egito,
inclusive ajudando Cleópatra na guerra contra Cesar Augustus. A tradição oral é
nossa única prova”, ele afirma. “Derrotados nessa guerra, alguns fugiram para o
sul da Arábia, daí para o Iêmen e outros para o Sudão, mas pararam aqui, na
Etiópia, perto do lago Tana. Somos negros porque descendemos de Abraão, que era
negro.”
Continua a chover no Merkato, também
chamado por eles de Addis Ketema (ou Cidade Nova, em português). O lugar mais
confortável é a tenda onde já bebo meu terceiro café. “O que o mundo deve
entender é que ser judeu não é raça. Nossa raça é negra e nossa religião
judaica. Portanto, somos, sim, negros judeus”, explica Shlomo. “Há judeus de
todas as cores, mas, como a maioria em Israel é branca, muitos acham que só os
brancos podem ser judeus. Deus não faz distinção entre os homens por cor ou
condição social; todos são iguais perante Seus olhos.”
Inbaram pergunta se conheço alguns lugares bíblicos. O sonho
dele é visitar o Mar Vermelho, que Moisés abriu em duas metades, mas ele parece
congelar quando descrevo Jericó. “As muralhas...”, sussurra, como quem menciona
algo impossível. Segundo o Livro de
Josué, a cidade foi amaldiçoada. “Somos judeus, aceitamos a fé
judaica, consideramos os ensinamentos do judaísmo – a ética, os costumes, a
literatura. Fazemos jejum no Dia do Perdão, acreditamos em um Deus pessoal que
supera a nossa compreensão, e cremos que o homem seja feito à imagem de Deus.”
Enquanto fala, coloca em minhas mãos um raro e inteligível livrinho da Igreja
Copta que, claro, está à venda.
Folheio o livro e lhe pergunto o que é pecado para eles. “É uma
ofensa contra Deus, pela qual deve ser oferecido um sacrifício expiatório.”
Digo que esse é um conceito muito antigo e que, com o passar dos anos, o pecado
para os judeus se tornou algo mais terreno. Ele responde afirmando que “a
tradição judaica separa os pecados contra os semelhantes e os pecados contra
Deus”. E fica sério.
Shlomo volta a intervir. “Hoje, o judaísmo acredita na
imortalidade da alma e praticamente não aceita a ideia de que no futuro nos
espere o céu ou o inferno”, afirma.
Ele relembra o dia do Bar Mitzvá e conta que, nas festas, recita
o Kidush (a bênção que é dita sobre o vinho nessas ocasiões). Shlomo também
fala sobre a família dele, do respeito e consideração que tem pelos pais e
avós. Diz que ama a mulher e que deseja ter filhos.
Aponto uma contradição: aquele era um sábado e ele não estava
dedicado ao mundo íntimo, de paz e serenidade, que o judaísmo sugere para esse
dia. Ele retruca, ironicamente, com um ditado tradicional de sua igreja: “Mais
do que Israel guarda o sábado, o sábado guarda Israel”. Sábado é o dia que se
reserva para repouso espiritual e para um intervalo no cotidiano, lembrando que
a necessidade de ganhar a vida não deve tornar as pessoas cegas diante da
necessidade de viver. “Mas preciso vender minhas coisas, aos sábados são mais
de 50 mil pessoas que visitam o Merkato”, ele argumenta. E completa a
justificativa dizendo que, se eu visitasse sua casa, veria que lá há, todos os
sábados, “vinhos doces para a bênção, pães trançados, uma toalha de mesa mais
alva do que a sua pele, velas acesas, nossa melhor louça e flores em um vaso
bonito”.
Apresenta-me, a seguir, uma versão do Primeiro
Livro de Enoque (que seria ancestral de Noé) e pinturas brilhantes
onde o dourado chama a atenção, como nos quadros de Gregory Fink, o britânico
que faz sucesso no Brasil. A arte cristã ortodoxa etíope realmente é única
pelas suas reminiscências bizantinas e pela inf luência das tradições
hieráticas egípcias.
Por poucos dólares, tentam-me com um jogo de copos sagrados do
rito bizantino, um cálice poterion, uma lanceta – faca menor com empunhadura em
cruz, usada pelo pastor para cortar o pão –, o famoso asterisco, uma colherinha
com a qual se distribui a comunhão, entre outros itens. Há também frascos com
água de rosas mais uma vasilha para a crisma, um incensário com correntes e uma
jofaina, que é usada para lavar as mãos do bispo.
Quando Shlomo e Naram trazem o último
café, mostram uma bela cruz de madeira, um leque de metal usado para ornamentar
o altar e dois pequenos candelabros. Não sou consumidor compulsivo, caso
contrário compraria tudo sem pestanejar. A razão para eles venderem tantos
elementos da Igreja Copta é o fato de ela conservar as práticas judias, como a
circuncisão, o regime alimentar da lei mosaica e o domingo sabático. Afirmo que
não levarei mais nada e que, se insistirem, devolverei o que já comprei. “O
profeta Jeremias exortou seus seguidores a procurarem a prosperidade da terra
que habitavam. E que eles, como judeus, sempre sentiram a obrigação de
participar plenamente da vida da comunidade. E sua participação é vender”,
justifica Shlomo.
Continua a chover e a noite se anuncia. Lá fora, volto a escutar
as vozes que rondam o lugar: “Senhor, senhor, preço bom!” Mas sigo em frente.
Fui convidado por outro conhecido para jantar carne crua com uísque, uma
receita local muito falada: a vaca inteira fica pendurada, você indica qual
parte deseja, o cozinheiro faz o corte e o serve junto com um pote de tempero e
um copo de uísque. Horrível. Lamentei por ter ido e mais ainda por ter
interrompido minha conversa com os judeus do Merkato.
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