FILME "O CORINGA" E A IDEOLOGIA DA DESTRUIÇÃO: BATMAN VERSUS CORINGA,PROVOCAÇÕES NITZSCHEANAS ACERCA DA MORAL
O Coringa e a ideologia da destruição
Quando o indivíduo atribui seu fracasso pessoal ao fato de o mundo não ser como ele deseja
"É apenas um filme sobre um homem se afundando na loucura", disse ele. "Só isso".
Assim me alertou o vendedor de ingressos na bilheteria do cinema quando eu lhe disse qual filme queria ver: Coringa.
Muito estranho. Por que o bilheteiro foi instruído a me alertar sobre o filme? Por que ele me apresentou esta análise prévia do filme? Isso nunca aconteceu antes. A frase soou ostensivamente ensaiada, como uma nota de advertência dada aos espectadores com o objetivo de prevenir algo que vem preocupando as pessoas: a hipótese de que o caos fictício apresentado no filme venha a inspirar imitadores no mundo real.
Ainda assim, sua mini-análise de fato me trouxe alguma tranquilidade. Eu me vi obrigado a ir assistir ao filme sobre o qual todos estão falando. As cenas prévias que vi já eram, por si sós, sinistras. A vida já é amarga o bastante e não necessita de filmes nos introduzindo mais tristeza, e é exatamente por isso que eu prefiro filmes mais edificantes. Mesmo assim, eu me mobilizei para ir assistir a este filme.
O bilheteiro estava certo, mas apenas superficialmente. É apenas um filme sobre um homem. Mesmo após sair do cinema, eu ainda fiquei repetindo essa frase para mim mesmo. E, ainda assim, após o término, vivenciei exatamente aquilo que muitas outras pessoas relataram. O filme transmite uma aura da qual você não consegue se livrar. Você leva o filme para casa. Você dorme com ele. Você acorda na manhã seguinte e vê aquele maldito rosto novamente. Você relembra, repassa e repensa várias cenas. E então você relembra de mais coisas. E aí mais elementos passam a fazer sentido — não sentido moral, mas sentido narrativo.
Assistir a este filme foi tremendamente desagradável. Foram as duas horas cinematográficas mais difíceis das quais me recordo. E foi assim porque cada quadro do filme é brilhante e emocionante. Você não consegue se desvencilhar. Não consegue se desprender. A trilha sonora é perfeita. E o mais espantoso: a atuação não parecia ser uma atuação.
Quanto à interpretação de que "é apenas um homem", ela é difícil de ser sustentada. As cenas nas ruas. Os metrôs lotados de pessoas usando máscaras de palhaço para ir às manifestações. O empresário rico e estabelecido concorrendo a prefeito e os protestos que isso gera. A maneira estranha como esta figura perturbadora e violenta se torna um herói popular nas ruas. Certamente, há algo muito mais amplo aqui.
Sim, eu já li boa parte das resenhas e, principalmente, todo o cabo-de-guerra no Twitter sobre qual seria a verdadeira ideologia do filme. Para alguns, ele é de extrema-esquerda e faz apologia da ideologia antifa. Para outros, trata-se de um filme conservador que faz um alerta sobre as consequências de políticas extremistas. Alguns gritam que o filme é uma calúnia direitista contra a forte guinada à esquerda do Partido Democrata. Outros juram que o filme é uma apologia esquerdista da revolta dos trabalhadores contra as elites, na qual há a defesa explícita da máxima socialista de que ovos devem ser quebrados para se fazer uma omelete. E, por fim, não faltaram conservadores anti-establishment idolatrando o filme.
O problema é que nenhuma das narrativas explica as reviravoltas, o desconforto e a ambiguidade que o filme cria dentro do espectador.
Eu demorei um dia inteiro para enxergar uma teoria alternativa.
O destrutivismo
A tese provavelmente diz respeito a todas as caracterizações do Coringa tanto nos quadrinhos quanto no cinema, mas esta é particularmente presciente porque se concentra exclusivamente na personalidade apresentada neste filme, pois foi a primeira vez em que a história da vida desta personagem é apresentada de maneira elaborada e detalhada.
Todo o problema começa com sucessivos fracassos na vida pessoal. Embora ele seja um homem visivelmente perturbado, em alguns momentos você acredita que ele talvez não tenha chegado ao ponto de se tornar um caso perdido. Ainda há cura. Ele pode voltar a funcionar bem. Ele pode superar isso, assim como todas as outras pessoas aprendem a lidar com seus próprios demônios. Joaquim Phoenix faz um excelente trabalho ao retratar a personagem entrando e saindo da loucura, de maneira inconstante. Ele parece se comportar bem ao lado da mãe e de sua breve namorada (aqui, não posso falar mais do que isso para não gerar spoiler). Ele possui interações que não são totalmente destruídas por sua excentricidade.
Entretanto, circunstâncias da vida continuamente o frustram e lhe causam rancor, até que finalmente o empurram ao ponto em que ele perde todo o amor pela vida que tem. E então ele renuncia a qualquer esperança e passa a abraçar por completo a descrença e o niilismo como um meio de pensar e de viver. Ele então passa a cometer atrocidades e descobre algo que lhe traz poder e satisfação: sua consciência não lhe fornece um corretivo. Ao contrário: as atrocidades que ele comete o fazem se sentir fortalecido, autoconfiante e valorizado.
Revisando: sua vida não estava funcionando; ele descobriu algo que finalmente passou a funcionar para ele; e então ele abraçou essa descoberta.
E o que foi que ele descobriu e abraçou? Trata-se de algo que possui um nome específico na história das idéias: Destrutivismo.
Não se trata apenas de uma predileção, de um pendor. Trata-se de uma ideologia; uma ideologia que se considera capaz de moldar a história e o sentido da vida. Esta ideologia diz que o único propósito da vida de uma pessoa deve ser o de destruir tudo o que outras pessoas criaram, inclusive a própria vida delas.
Esta ideologia se torna uma necessidade quando um indivíduo passa a acreditar que não tem mais capacidade para fazer o bem; quando ele acredita que fazer o bem se tornou praticamente impossível. E ele adota esta ideologia porque ainda quer fazer alguma diferença no mundo, porque quer sentir que sua vida ainda possui algum propósito, e porque fazer o mal é fácil.
A ideologia do destrutivismo permite a um indivíduo racionalizar que o mal que ele está praticando ao menos está preparando o terreno para uma sociedade melhor no futuro.
Qual seria essa "sociedade melhor"? Pode ser qualquer coisa utópica que se encaixe em sua mente. Pode ser um mundo no qual todo mundo possui tudo igualmente. Pode ser um mundo sem felicidade ou um mundo de felicidade plena e universal. Pode ser um mundo sem fé. Pode ser um mundo em que todos vivem em autarquia sem nenhum comércio internacional. Pode ser uma ditadura (uma sociedade em que todos obedecem a esta pessoa). Pode ser um mundo que aboliu o patriarcado. Pode ser um mundo sem combustíveis fosseis. Pode ser um mundo sem propriedade privada e tecnologia. Pode ser um mundo que aboliu a divisão do trabalho. Pode ser um mundo de moralidade perfeita. Pode ser um mundo de uma só religião.
Qualquer que seja o arranjo sonhado, ele é anti-liberal e, consequentemente, é impraticável e inalcançável. Consequentemente, por ser inexequível, seu proponente irá encontrar consolo e alívio não na criação de algo, mas sim na destruição da ordem vigente.
A primeira vez que li sobre este conceito foi no livro Socialismo, escrito por Ludwig von Mises em 1922. Mises apresenta este conceito já ao final da obra, após ter provado que o socialismo é, em si mesmo, uma impossibilidade prática. Se não há nada de positivo a ser feito, nenhum plano real para se alcançar um arranjo tido como "socialmente benéfico" — porque toda a idéia é completamente insana —, então você deve ou abandonar a teoria ou encontrar satisfação na demolição da sociedade vigente. Os socialistas optam pela segunda. Mises diz que tal atitude é muito óbvia no comunismo. No entanto, diz ele, tal atitude também é presente nas versões mais leves do socialismo, como a social-democracia, pois o objetivo de se atingir o ideal utópico por meio de etapas é igualmente inalcançável na prática.
O destrutivismo, portanto, é uma psicologia de escombros gerada por uma ideologia inexequível na teoria e na prática. O Coringa fracassou na vida. Consequentemente, ele passa a ter como objetivo destruir a vida dos outros.
O mesmo comportamento têm aquelas pessoas que são consumidas por uma visão ideológica a qual o mundo teimosamente se recusa a adotar.
É por isso que qualquer interpretação sobre o filme ser de direita ou de esquerda é excessivamente limitada. Em nossa atual era, estamos empanturrados de personalidades midiáticas e políticas com visões insanas sobre como a sociedade deveria funcionar. Não deveríamos nos surpreender quando esses visionários recorrem à raiva, e então à desumanização dos oponentes, e finalmente à criação de planos voltados abertamente a destruir tudo o que já existe, apenas pelo prazer da destruição. Esse "tudo que já existe" pode ser qualquer coisa: bilionários, consumo de energia, exploração de florestas, comércio internacional, consumo de carne, diversidade, escolhas humanas, pessoas degeneradas, pessoas tradicionalistas, ou mesmo a simples frustração de um indivíduo ao constatar sua ausência de poder total e efetivo.
O destrutivismo é a segunda etapa de qualquer visão inalcançável e impraticável sobre como a sociedade deveria ser em contraposição a uma realidade que se recusa a se conformar à sua utopia.
Por fim, vale ressaltar que o destrutivismo também é estranhamente cativante para movimentos políticos de esquerda e de direita ansiosos em exteriorizar seus inimigos e em destruir toda e qualquer força que esteja no caminho impedindo sua retomada de poder. Com o tempo, tais movimentos sempre acabam encontrando satisfação na destruição — como um fim em si mesmo —, pois é isso que os faz se sentir vivos e que fornece algum sentido à vida.
Conclusão
O Coringa, portanto, não é apenas um homem, não é apenas um indivíduo maluco, mas sim a incorporação dos perigos insanos e mórbidos associados a contínuos fracassos pessoais, os quais são reforçados por uma convicção de que, quando há um conflito fundamental entre uma ideologia utópica e a realidade, este conflito só pode ser resolvido pela criação de caos e sofrimento.
Por mais desagradável que seja, Coringa é o filme que temos de ver para entendermos — e, consequentemente, nos prepararmos para — os horrores que esta mentalidade descontrolada (utópica e, por isso mesmo, vitimista e derrotista) pode desencadear no mundo.
Em outras palavras, o Coringa já inspirou imitadores, e vem fazendo isso há séculos. No caso, é o filme quem está imitando a realidade.
BATMAN VS CORINGA: PROVOCAÇÕES NITZSCHEANAS ACERCA DA MORAL
Os personagens Batman e Coringa, ao serem dísticos de uma luta moral, serão apresentados dentro de um teor filosófico e levados a extremos de dilema moral.
. RESUMO
MACHADO, Vinícius. Batman vs Coringa:
provocações nietzscheanas acerca da moral. Faculdade Paulo VI, Mogi das Cruzes,
São Paulo. E-mail: vinicius.robin@gmail.com
Os personagens Batman e Coringa, ao
serem dísticos de uma luta moral, serão apresentados dentro de um teor
filosófico e levados a extremos de dilema moral, vislumbrando-se as disposições
psíquicas de cada um, em acordo com as histórias oferecidas pelo universo dos
quadrinhos e do cinema. Com o método genealógico de Nietzsche pretendemos
vasculhar as circunstâncias nas quais a moral nasceu, desenvolveu-se e
transformou-se. Sem remeter-se a conceitos ou argumentos metafísicos, Nietzsche
busca revelar preconceitos morais ignorados por conta de uma busca em terrenos
não históricos. Com isso os tipos de valoração moral terão lugar de surgimento,
sob condições e influências diversas. Os conceitos “bom e mau” serão
contrapostos com “bom e ruim”, em tentativa de estabelecer o conhecimento das
conseqüências que cada tipo de valoração causará no homem moderno. A psicologia
do ressentimento será vasculhada no tocante à suas disposições na história que
se apresentarão sob as formas de castigo e pena jurídica donde o “animal-homem”
que se encontra encerrado na comunidade, terá que canalizar seus instintos. Tal
canalização volta-se contra si impulsionados pela força do prazer em fazer
sofrer caracterizando a má consciência. Tais conceitos e análises
pormenorizadas por Nietzsche serão associadas aos personagens Batman e Coringa
que são apresentados como antagonistas morais da cultura atual, compreendidos
como tradução artística do que dela aparece.
Palavras-chave: Moral; Promessa;
Memória; Crueldade; Castigo; Penalidade; Cultura; Confronto.
2. INTRODUÇÃO
Sim! A batcaverna será invadida por
nós. Prepare pipoca intelectual e muita coca-cola de aporia porque a Filosofia
aqui apreciada tentará fazer o trabalho que as escolas há muito estão devendo:
retirar os preconceitos com relação aos super heróis. Ah! E os dos vilões
também. Não sabemos se as crianças estão preparadas para isso, não se sabe
também se elas estão preparadas para os heróis que consomem. Mas e os adultos?
O que têm eles percebido até agora nos super heróis que desde a infância talvez
os incomode?
Quando em 2005, o diretor Christopher
Nolan apresentou um Batman altamente subversivo à polícia e ao Estado, com toda
aquela análise psicanalítica do medo e três anos depois rasgou o sorriso de um
Coringa que explode um hospital, impõe dilema à sociedade e ainda ri disso tudo
sem um pingo de remorso... Isso era apenas a ponta do Iceberg. Justamente
porque no fundo dessas duas obras cinematográficas existe um universo de
Histórias em Quadrinhos que há muito deixa o cinema no chinelo.
Basta revisitar os filmes anteriores
aos de Nolan para perceber a descaracterização das propostas dos quadrinhos.
Mesmo assim, ainda falta muito para o cinema ser comparado aos quadrinhos. Se a
combinação entre imagens, som e vibração que o cinema possibilita se utilizasse
do conteúdo forte que os quadrinhos oferecem, provavelmente as bilheterias de
filmes sobre super heróis careceriam do dinheiro de sua maioria pagante: o das
crianças.
No presente trabalho, Batman e Coringa
serão analisados naquilo que precisamente pouco ou nada se fala deles, naquilo
que além de socos, pontapés, explosões, vôos rasantes e gargalhadas, merece um
crédito: a moral. Este confronto que traduz as lutas mais internas da alma
humana e também os desejos mais escondidos do instinto cerceado. Os roteiristas
não serão visitados diretamente. A nossa análise terá como foco a emergência
dos personagens, à maneira como são apresentados nas histórias, sejam elas em
quadrinhos ou filmes. É como se eles existissem mesmo e estivéssemos fofocando
filosoficamente sobre eles, sem que o Batman descubra, é claro. E para isso,
Nietzsche, que dispensa apresentações, contribuirá com sua filosofia
extemporânea. Como Nietzsche caiu qual luva aqui!
O trabalho se divide em três capítulos.
No primeiro faremos uma apresentação dos dois personagens, levando em conta a
pertinência do tema. O leitor perceberá que, por vezes, utilizaremos de
descrições dramáticas ou até mesmo cruéis das principais
HQs (Histórias em Quadrinhos). Tanto
Batman quanto Coringa merecem tal tipo de apresentação uma vez que pouco se
conhece dos textos em quadrinhos e deles mesmos.
No segundo, os conceitos filosóficos de
Nietzsche serão apresentados. Duas obras foram separadas para a análise do
tema: Genealogia da Moral e Além do Bem e do Mal. Ambas trazem uma harmonia no
pensamento de Nietzsche concernente à moral. O filósofo francês Gilles Deleuze
aparecerá como leitor de Nietzsche. Ele fará menção a uma obra póstuma de
Nietzsche a Vontade de Potência que, todavia, não foi pesquisada para este
trabalho. Com relação à Genealogia da Moral, trabalhamos apenas as duas
primeiras dissertações: [“Bom e mau”, “bom e ruim”] e [“Culpa”, “má
consciência” e coisas afins]. Com relação a Além do Bem e do Mal vislumbramos
os capítulos 5 e 9, [Contribuição à história natural da moral] e [O que é
nobre], respectivamente.
No terceiro capítulo, será feita uma
relação entre os conceitos de Nietzsche a respeito da moral e os dois
personagens antagônicos Batman e Coringa. Algumas citações, tanto do primeiro
quanto do segundo capítulos serão repetidas com o intuito de esboçar melhor as
associações entre o pensamento de Nietzsche e a luta dos personagens.
3. O MORCEGO E O PALHAÇO
3.1 Batman: O Cavaleiro das Trevas
Criar
um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a
natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do
homem?...
Nietzsche
Batman: um personagem icônico, complexo
e cicatrizado, que traduz as lutas internas mais obscuras e subterrâneas da
alma humana. Icônico porque é identificável com milhares de histórias comuns,
como às das pessoas que brigam para dar sentido à vida. Complexo, pois, é
humano. Cicatrizado, porque teve um encontro intenso, ainda criança, com uma
particularidade muito peculiar da vida: a morte.
Seja nas Histórias em Quadrinhos (HQs),
nos filmes1, séries ou desenhos animados, o Batman sempre possui um ar sombrio,
obscuro e misterioso. Como se tivesse algo a esconder por trás da máscara.
Abordagem direta, poucas palavras, violência, impessoalidade: um tanto
paradoxal para um herói que busca trazer a ordem, a paz, o bem comum.
O personagem nasceu pelas mãos dos
jovens desenhistas americanos Bob Kane e Bill Finger em 19392, da editora de
Histórias em Quadrinhos conhecida na época por Detective Comics, hoje DC
Comics. No ano anterior, havia surgido outro personagem, também famoso: o
Superman. Era a Era de Ouro dos quadrinhos e The Bat-Man (nome inicial do
personagem) aparece na publicação de número 27 da editora. Kane se inspirou nos
romances policiais (pulps) e no mascarado mexicano, o Zorro, para criar seu
herói. (COSTA, 2001, p. 9-10)
Ao contrário do Superman, um herói de
outro planeta (Krypton) que possui poderes extra naturais (levantar vôo, visão
raio-x, força extrema, raio laser de aquecimento e resfriamento nos olhos e
etc.), o Batman (do inglês: homem morcego) se serve de artefatos militares,
tecnologia de ponta e treinamento físico e intelectual para combater o
crime em Gotham City, a cidade de insanos artistas do crime. (cf. MALLOY, 2008)
E porque combater o crime? Quais as
motivações que levam um homem comum chamado Bruce Wayne a vestir um traje
militar, dedicar tempo e energia em uma tarefa tão arriscada, tendo uma vida
dupla? Seria um sadismo inato? Teria ele um vício por adrenalina? Ou suas
brincadeiras de herói na infância se desdobraram na vida adulta como um
playground sangrento e real? Todas as alternativas anteriores podem fazer parte
da personalidade do jovem Bruce, mas existe uma, que conduz essas e outras
motivações: uma promessa 3.
Cabe, agora, uma apresentação das
influências que os pais de Batman exerceram em sua vida, assim como uma
descrição da gênese do personagem que culminará na questão da promessa que é
pertinente ao tema do presente trabalho.
O alter ego de Batman, Bruce Wayne, é
filho de Thomas e Martha Wayne. Seu pai é um dos maiores médicos e filantropos
da cidade de Gotham. Ele também é dono das Empresas Wayne, uma companhia que
fabrica produtos de alta tecnologia, mas não se dedica na administração de sua empresa,
pois prefere estar mais disponível para ajudar as pessoas menos favorecidas e,
o faz por meio do exercício da medicina e da filantropia: fazendo doações para
entidades beneficentes. (NOLAN, 2005)
É em um ambiente de harmonia e alegria
que o filho único do casal vive. Nas Histórias em Quadrinhos (HQs) de Batman,
isso é exposto. Mostra-se a influência dos pais sob a personalidade de Bruce e
o medo que ele mantém de descobrir algo sobre seus pais que venha a
decepcioná-lo.
Em A Carta, Bruce, ao refletir sobre a
visão que tinha dos pais na infância, comenta: “Nós carregamos nossos
sentimentos da infância quando pensamos neles como mais que apenas pais. Eles
eram quase... deuses. Pessoas que não fariam nada de errado e resolveriam
qualquer problema que tivéssemos” (LIEBERMAN, 2006).
Em Sombras do Passado, Batman investiga
uma possível relação de seu pai com a máfia no passado. Suspeitando da conduta
do pai, contata um tenente e descobre que em uma festa à fantasia na qual seus pais
o levaram, um mafioso chamado Lew Moxon estava com um sobrinho padecendo por
conta de um tiro que havia sofrido em um assalto.
Como não havia nenhum médico
disponível, Moxon, que também estava na festa, decide chamar o Dr. Wayne que
mesmo relutante, pois, se tratava de um criminoso, aceita cuidar do “paciente”
seguindo o Juramento de Hipócrates lembrado pelo bandido. Ao terminar a pequena
cirurgia de retirada da bala, Wayne recusa o dinheiro oferecido por Moxon e
decididamente diz:
Eu
salvei a vida desse homem porque é a minha profissão... você mencionou o
Juramento de Hipócrates... bem, os médicos também trabalham sob outro
juramento... o de obedecer à lei, e isso inclui dar parte dos ferimentos à bala
de que tratamos... e é exatamente o que vou fazer. (BRUBAKER, 2001)
Mesmo tendo a família sob ameaça de
morte se decidisse dar parte, Thomas Wayne cumpre o juramento que fez e o
bandido é preso dias depois. Ao ficar sabendo de tudo isso, Batman se recorda
da tal festa na qual sua mãe havia se fantasiado de Cleópatra, seu pai de Zorro
e ele, o pequeno Bruce, de Esqueleto da Morte. Recorda-se de um diálogo
específico entre ele e sua mãe que parecia atemorizada quando o marido saiu
para atender o bandido ferido: “– Porque cê tá [sic] com medo mamãe? – Porque seu
pai é muito corajoso, Bruce... e às vezes eu tenho que sentir medo por nós
dois”. Arrependido de ter duvidado de seu pai, reflete: “Você foi corajoso
naquela noite, e fez a coisa certa... apesar das conseqüências... você foi o
Zorro... um herói”.
Depois de esboçar as influências que
Bruce Wayne teve dos pais, entraremos na apresentação de sua origem como
Batman. Existem dois momentos decisivos que marcam a gênese e o desenvolvimento
fundamental de Batman. O primeiro é o brutal assassinato de seus pais quando
ainda era um garoto. Na consagrada HQ de Batman, O Cavaleiro das Trevas, do
aclamado roteirista Frank Miller (1986), Bruce Wayne se encontra aposentado do
capuz, velho e muito frustrado. Em uma cena, ele está de frente para a
televisão, bebendo e trocando de canais quando se depara com o início de um
filme: a Marca do Zorro. É então que traz à tona uma forte e viva memória do
passado.
A descrição seguinte, presente na HQ
citada acima, não apresenta texto, apenas imagens sequenciais. Descreveremos
textualmente as cenas em banda desenhada, com o intuito de acentuar o caráter
mnemônico4 do cruel evento testemunhado por Bruce Wayne enquanto criança e que
justificará as características elementares do tema a ser estudado neste
trabalho.
As cenas mostram um homem e uma mulher
saindo de um prédio de cinema cujo cartaz mostra o filme: Zorro. Na frente do
casal, um garoto despreocupado brinca alegre imitando o herói mascarado, numa
coreografia espadachim enquanto se encaminham para um beco escuro e sujo.
A lúdica fantasia do garoto é
interrompida quando olhando para o céu observa um morcego sobrevoar à luz da
lua. Em seguida sente a mão de seu pai o segurar pelo ombro, empurrando-o para
trás. Logo, outra mão segurando uma pistola aparece: é o anúncio de um assalto.
Tentativa de diálogo e confusão. O dedo do bandido puxa o gatilho: um tiro, o
pai cai no chão. Cartucho da bala ao chão. Mais confusão e o bandido tenta
arrancar o colar de pérolas da mãe, o que faz os óculos dela caírem. Outro
tiro, pérolas se espalham pelo chão juntamente com outro cartucho.
Em Ano Um do mesmo Frank Miller (1987),
a cena em questão mostra um garoto solitário, ajoelhado em frente aos corpos
ensanguentados dos pais, mortos. Um evento perfeitamente comum das grandes
metrópoles, familiar aos ouvidos. A origem de Batman se diferencia de
tradicionais origens de super heróis, pois não apresenta nem um fator
sobrenatural ou algum tipo de acidente químico que o faz se transformar no
homem morcego. Ele não ganha nenhum tipo de força sobre humana, mas toma uma
decisão.
O
catalisador crucial – um assalto que deu errado – é tragicamente comum. E o
resto da gênese de Batman é criado a partir de uma promessa extravagante e
aparentemente tola feita por um garoto a seus pais assassinados – limpar Gotham
City do crime. (JENSEN, 2008 p. 85)
Eis o segundo momento que desenha a
gênese de Batman e é responsável por seu desenvolvimento: uma promessa. O
pequeno Bruce Wayne, em frente ao túmulo dos pais se dá o encargo de lutar
contra criminosos. Em Detective Comics # 33 de Bob Kane e Bill Finger (1939), o
garoto declara: “E eu juro, pelo espírito de meus pais, vingar a morte deles e
devotar o resto de minha vida combatendo todos os criminosos”. (KANE, 1939)
Nas HQs de Batman, não é apresentada
uma vingança comumente dita. Bruce nunca tirou a vida de Joe Chill, o bandido
que matou seus pais. Apenas no filme Batman Begins de Christopher Nolan (2005),
é dada uma tentativa de vingança direta, quando o jovem Bruce, já
universitário, tenta assassinar Chill na saída do tribunal. Não consegue, pois,
Carmine Falcone, um mafioso italiano, chega à frente e o mata primeiro. No
decorrer da história, Nolan tenta fazer uma distinção entre vingança e justiça.
A
promotora de justiça de Gotham, Rachel
Dawes, argumenta dizendo: “Justiça tem haver com harmonia, vingança tem haver
com você se sentir melhor. É por isso que temos um sistema imparcial” (Tradução
nossa) 5.
Na série O Longo Dia das Bruxas de Jeph
Loeb e Tim Sale (1998), o morcego relembra: “Fiz uma promessa no túmulo dos
meus pais... Eu jamais descansaria enquanto não limpasse Gotham do mal que
tirou suas vidas” (LOEB, 1998, p. 29).
A promessa aparece como fator
indispensável na construção deste personagem. Ela é a condutora da missão que o
garoto se deu. Missão que se desdobra ao longo das histórias de Batman, nos
encontros com os mais diferentes tipos de inimigos que o morcego enfrenta. Ele
não tem meta poderes. Seu poder é sua vontade incorruptível em fazer da
corrompida Gotham City um lugar melhor. Em O Palhaço à Meia-Noite de Grant
Morrison (2007), a cidade e o morcego são descritos:
Mais
uma noite na autoproclamada „cidade mais incrível do mundo‟. Onde as pessoas
vão para admirar a fervilhante intensidade luminosa de suas incansáveis
avenidas. Onde vidas humanas são compradas e vendidas e a inocência tem um
preço. Onde sonhos se tornam reais e sangram. Onde fantasmas existem e monstros
deixam suas pegadas no pó. Onde vive o homem que não tem preço, o homem que não
pode ser comprado, vendido ou desviado de seu caminho particular. (MORRISON,
2007, p. 54)
Tal vontade incorruptível é expressa em
sua metodologia de combate ao crime: não usar armas de fogo. Seus pais foram
mortos por uma e isso o faz ter total aversão a elas. Não usá-las exige um
esforço de treinamento físico nas artes marciais, unido a um conhecimento
científico. Todo processo estratégico é seguido de meditação para a obtenção de
concentração6.
Batman é um homem devoto a seus
princípios. Ele possui uma mansão gigantesca que herdou dos pais. Há uma
caverna no subsolo da mansão que veio a calhar para seu empreendimento, sua
espera para atacar, seu silêncio, sua meditação, suas memórias. Lá é seu
refúgio e fortaleza, sua academia de trabalho corporal e centro de
inteligência, pesquisa e análise em vários níveis. Um verdadeiro quartel
general privado. Ele ainda conta com a ajuda de seu fiel mordomo, Alfred
Pennyworth, que possui experiência em medicina de guerra (cf. Ano Um, 1987).
Uma questão importante: porque,
precisamente, escolher um morcego como símbolo? Certamente não é por acaso. A
HQ O Cavaleiro das Trevas mostra que, quando criança, Bruce Wayne brincava
nas dependências de sua mansão, correndo atrás de um coelho branco. O coelho
entra na toca e o garoto, perseguindo o animal, acaba caindo na toca que, na
verdade, se revela uma caverna grande e escura. Caído e machucado no chão,
Bruce é surpreendido por uma revoada de morcegos assustados que voam por todos
os lados. Depois que os morcegos se afastam e se acalmam na caverna, o menino
percebe algo diferente. Já adulto conta:
Então
algo se move. Oculto... algo que suga o ar viciado e sibila. Planando com graça
milenar ele não se afasta como seus outros irmãos. De olhos radiantes,
intocados pela alegria ou tristeza... seu hálito é quente e tem o sabor de
inimigos vencidos... O odor de coisas mortas, coisas condenadas. Com certeza,
ele é o mais feroz sobrevivente... O mais puro guerreiro... brilhando,
odiando... tomando o meu ser. Sonhando... Eu tinha seis anos quando isso
aconteceu... Quando encontrei a caverna... Imensa, vazia, silenciosa como uma
Igreja... Sequiosa como o morcego. (MILLER, 1986)
Mais tarde, já decidido a iniciar seu
plano de combate ao submundo de Gotham, Bruce Wayne se detém na problemática do
disfarce. Faz-se necessária uma máscara. Em diálogo com Alfred afirma:
As
pessoas precisam de exemplos dramáticos para lhes tirarem da apatia. E eu não
posso fazer isso como Bruce Wayne. Como homem... Eu sou de carne e osso. Eu
posso ser ignorado, posso ser destruído. Mas como um símbolo... Como um símbolo
eu posso ser incorruptível. Eu posso ser eterno (...) Algo elementar, algo
aterrorizante (tradução nossa).7
A idéia do morcego surge de maneira
inusitada. Em “diálogo” com a memória de seu pai falecido, Bruce recebe a
visita de uma criatura familiar e tem um “insight” criativo:
Como
pai? Como devo agir? (...) Eu tenho uma fortuna. A mansão da família está sobre
uma caverna... que daria um perfeito quartel general... tenho até um mordomo
com treinamento em medicina de guerra... Sim pai, eu tenho tudo... menos
paciência (...) Já esperei dezoito anos... dezoito anos desde... Desde Zorro. A
Marca do Zorro. Desde aquela caminhada à noite. Desde o homem com olhar vazio e
assustado... de voz áspera como vidro se partindo... Desde que minha vida
perdeu o sentido. Sem o menor aviso, ele surge... estilhaçando a janela do seu
estúdio, agora meu. Já vi esta criatura antes... em algum lugar. Ela me
aterrorizou quando criança... me aterrorizou... Sim, pai. Eu me tornarei um
morcego. (MILLER, 1987)
Uma justificativa que corrobora com seu
trauma de infância, é dada em Batman Begins quando Alfred o interroga sobre o
porquê do morcego: “Morcegos me assustam.É hora de meus inimigos compartilharem
do meu pavor” (tradução nossa)8. Ou seja, causar medo na mesma medida em que
possui medo.
Por fim, um fator indispensável no
personagem. Fator que se torna via de regra: não matar. Executar um criminoso
seria meio fácil de impedir que ele volte a cometer outros crimes, sobretudo
quando se trata de criminosos em Gotham City: uma cidade que “serve o melhor do
crime” 9. Isso não funciona com o Batman. Ele diria: “Não sou assassino” 10.
Seus pais foram mortos por um.
Em Batman Begins, isso fica bem claro,
quando ao término de seu treinamento para se tornar membro efetivo da Liga das
Sombras, Bruce Wayne é submetido a um último teste: ele precisa executar um
criminoso. Segue o diálogo com seu mestre e posterior inimigo Ra‟s Al Ghul:
-
Mas primeiro, você precisa demonstrar seu comprometimento com a justiça.
-
Não. Não sou um executor.
-
Sua compaixão é uma fraqueza que seus inimigos não irão compartilhar.
-
Por isso ela é tão importante. Ela nos separa deles.
-
Você quer lutar contra criminosos? Este homem é um assassino.
-
Este homem deveria ser julgado.
-
Por quem? Burocratas corruptos? Os criminosos zombam das leis da sociedade.
Você sabe disso melhor que a maioria.
-
Eu voltarei a Gotham e lutarei contra homens como este... Mas não me tornarei
um executor. (tradução nossa)11
Esta regra máxima será motivo de muitas
discussões, as quais são encontradas em muitas das HQs de Batman. Ela será a
incorruptibilidade moral do Morcego, seu não ultrapassar o limite, sua garantia
de conseguir conter as forças caóticas da desordem em busca da paz, da justiça
e do bem comum. Contudo, será, paradoxalmente, seu ponto mais fraco, sua
vulnerabilidade, seu Calcanhar de Aquiles com relação aos que ama. Pois sem
esta regra, Batman poderia ter evitado muitas mortes causadas por
seu principal antípoda, que não hesita em atacar seu ponto de
vulnerabilidade de maneira sádica e cruel: o Coringa.
3.2 Coringa: O Homem que Ri
Esta
“audácia” das raças nobres, a maneira louca, absurda, repentina como se
manifesta o elemento incalculável, improvável, de suas empresas (...), sua
indiferença e seu desprezo por segurança, corpo, vida, bem-estar, sua terrível
jovialidade e intensidade do prazer no destruir, nas volúpias da vitória e da
crueldade.
Nietzsche
Coringa: um personagem explosivo,
sádico e totalmente caótico. Explosivo, pois não hesita em explodir o que vê
pela frente, deixando sua marca de destruição voluntária. Sádico, uma vez que
aprecia causar dor e sofrimento às suas vítimas, tratando-as como brinquedos
particulares do terror. Caótico, porque é imprevisível em suas ações e
altamente perigoso para a conservação da ordem e da vida.
Some tudo isso a um escárnio constante
e se tem o inimigo principal do Batman: o mais forte, o mais pertinente. Um criminoso
incomum, que escolheu o crime como forma de expressão artística: tem a
aparência de um palhaço. Um palhaço assassino que faz de Gotham City seu
picadeiro do medo e do caos. Por isso tentaremos trazer à tona os detalhes
principais que formam suas características.
O Coringa foi inventado pelos mesmos
criadores de Batman, Bob Kane e Bill Finger, em parceria com Jerry Robinson. A
pretensão era criar um vilão para Batman, e Kane se inspirou no personagem do
ator Conrad Veidt no filme “O Homem Que Ri” 12 de 1928. Robinson contribuiu com
o personagem inspirando-se em sua paixão por cartas de baralho 13(MANN, 2003).
Sua origem, como personagem do universo
de Batman, é contada em Detective Comics #168 de Bob Kane, Bill Finger e Jerry
Robinson (1951), em A Piada Mortal de Alan Moore (1988) e no filme Batman de
Tim Burton (1989).
A primeira obra não dá importância ao
passado do Coringa, apenas o apresenta como um criminoso chamado “Capuz
Vermelho” que assalta uma fábrica de baralhos eem uma luta contra o Batman, acaba
caindo em um tanque que contém uma mistura química. Ele mesmo diz: “O vapor
químico... tornou meu cabelo verde, meus lábios, vermelho carmim... e minha
pele, esbranquiçada! Pareço um palhaço do mal! Que piada infame!”. E segue:
“Concluí que minha face poderia aterrorizar as pessoas! E por causa da fábrica
de baralhos e à carta que tem a face de um palhaço, decidi me autodenominar o
Coringa” (KANE, 1951).
Na segunda obra, Allan Moore apresenta
um comediante frustrado que não consegue emprego e sofre por ser fraco e não
ter como sustentar a esposa que está esperando um filho. No desespero, se une
com bandidos para assaltar a fábrica de baralhos vestido como o Capuz Vermelho.
Na manhã do assalto, ele recebe a notícia que sua esposa, ao tentar testar um aquecedor
de mamadeiras, provoca um curto circuito e acaba morrendo. Mesmo abatido com o
acontecimento ele vai para a fábrica. Lá encontra a polícia e o Batman. Cai no
tanque químico e depois de ser levado pela correnteza até as margens de um rio,
observa seu reflexo na água. Vendo o rosto modificado, senta-se ponderante e
cabisbaixo. Minutos depois, levanta-se e começa a rir compulsivamente a ponto
de gargalhar.
Na versão cinematográfica de Tim
Burton, o Coringa é Jack Napier, um bandido braço direito do chefão do crime de
Gotham. Diferentemente da versão anterior, o personagem já possui predisposição
forte e habilidosa para o crime. A queda no tanque de líquido químico, sob as
mesmas circunstâncias das versões anteriores, é apenas um catalisador para uma independência
com relação à máfia: ele, agora, trabalha por conta própria e se dá o trabalho
de fazer do crime um instrumento para sua “nova filosofia”:
Eu
agora faço o que outras pessoas apenas sonham. Eu faço arte... até alguém
morrer. Eu sou o primeiro artista homicida do mundo totalmente em exercício.
(tradução nossa) 14
Com esta frase de autodefinição feita
pelo Coringa, e após ter sido elaborada uma apresentação de sua gênese,
abriremos caminho para entender a personalidade deste personagem que é moldada
de acordo com as histórias mostradas nas HQs de Batman e que serão de suma
importância para as pretensões deste trabalho, com relação ao tema proposto.
Ora, o fato de o nome “Coringa” ser
atribuído ao personagem, não é por acaso. A carta coringa no baralho abre
possibilidade de participação em várias funções dentro do jogo, ela é
adequável, substitui outras cartas, é móvel. Essa é uma característica básica
do Coringa: a analogia do personagem com a carta do baralho, demonstra não
apenas suas características psicológicas mas também sua forma de abordagem nas
histórias, seus métodos.
Com relação a métodos, o Coringa
trabalha da seguinte forma: ele faz uma aparição pública na qual anuncia uma
situação que desestabiliza todo um estado de segurança, paz e ordem. Apresenta
uma ameaça direta utilizando-se do medo para instaurar um ambiente de terror
deixando suas vítimas vulneráveis para, assim, poder finalmente atacar. Seu
“propósito” subsiste em uma “necessidade de romper com uma ordem enfadonha e
restritiva. O Estado impõe essa ordem com objetivo mais social que político, e
o Coringa reage tentando destruir qualquer ordem” (SPANAKOS, 2008, p. 68).
Sua primeira aparição foi em Batman #1
de 1940. Em versão mais recente, a mesma história é atualizada com mais
detalhes por Ed Brubaker em O Homem que ri de 2005. Nela o Coringa se apresenta
a Gotham City por meio da televisão, em uma transmissão ao vivo para toda a
cidade. Ele ameaça tirar a vida de todos os cidadãos, começando pelos mais
famosos, utilizando seu famoso veneno do riso (Smilex) 15. Marca data e hora e
declara poeticamente: “Um de cada vez eles vão ouvir meu gemido. E então esta
cidade suja irá cair comigo”. (BRUBARKER, 2005)
Isso causa um caos total nos cidadãos e
coloca as autoridades de segurança em prontidão temerosa, assim como ao próprio
Batman. Consegue, estrategicamente, matar a todos os famosos que prometeu. No
curso da história, ele invade um centro de reabilitação para doentes mentais e
os liberta distribuindo armas para os internos causando mais confusão e mortes
nas ruas da cidade. Batman reflete consigo: “Nunca me preparei para isto.
Estudei assassinos, ladrões, estupradores... pessoas desesperadas cometendo
atos desesperados. Mas nunca imaginei algo como o Coringa”. (BRUBAKER, 2005)
Depois, o Palhaço do Crime ameaça envenenar toda a cidade com o Smilex, por
meio do sistema de distribuição de água. Batman impede sua última empreitada e
o coloca na prisão.
Na mesma história, o morcego tenta
esboçar uma explicação para os atos do Coringa dizendo:
Quando
caiu no tanque de resíduos químicos, ele estava no lugar errado pelo motivo
errado, mas ainda assim culpa Gotham. (...) Em sua mente doentia somos culpados
apenas por estarmos vivos. Agora entendo tudo. Sua fúria e seu ódio paranóico.
Ele pode ser um gênio, mas ódio é tudo que conhece. (BRUBAKER, 2005)
Em outra tentativa de explicação, no
filme Batman, O Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan (2008), Alfred
Pennyworth, o fiel mordomo de Batman, arrisca: “Alguns homens não estão à
procura de algo lógico, como o dinheiro. Eles não podem ser comprados,
ameaçados, não são razoáveis ou negociáveis. Alguns homens só querem assistir o
mundo pegar fogo”. (tradução nossa) 16
A ideia do jogo de baralho fica bem
mais clara em Asilo Arkham de Grant Morrison (1990). Ao ser chamado pelo
próprio Coringa ao Asilo Arkham17, Batman se encontra com a psiquiatra do
asilo, Ruth Adams. Em conversa ela se refere ao Coringa nestes termos:
O
Coringa é um caso especial. Muitos de nós acreditam que ele está além de
qualquer tratamento. Na verdade, não estamos sequer certos de que ele possa ser
definido como insano.(...) É bem possível que estejamos diante de um caso de
super-sanidade. Uma nova e brilhante modificação da percepção humana. Mais
adequada à vida urbana no fim do século vinte.(...) Diferente de você ou de
mim, o Coringa não parece ter controle sobre as informações sensoriais que
recebe do mundo externo. Por isso, alguns dias ele é um palhaço infantil.
Outros, um psicopata assassino. Ele não tem verdadeira personalidade. Ele cria
uma diferente por dia. O Coringa se vê como o mestre do desgoverno, e o mundo
como um teatro do absurdo. (MORRISON, 1990)
Em O Palhaço à Meia-Noite, Grant Morrison
(2007) retoma o tema da psique do Coringa. Em diálogo com Arlequina, a fiel
discípula do Coringa, Batman diz: “Ele mudou novamente. Você sabe como ele muda
depois de alguns anos. Você escreveu o livro, doutora Quinzel. Ele não tem
nenhuma personalidade real, lembre-se, apenas uma série de „superpersonas‟”.
(MORRISON, 2007)
Nesta linha caótica e imprevisível, a
crueldade nas ações do Coringa emerge de maneira absurda. Para observarmos
isso, veremos uma HQ muito importante, que explora muito bem várias
características do Coringa. Em A Piada Mortal de Allan Moore (1990), o príncipe
palhaço do crime se propõe um experimento: provar que qualquer um pode
tornar-se louco, sob a condição de um dia ruim. Um dia ruim separaria o homem
são do insano.
Na história dessa HQ, após de ter
fugido do Asilo Arkham, o Coringa toma posse de um antigo e abandonado parque
de diversões. Ele vai até a casa do amigo e parceiro de Batman, o Comissário de
polícia Jim Gordon, que na ocasião recebe a visita de sua filha, Bárbara Gordon.
Quando Bárbara abre a porta é surpreendida pelo Coringa que imediatamente lhe
aponta uma arma e atira à queima roupa, deixando-a paraplégica. Seus capangas
batem no Comissário e o deixam desacordado. Bárbara, agonizante, ainda
questiona o Coringa pelo porque daquilo tudo, ao que ele responde: “Para provar
uma coisa”. E levantando uma taça, brinda com um sorriso: “Saúde ao crime”.
(MOORE, 1988)
Depois disso leva o Comissário até o
parque de diversões e manda seus capangas anões vestidos de “bailarinas-demônios”
retirarem as roupas de Gordon. Completamente nu e puxado por uma coleira em
direção ao trem fantasma, Gordon, ainda acordando do desmaio, se dá conta do
acontecimento e diz: “Você. Oh, não... eu... eu me lembro!”. O Coringa intervém
com um discurso sobre a memória e a loucura:
Lembra?
Oh, eu não faria isso! Lembrar é perigoso... eu vejo o passado como um lugar
cheio de ansiedade. O “pretérito imperfeito”, como você chamaria. Ah, ah, ah,
ah! As memórias são traiçoeiras! Num momento, você está perdido num carnaval de
prazeres, com o aroma da infância, os neons da puberdade... No outro, elas te
levam a lugares onde a escuridão e o frio trazem à tona coisas que você
gostaria de esquecer! As memórias podem ser vis, repulsivas, brutais... como
crianças. Ah, ah, ah! Mas podemos viver sem elas? A razão se sustenta nelas.
Não encarar as memórias é o mesmo que negar a razão! Mas e daí? Quem nos obriga
a ser racionais? Não há cláusula de sanidade. Assim, quando você estiver dentro
de um desagradável trem de recordações, seguindo pra lugares do seu passado
onde o riso é insuportável... lembre-se da loucura. Loucura é a saída de
emergência! Você só precisa dar um passo pra trás e fechar a porta com todas
aquelas coisas horríveis que aconteceram... presas lá dentro... pra sempre.
(MOORE, 1990)
Logo após é levado para o interior do
trem fantasma. Enquanto vai percorrendo os trilhos, Jim Gordon assiste a cenas
de terror: fotos de sua filha nua, baleada e se contorcendo em dores. Tudo isso
tendo como fundo musical, um Coringa altamente debochado cantando uma ode à
loucura. Segue um trecho: “Quando o mundo está cheio de preocupação e todas as
manchetes gritam desespero, quando tudo é estupro, fome e guerra, bem... então,
só há uma coisa certa a fazer... você deve sorriiiiir...”. (MOORE, 1990)
É possível perceber que o Coringa
expressa sua maneira de ver o mundo e deixa bem clara sua repulsa ao tipo de
homem contemporâneo do qual a fraqueza perante a realidade trágica da vida é
motivo de escárnio, de riso. Constatamos claramente: imediatamente depois
de terminar sua tortura psicológica ao comissário Gordon, ele o tranca em uma
jaula para animais e o apresenta, em um tom de mestre de cerimônia, nos
seguintes termos à sua platéia de bizarros artistas de circo:
Senhoras
e senhores! Vocês já o conhecem pelas manchetes dos jornais! Agora, tremam ao
ver com seus próprios olhos o mais raro e trágico dos mistérios da natureza!
Apresento... o Ho-mem co-muuum! Fisicamente ridículo, ele possui, por outro
lado, uma deturpada visão de valores. Observem o seu repugnante senso de
humanidade, a disforme consciência social e o asqueroso otimismo. É mesmo de
dar náuseas, não? O mais repulsivo de tudo são suas frágeis e inúteis noções de
ordem e sanidade. Se for submetido a muita pressão... ele quebra! Então, como
ele faz pra viver? Como esse pobre e patético espécime sobrevive ao mundo cruel
e irracional de hoje? A triste resposta é... „não muito bem‟. Frente ao
inegável fato de que a existência humana é louca, casual e sem finalidade, um
em cada oito deles fica piradinho! E quem pode culpá-los? Num mundo psicótico
como este... qualquer outra afirmação seria loucura! (MOORE, 1990)
Ainda vislumbrando o fator cruel nas
ações do Coringa, na HQ Morte em Família, o roteirista Jim Starlin (1988), mostra
a morte do segundo Robin18, Jason Todd, pelas mãos do Coringa. O Palhaço do
Crime surra o garoto com um pé de cabra: “Prepare-se para uma sova bem sovada,
garoto. Mas me deixe dizer logo de cara... isso vai doer mais em você do que em
mim” (STARLIN, 1988). As cenas em banda desenhada mostram uma sequência de
golpes realizados por um Coringa aos risos de alegria e satisfação, na presença
da mãe do garoto. Em seguida, prepara uma bomba relógio que explode, matando
Jason Todd e sua mãe juntos. Momentos depois, Batman carrega nos braços o corpo
deformado de seu pupilo.
Outro fator importante no personagem,
ligado à crueldade e ao escárnio, é o dilema. Entendido aqui como: “situação
embaraçosa com duas soluções difíceis ou penosas” 19. Em Batman, O Cavaleiro das
Trevas de Christopher Nolan (2008), são apresentados quatro casos de dilemas
efetuados pelo Coringa. Os dois primeiros são direcionados especialmente ao
Batman, os outros dois, são dirigidos aos cidadãos de Gotham.
Trata-se de colocar em pauta uma tragédia
iminente, na qual a decisão no agir depende, em primeira ordem, de um indivíduo
e em segunda ordem, de uma comunidade: escolhas que tem proporções coletivas. O
Coringa quer que tanto Batman, juntamente com as autoridades de segurança,
quanto a cidade participem do que ele chama de “jogo”.
No primeiro, ele ameaça matar pessoas
se o Batman não revelar sua verdadeira identidade. Em rede nacional ele
aterroriza dizendo: “Vocês querem ordem em Gotham... Batman deverá tirar a
máscara e se revelar. Oh, e cada dia que não o fizer, pessoas morrerão.
Começando esta noite. Eu sou um homem de palavra” 20. Na medida em que Batman
não tira a máscara, o Coringa vai eliminando um por um, deixando pistas para as
próximas vítimas. Ele consegue matar um homem que se fantasiava de Batman, uma
juíza, o então comissário de polícia e outros dois policiais. Pressionado pela
situação embaraçosa, Batman decide se entregar, mas é surpreendido pelo
promotor de justiça, Harvey Dent 21, que assume ser Batman e é levado preso.
Mais tarde, a farsa serviu para atrair o Coringa para uma emboscada com o
intuito de prendê-lo.
Na segunda ocasião, o Coringa captura
Harvey Dent e Rachel Dawes 22, propondo que Batman escolha um dos dois para
salvar, pois, ambos estão amarrados a bombas-relógio cercadas de barris de
gasolina, em diferentes localidades. O palhaço diz: “Há apenas minutos
restantes. Então você terá que jogar meu joguinho se quiser salvar um deles.
(...) Matar é fazer uma escolha. (…) Escolha entre uma vida ou outra: seu amigo
da promotoria ou a noivinha ruborizada dele” (tradução nossa).23 Ao que Batman
o espanca tentando arrancar a localização dos dois raptados, o Coringa ri, como
alguém que ri da mais engraçada anedota, e diz: “Você não tem nada, nada com o
que me ameaçar, nada a fazer com toda a sua força” (tradução nossa) 24.
O Coringa fornece as localizações e
Batman escolhe salvar Rachel enquanto o comissário Gordon vai atrás de Harvey
Dent. Chegando ao prédio, ao abrir a porta ele se encontra com Harvey ao invés
de Rachel: o Coringa deu os endereços trocados. Gordon não chega a tempo:
Rachel está morta.
O terceiro dilema se dá quando um
funcionário das empresas Wayne chamado Coleman Reese, ao descobrir a identidade
secreta de Batman, decide ir até a televisão para entregar o Morcego. O Coringa
não gosta da ideia e telefona para a emissora de TV que está fazendo a
transmissão e, ao vivo, ameaça:
Eu
tive a visão de um mundo sem o Batman. A máfia conseguia um lucrinho e a
polícia tentava pegá-los um quarteirão de cada vez. E isso era tão... chato. Eu
mudei de ideia. Não quero o Sr. Reese estragando tudo… mas porque eu deveria
ter toda a diversão? Vamos dar chance a outros. Se Coleman Reese não estiver
morto em 60 minutos... então eu explodo um hospital” (tradução nossa) 25
O problema é que muitos cidadãos
possuem parentes internados nos hospitais, incluindo os policiais. É então que
começa uma caça a Reese. O já promovido comissário Gordon, com a ajuda de
Batman, consegue evacuar os hospitais a tempo e conservar a vida de Coleman Reese
que quase morre pelas mãos de cidadãos com parentes nos hospitais.
Por fim, no quarto dilema, ele convida
a cidade para entrar em seu jogo. Quando os cidadãos estão sendo retirados de
uma determinada ilha da cidade, são usadas duas embarcações. Na ocasião, uma
embarcação carrega prisioneiros perigosos que o promotor Harvey Dent havia
prendido, enquanto a outra leva cidadãos comuns. Coloca barris de gasolina nas
duas barcas e deixa um detonador remoto para cada uma. Entrando na freqüência
de rádio das embarcações, o Coringa se comunica com ambas ao mesmo tempo:
“Esta
noite, vocês todos farão parte de um experimento social. Através da magia do
combustível diesel e do nitrato de amônia, estou pronto agora pra explodir
vocês pro céu. Se alguém tentar sair de sua barca, eu mato todos. Cada um tem
um detonador para explodir o outro barco. À meia-noite eu explodo a todos. Se,
entretanto, um de vocês apertar o botão, eu deixarei essa barca viver. Então
quem vai ser? A coleção dos mais procurados do Harvey Dent ou os doces e
inocentes civis? Vocês escolhem! Oh, é bom decidirem logo porque as pessoas no
outro barco talvez não sejam tão nobres”. (tradução nossa) 26
Enquanto o relógio corre marcando
quinze minutos para a meia noite, a barca com os cidadãos entra em uma discussão
para decidir se apertam ou não o botão. O segurança diz que o detonador não
será ativado. Um cidadão fala que não cabe a ele decidir. Outra diz que os
prisioneiros da outra barca já tiveram as chances deles e não
souberam aproveitar e outro propõe uma
votação: todos concordam. Ao final da votação os resultados foram 140 contra e
396 a favor da detonação. Ao perceber que ninguém se levanta para apertar o
botão, um cidadão diz: “Ninguém quer sujar as mãos. Ótimo. Eu faço. Aqueles
homens no outro barco? Eles fizeram suas escolhas. Escolheram matar e roubar.
Não faz nenhum sentido termos que morrer também”. 27 Ao dizer isso, ele pega o
detonador, titubeia, devolve-o e volta a seu lugar sem coragem de fazê-lo.
Na outra barca, a dos criminosos, o
segurança também não tem coragem de apertar o botão, mesmo com a maioria dos
prisioneiros gritando para que ele o faça e rápido. Até que um dos prisioneiros
se dirige para o segurança dizendo: “Você não quer morrer... mas você não sabe
como tirar uma vida. Dê isso a mim. Estes homens vão te matar e tomar de
qualquer jeito. Dê pra mim. Você pode dizer que eu tomei à força. Me dê e eu
farei o que você deveria ter feito a 10 minutos atrás”.28 O segurança entrega
para o criminoso, que por sua vez joga o detonador pela janela.
Porque tanta satisfação em estabelecer
esses dilemas e se contentar com o sofrimento trágico do outro? Em outra
ocasião o Coringa afirma: “Você quer saber porque eu uso uma faca? Armas são
muito rápidas. Você não consegue saborear todas as pequenas emoções. Em seus
últimos momentos, as pessoas te mostram quem realmente elas são.”29
Neste filme, o diretor Christopher
Nolan não apresenta a cena da queda no tanque de líquido químico que provocou a
brancura na pele, o avermelhamento dos lábios, os cabelos verdes e a contração
na face em um sorriso constante, o que seria convencional. Aqui, o Coringa
mesmo pinta os cabelos de verde, usa maquiagem no rosto e rasga as bochechas em
formato de sorriso. E de fato, o produto químico, nas versões anteriores,
funciona apenas como explicação para o rosto de palhaço.
Ter o rosto de palhaço simboliza sua
postura diante da vida: a saber, diante da tragédia da vida que mesmo sendo
cruel e sem sentido, merece um sorriso. Ao se referir às cicatrizes em seu
rosto, no formato de um sorriso, ele explica:
Meu
pai era um bêbado e um viciado. Certa noite, ele fica mais louco que de
costume. Mamãe pega a faca de cozinha para se defender. Ele não gosta disso...
nem um pouco. Então, comigo assistindo, ele enfia a faca nela, rindo enquanto
faz isso. Ele se vira pra mim e diz: “porque tão sério?”. Ele vem até mim com a
faca: “Porque tão sério?”. Enfia a lâmina na minha boca: “Vamos colocar um
sorriso neste rosto”. 30
Em outra ocasião, ainda no filme, ele
conta sobre suas cicatrizes:
Eu
tinha uma esposa. Ela era linda. (…) Me dizia que eu me preocupava demais. Me
dizia que eu tinha que sorrir mais. Ela jogava e se envolveu até o pescoço com
agiotas. Um dia retalharam o rosto dela. E não tínhamos dinheiro para
cirurgias. Ela não agüenta! Eu só queria vê-la sorrindo outra vez. Eu só queria
que ela soubesse que eu não me preocupo com as cicatrizes. Então... eu enfio
uma navalha na minha boca e faço isso comigo mesmo. E sabe o que acontece? Ela
não agüenta olhar pra mim. Ela vai embora! Agora eu vejo o lado engraçado:
agora eu estou sempre sorrindo! 31
Essas duas explicações trágicas
corroboram com a versão de Allan Moore, em “A Piada Mortal”, na qual sua esposa
grávida morre em um acidente doméstico tolo. Corroboram no sentido de
expressarem exemplos comuns que acontecem nos dias atuais: maus tratos a
criança, violência contra a mulher, alcoolismo, vício em jogos, abandono, falta
de emprego, fracasso profissional, acidente doméstico. São exemplos que causam repulsa,
náuseas. E o Coringa pôde superá-los e o demonstra por meio do riso.
Essa postura de deboche perante o
trágico e suas investidas para criar situações de dilema mostram as pretensões
do Coringa em causar caos a partir do medo, deixando as pessoas vulneráveis e
pressionadas a tomarem uma decisão difícil ou simplesmente por diversão. Por
mais que sejam situações estratégicas, elas estão longe de serem planejamentos
comuns de controle e segurança: é justamente contra o controle, segurança,
bem-estar, conservação e estabelecimento que o Coringa opera. Ele se define
bem:
Eu
realmente pareço um cara com planos? Sabe o que eu sou? Eu sou um cachorro
correndo atrás de carros. Eu não saberia o que fazer se eu pegasse um. (...) Eu
apenas faço coisas! A mafia tem planos. Os policiais tem planos. Gordon tem
planos. Eles são esquematizadores. Esquematizadores tentando controlar
seus mundinhos. Eu não sou um esquematizador. Eu tento mostrar aos
esquematizadores o quanto suas tentativas de controlar as coisas realmente são
patéticas.32
O fator simplório e patético dos
planejamentos de controle são motivos de zombaria para o Coringa. Ele se
diverte com eles. Tudo que é ordenado, regrado e estabelecido, motiva o
personagem a impor uma contrapartida. Ele continua:
Olha
o que eu fiz a esta cidade com uns barris de gasolina e algumas balas. Sabe o
que eu percebi? Ninguém entra em pânico quando as coisas vão de „acordo com os
planos‟. Mesmo que o plano seja terrível. Se amanhã eu digo à imprensa que um
arruaceiro vai levar um tiro, ou um caminhão de soldados vai ser explodido...
ninguém entra em pânico. Porque isso tudo faz parte do plano. Mas quando eu
digo que um velho prefeitinho vai morrer... então todo mundo perde a cabeça.
Introduza uma pequena anarquia. Perturbe a ordem estabelecida… e tudo se torna
caos. Eu sou um agente do caos. E sabe uma coisa a respeito do caos? Ele é
justo.33
A justiça no próprio caos: conceber a
desordem como justa, cabível, algo dado. Trata-se de uma força desregrada, sem
limites, despreocupada. Tal concepção vai de choque à concepção de justiça do
restante da sociedade que investe defensivamente ou com inibição: com força
reativa. Portanto, o esforço das delegações de segurança do Estado (Gotham),
que possuem a função de ordenar o desordenado, entram no “jogo” do Coringa como
força de inibição e escudo de defesa que atingem seu grau máximo de força
contrária e estabelecedora da ordem, na pessoa do Batman.
4. NIETZSCHE E A ANÁLISE DA MORAL
E
o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer.
Nietzsche
4.1 Valorações morais
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche,
em suas concepções acerca da Moral, fez uma busca minuciosa até as origens 34
do tipo de valoração moral, tentando entender seu desdobramento e conseqüente
repercussão em seu tempo: a saber, o final do século XIX no contexto cultural
europeu.
A problemática para ele, e para nós
também, é de, simplesmente, entender esta luta histórica que se apresenta ao
homem sob as formas de bem e mal que têm se imposto como dilema dramático de
escolha. Parece que cabe a filósofos, antes de fazer opções, conhecer os
objetos para posicionar-se a favor, contra ou deixá-los. Com isso podemos
perguntar, acompanhando Nietzsche:
(...)
sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor „bom‟ e „mau‟? e
que valores têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do
homem? São indícios de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao
contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua
coragem, sua certeza, seu futuro? (GM, p. 09)
Para isso, ele se utilizou de método
genealógico, lançando mão de conhecimento histórico, filológico e análises
psicológicas profundas no tocante às disposições do homem na formulação de tal
valor: “encontrei e arrisquei respostas diversas, diferenciei épocas, povos,
hierarquias dos indivíduos, especializei meu problema, das respostas nasceram
novas perguntas, indagações, suposições, probabilidades”. (GM, p. 09)
Tais análises se encontram, mais
sistematizadas, em seu livro Genealogia da Moral no qual Nietzsche frisa bem
sua intenção em dissipar preconceitos acerca da moral que até então foram
tomados por apenas um ponto de vista. É justamente colocando em questão esse
ponto de vista vigente e hegemônico que o filósofo empreenderá sua busca pela
origem (surgimento) de tais preconceitos sob o pressuposto de nova exigência:
Enunciemo-la,
esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio
valor desses valores deverá ser colocado em questão – para isto é necessário um
conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se
desenvolveram e se modificaram (...), um conhecimento tal como até hoje nunca
existiu nem foi desejado. (GM, p. 12)
Faz-se importante salientar que
Nietzsche não leva em conta a metafísica como acessório para a empresa de
analisar as origens da moral e muito menos pensa em tê-la como fundamento
inerente ao próprio homem que justifique o desenvolvimento da moral como opção
saudável à vida. Por que para Nietzsche a moral só pode ser conhecida a partir
de um nascimento, sob circunstâncias de desenvolvimento e transformação. O
próprio valor da moral é colocado como problema. Ele pretende analisar o que é
entendido até então como não analisável. É que sua filosofia “se constrói, em
medida considerável, em contra-dicção, como um contra discurso em relação tanto
à tradição da história da metafísica quanto, numa perspectiva de confronto e
crítica cultural, como uma radical oposição à modernidade”. (GIACÓIA, 2008, p.
190)
As razões desta crítica podem ser
compreendidas observando-se uma corrente filosófica e religiosa que se pretende
universal em plano moral. Isso se encontra no platonismo e consequentemente no
Cristianismo35, por serem, ambos, determinadores de “supremas referências
axiológicas que determinam o horizonte normativo e a substância ética da
modernidade”. (GIACÓIA, 1997, p 13)
Esse valor substancial é tido como dado
e incontestável. De modo direto: aquilo que é “bom” sendo elevado no valor em
relação ao que é “mau” estaria acima de qualquer questionamento, não havendo
hesitações ou dúvidas em considerá-lo como tal. Por isso Nietzsche propõe uma
troca de perspectiva na consideração:
E
se no “bom” houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um
veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas
do futuro? Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num
estilo menor, mais baixo?... De modo que precisamente a moral seria culpada de
que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que
precisamente a moral seria o perigo entre os perigos?... (GM, p. 12-13)
Com essa consideração nova, Nietzsche
investiga, imediatamente, o surgimento do conceito e juízo “bom” a partir de um
espírito histórico. Desconsidera a ideia inglesa36 de que o conceito “bom”
tenha sido criado por aqueles a quem se tenham praticado ações não egoístas, a
quem tenham sido úteis, desdobrando-se em louvores e agradecimentos e que com o
tempo foram se acostumando em chamar atos altruístas de “bons”.
Mas Nietzsche propõe outra coisa: foram
os homens superiores, os nobres, os senhores quem criaram o conceito “bom” a
partir deles mesmos, tendo eles mesmos como referência. É como se o nome
brotasse como extensão de seu próprio brilho, o brilho nobre. Diferentemente da
ideia inglesa acima que cria a partir da ação de outro e, por hábito, continuam
a atribuir o nome “bom” esquecendo-se de sua origem.
Foram
os “bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e
pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja,
de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e
vulgar e plebeu. (GM I § 2)
Esses homens superiores deram nome ao
valor. O que lhes era caro, precioso, querido, desejado, agradável, saboroso,
etc., recebeu o nome de “bom” como distintivo. E logo esse “bom” só pode estar
em contrapartida ao que é barato, indesejado, desagradável, não precioso, etc.
Em contraposição criaram o nome “ruim”.
O
pathos da nobreza e da distância (...), o duradouro, dominante sentimento
global de uma elevada estirpe senhorial, em sua relação com uma estirpe baixa,
com um “sob” – eis a origem da oposição “bom” e “ruim”. (O direito
senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber a própria
origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem “isto é
isto”, marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se
assim das coisas). (GM I § 2)
Para chegar a essa origem o filósofo
levou em conta a etimologia do conceito em diversas línguas e verificou que em
todas elas, o fator senhorial foi base para o desenvolvimento conceitual e
definidor do valor em questão, sempre em crescimento paralelo com o fator contrário,
o do escravo:
(...)
em toda parte, “nobre”, “aristocrático”, no sentido social, é o conceito básico
a partir do qual necessariamente se desenvolveu “bom”, no sentido de
“espiritualmente nobre”, “aristocrático”, de “espiritualmente bem- nascido”,
“espiritualmente privilegiado”: um desenvolvimento que sempre corre paralelo
àquele outro que faz “plebeu”, “comum”, “baixo” transmutar-se finalmente em
“ruim”. (GM I § 4)
Nietzsche se refere aos senhores de
várias formas: poderosos, nobres, fortes, superiores, bem logrados etc. Assim
como aos escravos: plebeus, baixos, fracos, malogrados etc. Mas quem são esses
senhores? Porque são importantes dentro da compreensão de valoração moral para
Nietzsche?
Em sua obra Além do Bem e do Mal, é
apresentada as características desse tipo de homem capaz de estabelecer
valores, cunhar nomes:
Homens
de uma natureza ainda natural, bárbaros em toda terrível acepção da palavra,
homens de rapina, ainda possuidores de energias de vontade e ânsias de poder
intactas (...) A casta nobre sempre foi, no início, a casta de bárbaros: sua
preponderância não estava primariamente na força física, mas na psíquica – eram
os homens mais inteiros (o que em qualquer nível significa também “as bestas
mais inteiras”. (ABM § 257)
Nietzsche observa que houve uma
inversão no então conceito de “bom” e, por conseguinte no seu oposto “ruim”. É
o que ele chama de tresvaloração de valores. Aquilo que inicialmente era tido
como bom passa a ser entendido como ruim e vice-versa. Mas, mais que isso: a
dupla de antônimos “bom” e “ruim”, ganha um terceiro participante, o “mau”.
Acontece, portanto, uma nova maneira de valorar, baseada em um fator novo: o
ressentimento dos fracos.
Os fracos, em sua impotência perante os
fortes, assumem para si uma vontade de vingança carregada de ódio embutido: um
veneno conservado que espera o momento certo para aniquilar o inimigo. Trata-se
de um tipo de valoração que não parte de si mesmo (do fraco) como parâmetro
para valorar, mas olha para o outro e o nega.
Enquanto
toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral
escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu ato
criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário
dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do
ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e
exterior, para poder agir em absoluto – sua ação no fundo é reação. (GM, I §
10)
A valoração do forte é diferente:
O
contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce espontaneamente,
busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e
gratidão – seu conceito negativo, o “baixo”, “comum”, “ruim”, é apenas uma
imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico,
positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, “nós, os nobres, nós, os
bons, os belos, os felizes! (GM I § 10)
As duas citações acima esboçam os modos
valorativos do que Nietzsche chama de moral dos senhores e moral dos
escravos37, como dois tipos básicos dentre várias outras morais possíveis.
Podemos aventar que elas são acentuadas pelo filósofo pelo fato de serem as
mais predominantes na cultura ocidental, aquelas que se cruzam e entram em
conflito de perspectiva, que têm gerado guerras.
Com relação ao modo valorativo escravo
é, portanto, o ressentimento que gera o novo valor moral em questão. É de um
constatar-se impotente perante um potente, fraco perante um forte, que o ódio
cresce e toma proporções de vingança. A impotência do fraco, com relação ao
forte, cria um novo tipo de valoração: o forte, segundo a perspectiva do fraco,
torna-se “mau”.
Nietzsche irá salientar a importância
de distinguir estes conceitos antagônicos para “bom” que são aparentemente
iguais: a saber, o “bom” contrapondo “ruim” e o “bom” contrapondo “mau”:
Este
“ruim” de origem nobre e aquele “mau” que vem do caldeirão do ódio insatisfeito
– o primeiro uma criação posterior, secundária, cor complementar; o segundo, o
original, o começo, o autêntico feito na concepção de uma moral escrava – como
são diferentes as palavras “mau” e “ruim”, ambas aparentemente opostas ao mesmo
sentido de “bom”: perguntemo-nos quem é propriamente “mau”, no sentido da moral
do ressentimento. A resposta, com todo o rigor: precisamente o “bom” da
outra moral, o nobre, o poderoso, o dominador, apenas pintado de outra cor,
interpretado e visto de outro modo pelo olho de veneno do ressentimento.
O filósofo se utilizará de uma pequena
fábula para expressar esta tresvaloração escrava. Ele compara o senhor a uma
ave de rapina e o escravo a uma ovelha: animais que possuem características
similares às apresentadas para cada tipo de valorador moral: o fraco e o forte.
As aves de rapina são conhecidas por sua habilidade em caçar suas presas,
enquanto as ovelhas são as caças:
Que
as ovelhas tenham rancor às grandes aves de rapina não surpreende: mas não é
motivo para censurar às aves de rapina o fato de pegarem as ovelhinhas. E se as
ovelhas dizem entre si: “essas aves de rapina são más; e quem for o menos
possível ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha – este não deveria ser
bom?”, não há o que objetar a esse modo de erigir um ideal, exceto talvez que
as aves de rapina assistirão a isso com ar zombeteiro, e dirão para si
mesmas: “nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as
amamos: nada mais delicioso do que uma tenra ovelhinha”. (GM I § 13)
A filósofa Maria Cristina Ferraz (2008)
caracteriza o discurso das ovelhas e das aves de rapina apontando a perspectiva
de Nietzsche na elaboração da fábula:
Como
se pode observar, o problema aqui não reside nem na diferença nem nos
inevitáveis embates que ela em geral suscita, mas nessa necessidade de
censurar, de culpabilizar (...) A postura dos cordeiros, a censura que dirigem
às aves de rapina e o próprio ato de julgar já implicam, portanto, a valoração
moral. A perspectiva de quem conta a fábula introduz, por sua vez, uma primeira
distância em relação ao cordeiro, distância necessária para a avaliação dos
valores que este promove (FERRAZ, 2008, p 149).
Com isso, Nietzsche criticará a ideia
de sujeito atuante na escolha de ser forte ou fraco. Para ele, a ave de rapina
não escolhe se vai devorar a ovelha ou não, ela simplesmente tem força para tal
e o faz: “Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um
querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos,
resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se
expresse como força” (GM I § 13). Não há justificativa para que o fraco exija
do forte uma decisão livre em ser forte ou não, justamente porque não existe um
fundamento, uma essência no forte que o “dirija” para exercer a força. Não
existe um eu no sentido de sujeito. Nietzsche usa uma metáfora para sustentar
isso:
Pois
assim como o povo distingue o corisco do clarão, tomando este como ação,
operação de um sujeito de nome corisco, do mesmo modo a moral do povo
discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás do forte
houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a
força. Mas não existe um tal substrato; não existe „ser‟ por trás do fazer, do
atuar, do devir; o „agente‟ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo38
(GM I § 13).
O corisco e o clarão seriam a mesma
coisa. O povo, ou a moral do povo, ou a moral escrava (de rebanho) é que faz a
distinção e ela é necessária para ter o que culpar. Uma vez que esse sujeito
não existe, não há necessidade de culpabilizar: “Só a crença nesse sujeito „por
trás‟ possibilita tanto a atribuição de mérito quanto a condenação moral por
aquilo que se fez, ou deixou de fazer” (FERRAZ, 2008, p 153).
Entramos no conceito de vontade de
potência, que definirá, explicitamente, caso não se tenha percebido até agora,
de que lado Friedrich Nietzsche estará no modo de valoração:
Aqui
devemos pensar radicalmente até o fundo, e guardarmo-nos de toda fraqueza
sentimental: a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que
é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias,
incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração (...) A „exploração‟ não
é própria de uma sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da
essência do que vive, como função orgânica básica, é uma consequência da
própria vontade de poder, que é precisamente vontade de vida. Supondo que isto
seja uma inovação como teoria – como realidade é o fato primordial de toda a
história: seja-se honesto consigo mesmo até esse ponto! (ABM § 259)
Com relação às aves de rapina, há de se
observar que seu discurso se apresenta como afirmador de si mesmo, não tomando
o outro como referência, mas verificando sua potência e prazer no “comer”. A
vontade de potência das aves de rapina, apenas justifica a vida, a “essência do
que vive”. Somente aqui se possa falar em essência, portanto: vontade de
domínio, ação/fazer. Há uma inocência também: sua força dominante é desprovida
de culpa, portanto, cabe o riso. O deboche entra como ridicularização da moral
porque “trata-se, antes, de uma afirmação direta, sem rodeios ou segundas
intenções, que expressa bom humor e ausência de rancor” (FERRAZ, 2008, p 156).
4.2 Rebelião dos escravos e religião
Mesmo que o tipo de valoração senhorial
tenha sido a responsável por criar os conceitos originais do que é bom e ruim,
o modo de valoração escrava tomou a frente e por meio da tresvaloração dos
valores, definiu o que era mau e atribui aos senhores o título de maus. Tal
titulação coloca o forte em estado de titubeio perante o fraco e o que antes
era força se torna fraqueza e o que era tido como desprezível e baixo se torna
digno de louvor, uma virtude a ser alcançada em vista de algo mais, algo além
do que se pode ver, tocar, cheirar, ouvir, enfim, sentir. Justamente porque, em
seu mais alto grau de criação imaginativa ressentida, inventou ideais.
Estas características do homem fraco
são expressas, em Nietzsche, na figura do sacerdote. A casta sacerdotal, em
confronto com a casta senhorial guerreira, é derrotada, em termos de
constituição física, e a constatação de sua impotência gera uma
estratégia de dominação por vias diferentes, não menos subjugadoras. Essas
vias consistem em atos de vingança não com a mesma moeda, o que seria
impraticável aos sacerdotes, mas em nomear os guerreiros e poderosos como maus.
Os
sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis inimigos – por quê? Porque são
os mais impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e
sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. Na história universal,
os grandes odiadores sempre foram sacerdotes. (GM I § 7)
Este ódio ressentido e entranhado dos
escravos, aos pés da potência humilhante dos felizes senhores, encontrará
espaço na religião. O sacerdote da religião será o responsável por desdobrar na
história da cultura mundial, sua valoração moral em luta contra as forças que
denominou como más. Nietzsche enxerga no povo judeu o expoente perfeito que
caracteriza e oferece ao mundo as marcas da valoração moral escrava:
Assim
convinha a um povo sacerdotal, o povo da mais entranhada sede de vingança
sacerdotal. Foram os judeus que, com apavorante coerência, ousaram inverter a
equação de valores aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro
aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente)
se apegaram a esta inversão, a saber: “os miseráveis somente são os bons,
apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados,
feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles
há bem aventurança – mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a
eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão
também eternamente os desventurados, malditos e danados!...”. (GM I § 7)
Isso inicia o que Nietzsche chama de a
revolta/rebelião dos escravos na moral:os judeus e “os seus profetas fundiram
„rico‟, „ateu‟, „mau‟, „violento‟ e „sensual‟ numa só definição, e pela
primeira vez deram cunho vergonhoso à palavra „mundo‟” (ABM, p 83). Na inversão
percebe-se os fatores econômico, religioso, moral, biológico e sexual: todos
tidos naqueles pólos, como maus, pejorativamente do mundo, pagão. O povo judeu
se desenvolve e com ele seu modo de valorar cria estruturas e pretensões
universais, principalmente com o surgimento de Jesus Cristo e sua Igreja. Ele é
um judeu que consegue espalhar os ideais de compaixão e misericórdia, de amor
incondicional ao próximo e aos inimigos sob a recompensa de uma futura vida
eterna. Jesus é considerado o redentor dos homens e Nietzsche se refere a ele
nestes termos:
Esse
Jesus de Nazaré, evangelho vivo do amor, esse “redentor” portador da vitória e
da bem-aventurança aos pobres, aos doentes e aos pecadores – não era ele a
sedução em sua forma mais inquietante e irresistível, a sedução e a via sinuosa
para justamente aqueles valores judeus e inovações judaicas do ideal? Não teria
Israel alcançado, por via desse “redentor”, desse aparente antagonista e
desintegrador de Israel, a derradeira meta de sua sublime ânsia de vingança?
(GM I § 8)
O Cristianismo, como ramo direto da
raiz judaica39 e, por conseguinte, herdeiro do tipo de valoração entendida por
Nietzsche como escrava e fraca, acaba por espalhar, de maneira expansiva40 os
valores sacerdotais e adquire, assim, preeminência cultural na história do
homem: “... aquela rebelião que tem atrás de si dois mil anos de história, e
que hoje perdemos de vista, porque – foi vitoriosa...” (GM, p 26)
Contudo, no decorrer da história, e
apesar da hegemonia escrava, os valores senhoriais parecem não ter desfalecido
e impõem guerra. Nietzsche deixa isso bem claro quando evidencia a luta desses
dois tipos de valorações e de maneira icônica estabelece os nomes para a
batalha dessas duas culturas distintas, essa oposição moral:
(...)
um verdadeiro campo de batalha para esses dois opostos. O dístico dessa luta,
escrito em caracteres legíveis através de toda a história humana, é “Roma
contra Judéia, Judéia contra Roma”: – não houve, até agora, acontecimento maior
do que essa luta, essa questão, essa oposição moral. Roma enxergou no judeu
algo como a própria antinatureza, como que seu monstro antípoda; em Roma os
judeus eram tidos por „culpados de ódio a todo gênero humano‟(...) Quanto aos
judeus, o que sentiam ante os romanos? Percebe-se por mil indícios; mas basta
trazer à lembrança o Apocalipse de João, a mais selvagem das invectivas que a
vingança tem na consciência. (GM I § 16)
Depois de vistas as características
indispensáveis para entender a origem e o desenvolvimento das valorações
morais, tendo em vista os dois antípodas valoradores da cultura que persistem
em caminhar em um paralelo conflituoso, cabe agora uma observação daquilo que
incorpora tal conflito moral, porque tais morais podem coexistir “até mesmo num
homem, no interior de uma só alma”(ABM § 259): a saber, o homem que lembra e é
capaz de prometer.
4.3 Promessa
A capacidade do homem de prometer, de
dar sua palavra, de calcular e projetar suas ações para o futuro por meio de um
acordo no presente, o qual durante o fluxo do tempo deve se remeter ao passado
fundado em uma lembrança de promessa. A isso, Oswaldo Giacóia Jr. chama de
“uma espécie de dilação temporal do querer” 41, ou seja, uma prorrogação da
vontade presente, somente possível por meio de uma memorização.
“Criar
um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a
natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do
homem?... O fato de que este problema esteja em grande parte resolvido deve
parecer ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que atua de
modo contrário, a do esquecimento”. (GM II § 1)
A tarefa se apresenta paradoxal, pois
pretende lutar contra a força ativa e voraz do esquecimento. Este, compreendido
por Nietzsche como faculdade positiva e saudável à ordem psíquica para que
“haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais
nobres, para o reger, prever, predeterminar” (GM II § 1). O esquecimento,
aqui, é tratado como instrumento revigorante: “com o que logo se vê que não
poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o
esquecimento” (GM II § 1).
Ao que Nietzsche chega a comparar
aqueles que possuem a faculdade do esquecimento danificada, a dispépticos, que
sofrem de má digestão, que obstrui e dificulta um ciclo digestivo tão
importante e acrescenta:
Precisamente
esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecimento é uma força, uma
forma de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com
cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos – nos casos em que
se deve prometer: não sendo um simples não-mais-poder-livrar-se da impressão
uma vez recebida, não a simples indigestão da palavra uma vez empenhada, da
qual não conseguimos dar conta, mas sim um ativo não-mais-querer-livrar-se, um
prosseguir-querendo o já querido, uma verdadeira memória da vontade: de modo
que entre o primitivo “quero”, “farei”, e a verdadeira descarga da vontade, seu
ato, todo um mundo de novas e estranhas coisas, circunstâncias, mesmo atos de
vontade, pode ser resolutamente interposto, sem que assim se rompa esta longa
cadeia do querer. (GM II § 1)
Ou seja: um querer que se sustenta e se
mantém mesmo com uma enxurrada de acontecimentos, disposições, vontades,
contra-vontades, alegrias e desapontamentos. Não se trata mais de “não poder
esquecer” e sim de “não querer esquecer”. Note que “não-mais-poder-livar-se da
impressão”, cede lugar a “não-mais-querer-livrar-se da impressão”: o “não
poder” dá lugar ao “querer não esquecer”. É uma atitude quase que imperativa de
querer não esquecer. Eis o que garante a promessa: o não querer
livrar-se, o memorizar a vontade inicial e levá-la até o ponto de,
finalmente, realizá-la, ou não realizá-la, é o caso da vontade de querer o
nada42.
“Para
poder dispor de tal modo do futuro, o quanto não precisou o homem aprender a
distinguir o acontecimento casual do necessário, a pensar de maneira causal, a
ver e antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer com
segurança o fim e os meios para o fim, a calcular, contar, confiar – para isso,
quanto não precisou antes tornar-se ele próprio confiável, constante, necessário,
também para si, na sua própria representação, para poder enfim, como faz quem
promete, responder por si como porvir!”. (GM II § 1)
Em outras palavras: o homem tornou-se
complexo e em meio a isso se construiu, trabalhou a si mesmo em um movimento de
interiorização. Aos poucos foi moldando a sua confiabilidade, sua constância
digna de crédito. Tornou-se confiável a duro processo:
Mas
coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a árvore finalmente sazona
seus frutos, onde a sociedade e sua moralidade do costume finalmente trazem à
luz aquilo para o qual eram apenas o meio: encontramos então, como o fruto mais
maduro da sua árvore, o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente
liberado da moralidade do costume, indivíduo autônomo supramoral (pois
“autônomo” e “moral” se excluem), em suma, o homem da vontade própria,
duradoura e independente, o que pode fazer promessas – e nele encontramos,
vibrante em cada músculo, uma orgulhosa consciência do que foi finalmente
alcançado e está nele encarnado, uma verdadeira consciência de poder e
liberdade, um sentimento de realização. Este liberto ao qual é permitido
prometer, este senhor do livre-arbítrio, este soberano. (GM II § 2)
Este indivíduo soberano é certamente o
homem moderno, aquele com a habilidade de responder por si mesmo, o homem da
responsabilidade. No entanto, para que alcançasse tal estado de consciência e
consequente capacidade de fazer promessas ele carrega em si toda uma história
de desenvolvimento, todo um procedimento para chegar onde está. É aonde entra a
pergunta de Nietzsche: “Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo
indelével nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio
leviana, nessa encarnação do esquecimento?” (GM II § 3). O filósofo antecipa ao
leitor que a resposta para tal problema não é suave. É justamente por meios
duros e terríveis que se cria uma memória: pela dor. Trata-se de uma dor que
perdura porque “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que
não cessa de causar dor fica na memória” (GM II § 3). Portanto, a
mnemotécnica (técnica de memorização) do homem, é fundamentada em impressões
fortes:
Jamais
deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a
necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos sacrifícios e
penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes
mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os
cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas
de crueldades) – tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o
mais poderoso auxiliar da mnemônica. (GM II § 3)
Nietzsche ainda ressalta alguns
procedimentos de punição e tortura como o apedrejamento, o empalamento, a roda,
o dilaceramento ou pisoteamento por cavalos, a fervura do criminoso em óleo ou
vinho, o esfolamento, a excisão da carne do peito e a exposição da pessoa
banhada em mel às moscas sob o sol ardente. (Cf. GM II § 3) Tais procedimentos
cruéis, segundo o filósofo, têm por objetivo a garantia do convívio social:
“Com ajuda de tais imagens e procedimentos, termina-se por reter na memória
cinco ou seis „não-quero‟, com relação aos quais se fez uma promessa, a fim de
viver os benefícios da sociedade” (GM II § 3). Desse modo é possível, para
Nietzsche, fixar na memória o evento doloroso que ao ser lembrado torna-se
fator condicionante da ação presente e que coincide com a promessa dada.
(...)
com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente „à razão‟! – Ah, a
razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se
chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto seu
preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as „coisas boas‟! (GM
II § 3)
4.4 Relação credor/devedor, castigo e má
consciência
Assim, Nietzsche parte diretamente para
a origem da consciência da culpa encontrando sua gênese na relação entre credor
e devedor. Ele afirma que por longo período da história, o castigo era
praticado como desafogo de raiva sob aquele que causou dano. Quem sofre o dano
é tomado por sentimento de raiva e castiga. No entanto, o sentimento de raiva
vai sendo mantido, com o tempo, em certos limites e posteriormente se transmuta
na ideia de que todo dano sofrido pode ter um equivalente compensador.
Torna-se vantajoso cobrar por um dano
sofrido. Assim é estabelecida a relação entre credor e devedor: por meio de
contrato o devedor assume pagar o dano sofrido com terras, dinheiro, bens e
etc. Para dar garantias de sua palavra e fixar em sua própria consciência
o dever da restituição, o devedor coloca garantias caso falte com a palavra.
Essas garantias aparecem na forma de posses como sua mulher, sua liberdade, seu
corpo ou até mesmo sua própria vida. Nietzsche ainda percebe que o credor podia
submeter seu devedor a tipos de humilhações e torturas. Ele cita o fator cruel
da lei das Doze Tábuas da antiga Roma e acrescenta:
Tornemos
clara para nós mesmos a estranha lógica dessa forma de compensação 43. A
equivalência está em substituir uma vantagem diretamente relacionada ao dano
(uma compensação em dinheiro, terra, bens de algum tipo) por uma espécie de
satisfação íntima, concedida ao credor como reparação e recompensa – a
satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre um impotente, a
volúpia de „faire le mal pour le plaisir de le faire‟, o prazer de ultrajar
(...) Através da „punição‟ ao devedor, o credor participa de um direito dos
senhores; experimenta enfim ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e
maltratar alguém como „inferior‟ – ou então, no caso em que o poder de execução
da pena já passou à „autoridade‟, poder ao menos vê-lo desprezado e maltratado.
A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade 44.
(GM II § 5)
A questão da crueldade, aqui, emerge
como satisfação para o credor. Uma vez que o seu dano, ou sua dor, pode ser
compensado, porque não compensá-lo de maneira prazerosa? Nietzsche apresenta a
crueldade de acordo com o contexto da era antiga, na qual a alegria de uma
festa dependia de sofrimento e derramamento de sangue:
(...)
“como pode fazer-sofrer ser uma satisfação?” (...) Parece-me que repugna à
delicadeza, mais ainda à tartufice dos mansos animais domésticos (isto é, os
homens modernos, isto é, nós), imaginar com todo vigor até que ponto a
crueldade constituía o grande prazer festivo da humanidade antiga, como era um
ingrediente de quase todas as suas alegrias; e com que ingenuidade se
apresentava a sua exigência de crueldade, quão radicalmente a “maldade
desinteressada” (ou, na expressão de Espinoza, a sympatia malevolens [simpatia
malévola] era vista como atributo normal do homem – : logo, como algo a que a
consciência diz Sim de coração!. (GM II § 6)
Com o tempo, afirma Nietzsche, o homem
passou a ter vergonha de si mesmo, especificamente: vergonha de seus instintos,
de suas tendências à crueldade, ao prazer em fazer sofrer, em causar dor.
Vergonha, até mesmo, de seu cheiro, de sua secreção, de sua urina, de seu
excremento. (GM II § 7) O sofrimento, hoje, diz Nietzsche, é argumento contra a
existência, mas “é bom recordar as épocas em que se julgava o contrário, porque
não se prescindia do fazer-sofrer; e via-se nele um encanto de primeira ordem,
um verdadeiro chamariz à vida”. (GM II § 7) Todavia, tal “ingrediente”
feliz e chamativo ainda parece persistir, mesmo com o “amolecimento” do
animal-homem.
Talvez
possamos admitir que o prazer na crueldade não esteja realmente extinto: apenas
necessitaria, pelo fato de agora doer mais a dor, de alguma sublimação e
sutilização, isto é, deveria aparecer transposto para o plano imaginativo e
psíquico, e ornado de nomes tão inofensivos que não despertassem suspeita nem
mesmo na mais delicada e hipócrita consciência (a „compaixão trágica‟ é um
desses nomes; um outro é “les nostalgies de la croix” [as nostalgias da cruz].
(GM II § 7)
Tendo isso em vista, as relações
básicas entre credor e devedor ocupam toda a dimensão da gênese de conceitos
morais como culpa, consciência, dever, sacralidade do dever (cf. GM II § 6), e
dessa forma é possível acompanhar a metodologia genealógica de Nietzsche.
Entraremos, imediatamente, no estudo da má consciência, justamente sob a mesma
perspectiva da relação entre credor e devedor que se desdobra na ideia de
comunidade, donde o sentimento de culpa tem sua origem e se apresenta na
cultura ocidental. Veremos como Nietzsche sustenta tal origem.
A relação entre credor e devedor,
segundo Nietzsche, ocupa os mais variados espaços das relações pessoais, porque
ela faz o animal-homem, transpô-la para o âmbito social, ou seja, a comunidade
mantém essa mesma relação com seus membros. O membro que comete falta contra a
comunidade é afastado dos benefícios dela e é cobrado. A comunidade (credor)
perante o criminoso (devedor) passa a ter o direito de compensação:
O
“castigo”, nesse nível dos costumes, é simplesmente a cópia, mimus [reprodução]
do comportamento normal perante o inimigo odiado, desarmado, prostrado, que
perdeu não só qualquer direito e proteção, mas também qualquer esperança de
graça; ou seja, é o direito de guerra e a celebração do Vae victus! [ai dos
vencidos!] em toda a sua dureza e crueldade – o que explica por que a própria
guerra (incluindo o sacrifício ritual guerreiro) forneceu todas as formas sob
as quais o castigo aparece na história. (GM II § 9)
É preciso distinguir dois aspectos no
castigo, a saber, o que é duradouro e o que é fluido. O que dura é “o costume,
o ato, o „drama‟, uma certa sequência rigorosa de procedimentos” (GM II § 13).
Aquilo que é fluido é o “sentido, o fim, a expectativa ligada à realização
desses procedimentos” (GM II § 13). Vejamos alguns sentidos para o castigo
elencados por Nietzsche, que são pertinentes à proposta do presente trabalho:
Castigo
como neutralização, como impedimento de novos danos (...) Castigo como
isolamento de uma perturbação do equilíbrio, para impedir o alastramento
da perturbação. Castigo como inspiração de temor àqueles que determinam e
executam o castigo (...) Castigo como festa, ou seja, como ultraje e escárnio
de um inimigo finalmente vencido. Castigo como criação de memória, seja para
aquele que sofre o castigo – a chamada correção – , seja para aqueles que o
testemunham (GM II § 13).
Além dos sentidos para castigo
apontados acima, Nietzsche acrescenta e dá atenção a um, que comumente é tomado
de maneira errônea. Segundo o filósofo, atribui-se ao castigo o sentido de
despertar no castigado um sentimento de culpa – castiga-se para que o condenado
sinta remorso, má consciência – e o que segue é precisamente o contrário: o
castigo detém o sentimento de culpa, o impede. O castigo, portanto, não faz o
criminoso se sentir culpado, ele não é instrumento de sentimento de culpa. Não
é por ser castigado que sentirá peso na consciência e “de fato, por muitíssimo
tempo os que julgavam e puniam não revelaram consciência de estar lidando com
um „culpado‟. Mas sim com um causador de danos, com um irresponsável fragmento
do destino” (GM II § 14).
O castigo, de acordo com Nietzsche,
provoca outras coisas:
Falando
de modo geral, o castigo endurece e torna frio; concentra; aguça o sentimento
de distância; aumenta a força de resistência. Quando sucede de ele quebrar a
energia e produzir miserável prostração e auto-rebaixamento, um tal sucesso é
sem dúvida ainda menos agradável que o seu efeito habitual: que se caracteriza
por uma seca e sombria seriedade. (GM II § 14).
E ainda:
O
que em geral se consegue com o castigo, em homens e animais, é o acréscimo do
medo, a intensificação da prudência, o controle dos desejos: assim o castigo
doma o homem, mas não o torna “melhor” – com maior razão se afirmaria o
contrário. (“O prejuízo torna prudente”, diz o povo: tornando prudente, torna
também ruim. Mas felizmente torna muitas vezes tolo. (GM II § 15).
Mas o que viria a provocar a má
consciência, o sentimento de culpa então? Nietzsche, ao ver a má consciência
como uma profunda doença, atribui sua origem a uma transformação radical à qual
o homem se submeteu: a origem se encontra no momento em que “ele se viu
encerrado no âmbito da sociedade e da paz” (GM, II § 16). Quando o homem deixa
para trás suas aventuras selvagens no contato com a natureza e com a guerra na
qual extravasava sua energia instintiva, passando a suspender esses mesmos
instintos e desvalorizá-los, inutilizá-los, acontece uma redução de sua
qualidade vital.
Ora, suspender os instintos não
significa anulá-los, extirpá-los. Eles se mantêm, só que de maneira diferente,
em movimento interiorizado, não mais colocados para fora em atos de extravaso:
“Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro –
isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o
que depois se denomina sua „alma‟” (GM II § 16).
A inibição, esse campo de força que
impede a descarga do instinto para fora, gera um universo interior (alma)
dentro do qual vive uma força (instinto) que precisa atacar algo. Neste caso, o
ataque é feito à própria consciência:
Aqueles
terríveis bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos
instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses bastiões –
fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se
voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer
na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando
contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência.
Esse homem que por falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa
opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente lacerou,
perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem
“amansar”, que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente, consumido
pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de converter em aventura, câmara de
tortura, insegura e perigosa mata – esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia
e do desespero tornou-se o inventor da “má consciência” (GM II § 16).
O extravasamento da vontade de poder
acontece não a outro, mas a si, o “eu” 45 é o alvo de toda descarga de
crueldade. Verifica-se, ainda, o prazer no fazer sofrer, só que, aqui, voltado
contra si. Trata-se de uma sublimação: “Em sentido psicológico, a
má-consciência é constituída pela vontade de causar dano a si mesmo, de
afligir-se de modo permanente e, dessa maneira, criar condições „subterrâneas‟
para a descarga dos impulsos hostis” (GIACÓIA, 2008, p. 217).
Eis que se forma um paradoxo: existe um
prazer no fazer sofrer a si mesmo. Toda abnegação, sacrifício, desprendimento
de si, altruísmo, doação e seus sinônimos, são satisfações em fazer sofrer,
nesse caso, a si mesmo, àquele “sujeito” criado pela valoração escrava.
Isso
ao menos tornará menos enigmático o enigma de como se pôde insinuar um ideal,
uma beleza, em noções contraditórias como ausência de si, abnegação,
sacrifício; e uma coisa sabemos doravante, não tenho dúvida – de que espécie é,
desde o início, o prazer que sente o desinteressado, o abnegado, o que se
sacrifica: este prazer vem da crueldade (...) Somente a má consciência, somente
a vontade de maltratar-se fornece a condição primeira para o valor do
não-egoísmo. (GM, II §18)
Com isso, Nietzsche promete apresentar
aonde esta má consciência culminará, mas antes retoma a relação entre credor e
devedor para verificar sua aplicação na relação entre os vivos e seus
antepassados. Ele percebe que a devoção das comunidades tribais primitivas aos
seus antepassados, é uma extensão dessa relação entre credor e devedor. Aos
antepassados eram oferecidos sacrifícios para que mantivessem o sustento da
comunidade, uma vez que foram eles, os antepassados, que iniciaram e ergueram o
que no presente subsiste:
A
geração que vive sempre reconhece para com a anterior, e em especial para com a
primeira, fundadora da estirpe, uma obrigação jurídica (...) A convicção
prevalece de que a comunidade subsiste apenas graças aos sacrifícios e às
realizações dos antepassados – e de que é preciso lhes pagar isso com
sacrifícios e realizações: reconhece-se uma dívida [Schuld], que cresce
permanentemente, pelo fato de que os antepassados não cessam, em sua sobrevida
como espíritos poderosos, de conceder à estirpe novas vantagens e adiantamentos
a partir de sua força. (GM II § 19)
De acordo com Nietzsche, esta mesma
lógica de dívida é aplicada em dimensões mais amplas, nas quais as figuras
divinas ocupam o lugar do credor. Na medida em que a comunidade cresce e com
ela sua força de dominação e poder, os ícones divinos vão tomando proporções
universais, assim como o sentimento de culpa para com eles: quanto maior o poder
da divindade, maior dívida terá de ser paga pelo devedor.
O
sentimento de culpa em relação à divindade não parou de crescer durante
milênios, e sempre na mesma razão em que nesse mundo cresceram e foram levados
às alturas o conceito e o sentimento de Deus (...) o progresso em direção a
impérios universais é também o progresso em direção a divindades universais; o
despotismo, com seu triunfo sobre a nobreza independente, sempre abre o caminho
para algum monoteísmo (...) O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora
alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa. (GM, II §
20).
Uma vez que ao Deus cristão é atribuído
o valor absoluto, a dívida, também absoluta, torna-se impagável pelos
devedores:
até
que subitamente nos achamos ante o expediente paradoxal e horrível no qual a
humanidade atormentada encontrou um alívio momentâneo, aquele golpe de gênio do
cristianismo: o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio
Deus pagando a si mesmo, Deus como único que pode redimir o homem daquilo que
para o próprio homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu
devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!... (GM II §
22)
Logo se percebe que ao tratar
pormenorizadamente os conceitos de bom e ruim, bom e mau, ressentimento,
tresvaloração de valores, moral dos senhores e moral dos escravos, revolta
dos escravos na moral, promessa, relação entre credor e devedor, castigo,
sentimento de culpa, vontade de potência, crueldade e má consciência, Nietzsche
pretende desenhar um quadro de tudo aquilo que tem se remetido ao tema da moral
e que aparece e se desenvolve na história do homem, de modo especial, na
cultura ocidental: seu campo de pesquisa e elaboração filosófica.
Com o intuito de canalizar e deixar clara
a pretensão do presente trabalho, que aqui encontra seu ponto culminante, é
preciso dizer que todos os conceitos acima citados e que tomaram forma no corpo
deste capítulo serão relacionados, imediatamente, no capítulo seguinte, com os
personagens Batman e Coringa, no intuito de estabelecer um diálogo entre a obra
artística dos fenômenos Batman e Coringa e a filosofia nitzscheana sobre,
especificamente, a moral.
Não
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5. UMA FORÇA IRREFREÁVEL E UM OBJETO IMÓVEL
Os
dois valores contrapostos, “bom” e “ruim”, “bom” e “mau”, travaram na terra uma
luta terrível, milenar; e embora o segundo valor há muito predomine, ainda
agora não faltam lugares em que a luta não foi decidida.
Nietzsche
5.1 Promessas e cargas
O ponto decisivo da gênese e da
contínua recriação do personagem Batman se dá, como já visto, a partir de uma
promessa. A lembrança do cruel assassinato de seus pais o impele a
comprometer-se em combater o crime em Gotham City. Essa será a motivação
primária do mito de Batman sem a qual o personagem não possui sustento. O que
se tem, a partir desta promessa, são histórias de um homem que luta na defesa
de seus princípios, utilizando-se de meios violentos e polêmicos, que de modo
paradoxal, colocam em questão sua finalidade: a possibilidade de Gotham como um
lugar melhor.
O filósofo Friedrich Nietzsche entendeu
que a promessa retira a vontade de seu tempo presente e transporta-a para o
futuro sob a influência de uma memória. A palavra dada sempre será lembrada por
um ato de vontade, uma adesão ao querer lembrar-se. Contudo, Nietzsche atribui
à força contrária a da memória, o esquecimento, uma qualidade saudável, ativa,
positiva. (GM II § 1)
Como primeira provocação, oferecemos
uma observação atenta sobre o fenômeno Batman e a ideia de Nietzsche em
perceber a dispepsia que ocorre naqueles que fazem promessas. (cf. GM II § 1) A
metáfora fisiológica consiste em inferir que a má digestão é fator degenerativo
da saúde: o que implica dizer que a promessa carrega em si um peso que resulta
no mau funcionamento do organismo psíquico.
Quando o pequeno Bruce decide
dedicar-se na luta contra criminosos, ele está imprimindo em si mesmo o peso de
dar uma resposta constante a uma promessa feita à memória de seus pais. A
promessa de Batman torna-se sua tarefa primordial, a qual nada poderá
atrapalhá-la, contrapô-la, vencê-la: “Fiz uma promessa no túmulo dos meus
pais... Eu jamais descansaria enquanto não limpasse Gotham do mal que tirou
suas vidas”. (LOEB, 1998, p.29)
A saúde encontrada no esquecimento do
qual Nietzsche se refere consiste em:
Fechar
temporariamente as portas e janelas da consciência, para que novamente haja
lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres,
para o reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto
hierarquicamente) – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie
de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: como o
que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança,
orgulho, presente, sem o esquecimento. O homem no qual esse aparelho inibidor é
danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um
dispéptico – de nada consegue “dar conta”... (GM II § 1)
De certa forma Batman é um dispéptico.
Sua promessa é carregada como alimento não digerido, donde se percebe os
sintomas de uma doença por ele mesmo querida. Não vemos cores vivas em Batman.
Seu traje é apresentado nos quadrinhos e nos filmes em variações de cinza, azul
escuro e preto 46. A caverna na qual treina e planeja suas missões, além de ser
por si um lugar afastado e subterrâneo, é escura: o homem morcego é sombrio.
Ele aparenta ser marcado por um passado que gostaria de não ter vivido, no qual
uma criança se encontra solitária, sem sorriso no rosto, apenas com a morte em
sua frente. Tal imagem o toma em todos os momentos, está arraigada em sua
memória.
Nietzsche afirma que para se obter uma
memória que garanta e sustente uma promessa é necessário atravessar a dor:
“„Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de
causar dor fica na memória‟– eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais
duradoura) psicologia da terra”. (GM II § 3)
O fator doloroso na memória de Batman é
bem expresso na HQ O Cavaleiro das Trevas (1986), na qual os detalhes do
assassinato de seus pais aparecem de maneira terrível em suas lembranças: o
colar de sua mãe espatifa-se no chão espalhando as pequenas e lindas pérolas
pelo chão sujo e úmido. Mais tarde em Ano Um (1987), o garoto ajoelhado
contempla os corpos dos pais ensanguentados sem poder fazer nada. Em poucas
situações se vê Batman com um sorriso no rosto.
Pode-se
mesmo dizer que em toda parte onde, na vida de um homem e de um povo, existem
ainda solenidade, gravidade, segredo, cores sombrias, persiste algo do terror
com que outrora se prometia, se empenhava a palavra, se jurava: é o passado, o
mais distante, duro, profundo passado, que nos alcança e que reflui dentro de
nós, quando nos tornamos “sérios”. Jamais deixou de haver sangue, martírio e
sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória. (GM
II § 3)
A memória da perda de seus pais
acoplada à crueldade do acontecimento dá um tom dramático à promessa e se
expressa na personalidade do personagem. Pouco se fala da promessa nos meios em
que Batman é tratado como estrela47. As atitudes heróicas, sua destreza em
resolver problemas, sua inteligência em operar acessórios tecnológicos, sua
imponência estética ao plainar por sobre os prédios: são muito mais apreciados
e louvados. Assim como a razão de um homem é apreciada e louvada: “Ah, a razão,
a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama
reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto o seu
preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as „coisas
boas‟!...”. (GM II § 3)
Em Inimigos Públicos (2009), após um
dia inteiro de luta contra Lex Luthor, Superman e Batman se encontram no alto
de um prédio enquanto Louis Lane se aproxima de helicóptero. A simples menção
de uma possível comemoração da vitória, entre amigos, já coloca Batman em
estado defensivo, afirmando que já era tarde e precisava voltar para casa48,
mesmo que este em nada recorde um lar. Até mesmo seu parceiro Robin reclama a
falta de senso de humor no Batman. Apenas Hollywood, como sempre, é a
exceção49.
Desde
sua juventude, quando ele viveu a dramática e horrível experiência de
testemunhar o assassinato de seus pais, ele se dedicou de corpo e alma ao mais
severo regime de autodesenvolvimento e à mais centrada missão de combater o
crime. Ele é o último paradigma de um homem em uma missão, e nada pode
desviá-lo dela. Seu preparo para tal missão, e a execução dela, criou um
espírito independente, um enfoque austero ao extremo e um senso de alienada
solidão, sem igual entre seus colegas combatentes fantasiados do crime. Ele é
obscuro, ameaçador, apático e até assustador. Esse não é o sujeito com que você
gostaria de sair para jogar boliche ou comer pizza. (MORRIS, 2009, p. 108)
É o que Nietzsche chamou de
indivíduo/homem soberano, aquele capaz de fazer promessas, senhor do livre
arbítrio, confiável, constante, uniforme, necessário. Fruto maduro da
moralidade do costume e da camisa de força social. (cf. GM II § 3)
O
orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a
consciência dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino,
desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-se instinto,
instinto dominante – como chamará ele a esse instinto dominante, supondo
que necessite de uma palavra para ele? Mas não há dúvida: este homem soberano o
chama de sua consciência... (GM II § 2)
A promessa é, portanto, um dever, uma
dívida: é necessário ser fiel à palavra dada. Pensando na carga patrimonial
herdada por Bruce de seus pais, tal promessa ganha maior peso. Não se trata
apenas de uma promessa feita a duas pessoas às quais se tem amor, mas a todo um
patrimônio construído por gerações.
Em Batman Begins, Alfred Pennyworth, o
fiel mordomo, relembra que a mansão Wayne, abrigou seis gerações da família que
é a mais tradicional de Gotham. Em outra ocasião, Thomas Wayne, o pai de Bruce,
conta ao filho que construiu um sistema de transporte público barato para
facilitar a locomoção da população mais pobre, assim como apresenta a torre
Wayne, sede majestosa das empresas que leva o nome da família.
Em diálogo com Batman, Alfred critica
os métodos perigosos dos quais o Morcego se utiliza e deixa bem clara a questão
do patrimônio familiar tão pertinente à promessa. Alfred diz:
-
Você está se perdendo dentro deste seu monstro..
-
Estou usando esse monstro para ajudar outras pessoas, assim como meu pai fazia.
-
Mas o ajudar de Thomas Wayne não era para provar algo para alguém. Inclusive a
ele mesmo.
-
É a Rachel Alfred, ela estava morrendo.
-
Bem, nós dois nos importamos com a Rachel senhor, mas o que você faz precisa
estar além disso. Não pode ser pessoal, ou você é apenas um vigilante.
-
Fox ainda está aqui?
-
Sim senhor.
-
Precisamos mandar aquelas pessoas embora agora.
-
Aquelas são convidadas de Bruce Wayne. Você tem um nome a manter.
-
Não me importo com meu nome!
-
Não é apenas o seu nome senhor. É o nome do seu pai! E isso é tudo que restou
dele. Não o destrua. (NOLAN, 2005) 50
Quando Nietzsche apresenta a relação
entre credor e devedor e a aplica às relações que as comunidades primitivas
mantinham com seus antepassados, é possível observá-la na postura que Batman
possui para com seus pais e todo o patrimônio que deles herdou. Não se trata
apenas de um patrimônio material, mas de todo um legado moral do qual a honra
emerge como rendição de homenagem à memória dos antepassados com respeito e
devoção a tudo que construíram.
Nietzsche afirma: “A convicção
prevalece de que a comunidade subsiste apenas graças aos sacrifícios e
realizações dos antepassados – e de que é preciso lhes pagar isso com
sacrifícios e realizações: reconhece-se uma dívida [Schuld]” 51. (GM II § 19)
Da mesma forma que as primitivas comunidades tribais ofereciam realizações em
louvor aos antepassados, Batman por meio do cuidado com o nome da família a ser
zelado e da atenção em colocar as empresas Wayne nas mãos de administradores
confiáveis, oferece à memória de seus pais o que a eles deve. Quando a mansão
Wayne vem a baixo por conta de um incêndio provocado pelo rival Ra‟s Al Ghul,
Alfred afirma: “O legado Wayne é mais do que tijolos e argamassa”52. (NOLAN,
2005)
Assim como a realização em honra aos
pais, o sacrifício pode ser compreendido, em Batman, como a atitude de
abdicar-se de uma vida comum. Muitos privilégios poderiam ser aproveitados com
a herança milionária que o órfão Bruce herdou sem esforço. Contudo, os
benefícios luxuosos que o dinheiro poderia lhe dar, são sacrificados para sua
secreta missão, sua promessa. Um Bruce Wayne que ostenta luxo e poder é apenas
um homem que encena um personagem para esconder sua identidade secreta.
Poderíamos até dizer que seu rosto verdadeiro é a própria máscara de morcego,
uma vez que ela representa e define suas ações. Batman afirma: “Não é o que eu
sou por baixo, mas o que eu faço que me define”. 53 (NOLAN, 2005)
A promessa engloba, portanto, as
realizações de honra, o sacrifício da herança, e a luta contra o crime. Todos
voltados para a memória dos pais, o nome da família, seus antepassados. O peso
desta promessa faz de Batman um homem pesado, sério e sombrio. Ele não se dá a
luxos. Seus relacionamentos pessoais e amorosos são muito conturbados 54.
Para Batman existe um foco, um objetivo que precisa ser realizado. Sua disciplina
no treinamento físico e intelectual é impecável.
5.2 Credor/devedor: Gotham e seus produtos
Levando em consideração a lógica
estabelecida entre credor/devedor e a ideia de Nietzsche em ver a comunidade
como o grande credor que pune seus membros uma vez que quebram o contrato e,
portanto, passam a ser devedores, a cidade de Gotham City não apenas se
engrandece no ofício de credor como também serve os melhores e mais inusitados
devedores. Em Gotham, as dívidas sobressaem-se em relação às punições do credor.
Gotham, como narrada nas HQs, é um “chão fecundo para o sofrimento e a
injustiça” 55, “onde o crime e a alta sociedade vivem promiscuamente e tudo
está à venda” 56, “um covil de iniqüidade” 57.
O maior detetive dentre os heróis, o
mais inteligente, o planejador por excelência da Liga da Justiça58 também se
apresenta como o castigador nesta cidade incrível: o causador do medo aos
infratores que causam medo às vítimas.
Negro
contra um fundo de logomarcas tão grandes quanto casas, um espectador se encontra
num parapeito de ferro e mármore a oitenta metros de altura no topo do Gotham
Center. Ele se cobre de sombras, lê os sinais fumacentos observando as luzes de
carros que saem da barriga da Besta. Ele sente o cheiro da noite e suas nove
milhões de vidas, inspira seus feromônios, sua química, suas emoções
individuais levadas como moléculas de odor na respiração da cidade. Ele se
funde em sua transpiração, em sua força animal, sente o gosto de seu humor, de
seus metais.
Batman
sente o cheiro de medo acima de tudo. O medo está subindo das ruas da mesma
forma que bexigas sobem em correntes de ar quente. Um esmagador. Como um
antílope nas savanas, os cidadãos de Gotham podem sentir um predador acordando
faminto, vagando no perímetro onde as coisas selvagens estão... (MORRISON,
2007, p. 54)
Batman usa o castigo em dois sentidos
sob a perspectiva de sua promessa: como compensação pela perda que sofreu, a de
seus pais, e compensação pelos crimes cometidos contra as leis de Gotham. Esta
última, é claro, apresenta-se como complemento e extensão da primeira, uma vez
que a promessa consiste em “limpar Gotham do mal que tirou suas vidas”. (LOEB,
1998, p.00)
Compreendendo a cidade de Gotham como o
credor e seus membros criminosos como o devedor (GM II § 9), percebe-se que
Batman se posiciona como força inibidora máxima dos que devem à cidade e o fato
de que o Estado democrático não dá conta de fazer frente aos infratores por
meio das forças oficiais de segurança, a democracia é suspensa dando lugar à
força que se mostra competente, o produto de Gotham: Batman.
No filme Batman: O Cavaleiro das Trevas
(2008), em uma conversa à mesa, a bailarina russa Natascha questiona o promotor
de justiça de Gotham, Harvey Dent: “Eu falo de um tipo de cidade que idolatra
um vigilante mascarado”. Dent responde: “Gotham City é orgulhosa de ter um
cidadão comum que se levanta para fazer o que é certo”. Natascha insiste:
“Gotham precisa de heróis como você, eleitos oficiais, não um homem que pensa
estar acima da lei...”. Bruce Wayne interfere cinicamente: “Exatamente! Quem
indicou o Batman?”. Dent argumenta: “Nós indicamos! Todos nós que ficamos
parados deixando que a escória tome controle de nossa cidade”. Natascha tenta
pela última vez: “Mas isso é uma democracia Harvey!”. Dent afirma: “Quando seus
inimigos chegavam aos portões, os romanos suspendiam a democracia e apontavam
um homem para proteger a cidade. Não era considerado honra, era considerado um
serviço público”. (NOLAN, 2008)
Com relação ao castigo, Nietzsche
demonstra dois sentidos históricos para o ato de castigar que corroboram com os
sentidos de Batman, usados em sua metodologia de combate ao crime, a saber:
“Castigo como inspiração de temor àqueles que determinam e executam o castigo
(...) Castigo como criação de memória, seja para aquele que sofre o castigo – a
chamada „correção‟ –, seja para aqueles que o testemunham”. (GM II § 13)
Amarrar um criminoso pelos pés e
puxá-lo até as alturas de um prédio, jogar outro de uma altura suficiente para
que as pernas sejam quebradas, pendurá-los de cabeça para baixo, pelados e
machucados, são técnicas de tortura para conseguir informações, imprimir medo
ou artifício para intimidar outros bandidos. Técnicas usadas por Batman.
Com tudo isso, em Batman Begins, o
Morcego prendeu toda a máfia italiana que dominava a cidade, em Batman: O
cavaleiro das Trevas foi possível entregar à polícia 549 criminosos de uma só
vez com a ajuda do promotor Harvey Dent. “Pense em tudo que você poderia fazer
com 18 meses de ruas limpas?” Disse Dent ao prefeito de Gotham que por sua vez
o alerta: “Todos eles virão atrás de você agora. Não apenas a Máfia: políticos,
jornalistas, policiais. Qualquer um cuja carteira começar a ficar mais leve.
Você está preparado para isso?”. (NOLAN, 2008)
Com estes dois exemplos, podemos afirmar
que: o espírito de “justiça” de Batman que também é compartilhado pelo promotor
Harvey Dent e o fiel comissário Gordon foi capaz de empreender tal façanha da
“justiça”. É uma vitória significativa. De fato os criminosos puderam ser
presos, puderam pagar pela dívida usurpada de acordo com as leis jurídicas e no
entendimento do direito penal. A cidade é recompensada pelo dano que sofreu: a
compensação do credor é efetivada. Mas o problema em tudo isso é apontado no
alerta do prefeito e também com Nietzsche. Tanto o castigo quanto a prisão dos
criminosos são garantias de uma Gotham City “melhor”?
Nietzsche atenta para uma pretensa
utilidade atribuída ao castigo que encontra crédito na consciência popular. É a
ideia de que o castigo venha a servir como promotor do sentimento de culpa e a
partir disso obter do criminoso um arrependimento, uma recuperação.
(...)
sem hesitação poderemos afirmar que o desenvolvimento do sentimento de culpa
foi detido, mais do que tudo, precisamente pelo castigo – ao menos quanto às
vítimas da violência punitiva. Não subestimemos em que medida a visão dos
procedimentos judiciais e executivos impede o criminoso de sentir seu ato, seu
gênero de ação, como repreensível em si: pois ele vê o mesmo gênero de ações
praticado a serviço da justiça, aprovado e praticado como boa consciência:
espionagem, fraude, uso de armadilhas, suborno, toda essa arte capciosa e
trabalhosa dos policiais e acusadores, e mais aquilo feito por princípio, sem o
afeto sequer para desculpar, roubo, violência, difamação, aprisionamento,
assassínio, tortura, tudo próprio dos diversos tipos de castigo – ações de modo
algum reprovadas e condenadas em si pelos juízes, mas apenas em certo aspecto e
utilização prática. (GM II § 14)
E complementa: “(...) de fato, por muitíssimo
tempo os que julgavam e puniam não revelaram consciência de estar lidando com
um „culpado‟. Mas sim com um causador de danos, com um irresponsável fragmento
do destino”. (GM II § 14)
Do mesmo modo, a ideia de justiça,
pensada nos moldes de Batman e Harvey Dent, seria, para Nietzsche, um ideal
característico do ressentimento: uma vingança, portanto. Pois “não surpreende
ver surgir (...) tentativas como já houve bastantes (...) de sacralizar a
vingança sob o nome de justiça – como se no fundo a justiça fosse apenas uma
evolução do sentimento de estar-ferido – e depois promover, com a vingança,
todos os afetos reativos”. (GM, II § 11)
Batman pretende vingar-se e se ilude
com a ideia de “um lugar melhor”, estático, no qual crianças não são ofendidas,
violentadas, exploradas e nem perdem os pais. Pois para Nietzsche, como função
básica, “a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não
podendo sequer ser concebida sem esse caráter”. (GM II § 11)
Mesmo a criação do Estado, já que
falamos em comunidade, para Nietzsche, foge à ideia de contrato pacífico:
(...)
algum bando de bestas louras, uma raça de conquistadores e senhores, que,
organizada guerreiramente e com força para organizar, sem hesitação lança suas
garras terríveis sobre uma população talvez imensamente superior em número, mas
ainda informe e nômade. Deste modo começa a existir o “Estado” na terra: penso
haver-se acabado aquele sentimentalismo que o fazia começar com um “contrato”.
(GM II § 17)
Justamente por que:
“Para
uma filosofia centrada na noção de vontade de poder, não é pelo medium
pacificador de um contrato social fundante, nem como resultado de um progresso
natural ou lógico da espécie humana, que se institui o estado, mas sim a partir
de relações de domínio” (GIACOIA, 2008, p. 209)
Contudo, Batman impõe ordem em Gotham.
Sua luta é contínua, nunca definitiva. Ela encontra conflitos também com o
Estado uma vez que “se sobrepõe na luta contra o crime” 59 e consequentemente
deixa clara a incapacidade ou a falta de interesse das autoridades de
segurança. Um diferencial importante deixado exposto em Batman: O Cavaleiro das
Trevas é sua posição insistente com relação à Gotham e sua promessa: “Ele é um
guardião silencioso, um protetor zeloso: um Cavaleiro das trevas” 60.
Além de ter um sentido de fidelidade à
palavra proferida aos pais, a promessa de Batman precisa de um fundamento. Um
fundamento que a preceda, portanto, um princípio, no qual, mesmo com tudo e
todos o influenciando para quebrar a palavra, ele persista inabalável. Este
princípio é o valor moral. Valor que seu maior inimigo tentará atacar com
deboche e crueldade: o Coringa.
5.3 Esquecimento e crueldade
Para compreender essa luta de valores
entre Batman e Coringa é preciso inseri-los, estes personagens emblemáticos, na
lógica de valoração que a Genealogia da Moral de Nietzsche apresenta,
justamente por conta de sua pertinência quanto às disposições axiológicas que
permanecem na cultura ocidental. Tais disposições se enxertam nas produções
artísticas que procuram, nem todas, atender à demanda de entretenimento
requerida pela sociedade.
Com relação às Histórias em Quadrinhos,
por volta dos anos de 1950, nos Estados Unidos, quadrinhos de horror causaram
comoção na sociedade sendo que o Congresso americano determinou a criação de um
código no qual todos os editores de revistas em quadrinhos deveriam seguir.
Uma
cláusula-chave do Código de Quadrinhos original declarava que: “Em todos os
casos, o bem deve triunfar contra o mal e o criminoso [será] punido por suas
más ações”. Apesar de o código perder sua relevância com o passar do tempo, foi
efetivo durante décadas, impondo restrições básicas ao conteúdo e ao tom da
história. Qualquer um que conheça o histórico do Código pode ser tentado a
dizer que os super-heróis tradicionais “se tornavam bons” apenas porque os
protagonistas nos quadrinhos tinham de ser criados em conformidade com o
Código. (BRENZEL, 2009, p. 147-148)
Mesmo com a restrição legal, é
interessante perceber que as pessoas se interessavam pelos bons heróis, senão
não teriam feito tanto sucesso, os leitores não teriam comprado. O foco é
observar que o bem é preferência hegemônica na cultura, “ou seja, nós, o
público, pagamos pelos super-heróis bons e os aceitamos”. (BRENZEL, 2009, p.
148)
De acordo com Nietzsche, como já visto
anteriormente, as noções de bem e mal são concepções posteriores às de bom e
ruim. Estas nascem a partir de uma valoração ativa, sob o poder dos fortes em
cunhar nomes tendo a eles mesmos como referência de valoração. Aquelas nascem
como reação às forças dominadoras da valoração forte, a partir do ressentimento
dos fracos que, por vingança, atribuem valor negativo ao forte, tresvalorando o
valor inicial.
Fica claro, portanto, que o motivo pelo
qual a preferência da maioria por heróis que se adaptam à concepção de bem e
mal, se dá, de modo geral, por conta da hegemonia dessa concepção que possui
preeminência na cultura atual. O que é pertinente na análise de Nietzsche a
respeito da moral é a possibilidade de trocar a perspectiva unilateral que a
moral vigente impõe e vislumbrar o outro lado numa atitude de curiosa e
instigante pesquisa.
Na lógica editorial apresentada acima,
Batman é tido como um super-herói, enquanto o Coringa é tratado como um super
vilão. A dicotomia é clara: herói e vilão equivalem a bem e mal
respectivamente. Logo se vê que o enxerto cultural/moral é feito aos personagens.
Mas, tais atribuições atualmente não são tão cristalizadas, os dois pólos não
estão bem definidos. No último filme sobre Batman, por exemplo, o Morcego não
sai vitorioso e o Coringa não é derrotado. O que se tem é uma complexa
relação entre esses dois antagonistas mortais, na qual a própria ideia de
vitória não fica clara, mas, trataremos deste filme, em específico, mais tarde.
No entanto essa é a percepção de quem
vê de fora. É o espectador quem faz esse tipo de juízo. É o público que enxerga
a complexidade e a analisa. O que nos interessa aqui, é analisar a visão dos
personagens. É o fenômeno de suas performances que será útil para este
trabalho, justamente por se tratar de um tema polêmico e delicado. Com isso
cabe a pergunta: Batman vê a si mesmo como bom e ao Coringa como mal? E o
Coringa? Ele se vê como mal e ao Batman como bom? Talvez outra pergunta englobe
mais a questão: Batman e Coringa qualificam suas próprias atitudes como
saudáveis a si mesmos?
Sem dúvida Batman adere ao tipo de
valoração tida por Nietzsche como escrava, que nasce do ressentimento,
precisamente reativa. Sua promessa: “Fiz uma promessa no túmulo dos meus
pais... Eu jamais descansaria enquanto não limpasse Gotham do mal que tirou
suas vidas”. (LOEB, 1998, p.00) O mal, para Batman, aparece como algo que
precisa ser limpo, exterminado, combatido.
Em outra ocasião ele afirma: “E eu
juro, pelo espírito de meus pais, vingar a morte deles e devotar o resto de
minha vida combatendo todos os criminosos”. (Detective Comics # 33, 1939 apud
JENSEN, 2008, p. 86) Aqui, o combate é contra todos os criminosos. Vê-se,
portanto, uma equivalência no objeto a ser combatido: criminosos e mal se
fundem, são os alvos de Batman. Mesmo que Batman não tenha se vingado
diretamente de seus pais, ou seja, não tenha tirado a vida do assassino, é
possível falarmos de um desdobramento da vingança, uma espécie de canalização
na qual o rosto do assassino é visto, por Batman, em todos os outros
criminosos. A adesão de Batman ao cumprimento da lei penal torna-se expressão
de uma vingança imaginária.
A
rebelião escrava da moral começa quando o próprio ressentimento se torna
criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a
verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtém
reparação. (GM I § 10)
Esta afirmação de Nietzsche se acopla
perfeitamente à atitude de Batman, aliás, à sua não atitude. Sua verdadeira
vingança não é possível, ele não pode cobrar com a mesma moeda aquilo que foi
tirado de si. O assassino fugiu, nunca foi encontrado, seu devedor é nulo.
Em Batman Begins, o diretor Christopher
Nolan, remexe a ferida de Batman. Lá o assassino é Joe Chill e ele é preso pela
polícia. No julgamento do criminoso, Bruce Wayne comparece e leva consigo
uma arma. Sua intenção é matar o assassino de seus pais. Mas a máfia italiana
chega à frente e o elimina com um tiro a queima roupa. Sua verdadeira reação é
negada, seu querido ato de vingança não é realizado. Batman apenas o imagina
sob as formas da lei penal e do castigo61. Sua missão como guardião de Gotham é
uma longa estratégia de vingança que é conduzida por um ódio entranhado: todo
criminoso é Joe Chill.
Batman diz: “Quando eu era menino, meu
pai e minha mãe foram assassinados diante dos meus olhos. Dediquei minha vida a
deter esse criminoso, independentemente da forma ou rosto que ele tenha. De
fato, a forma não tem importância” 62. A forma não tem importância porque ele
já transpôs, de maneira imaginativa, seu alvo perdido para todos os criminosos
de Gotham.
Para Nietzsche “A moral escrava sempre
requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto –
sua ação é no fundo reação”. (GM I § 10) A reação de Batman é conduzida por seu
ódio. Sua promessa é feita, também, motivada por ódio. Sua memória é marcada
pela dor e pelo sofrimento. Nietzsche escreve um retrato perfeito do homem
ressentido que equivale em todos os detalhes ao Batman:
(...)
o homem do ressentimento não é franco, nem ingênuo, nem honesto e reto consigo.
Sua alma olha de través, ele ama os refúgios, os subterfúgios, os caminhos
ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo, sua segurança, seu bálsamo;
ele entende do silêncio, do não esquecimento, da espera, do momentâneo
apequenamento e da humilhação própria. (GM I § 10)
Já falamos da inteligência de Batman e
sua habilidade com a estratégia e planejamento. Nietzsche relaciona tal
capacidade aos homens ressentidos:
Uma
raça de tais homens do ressentimento resultará necessariamente mais inteligente
que qualquer raça nobre, e venerará a inteligência numa medida muito maior: a
saber, como uma condição de existência de primeira ordem. (GM I § 10)
O Coringa é totalmente o oposto do
Batman com relação à valoração. Ele assume o crime como valor bom. É necessária
uma troca de perspectiva para considerar a maneira do Coringa. Aquele conceito
bom e ruim é a perspectiva do Coringa, que nasce, no entendimento de Nietzsche,
com os senhores, os poderosos.
Nietzsche fala que
toda
moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma (...) ele age e cresce
espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda
maior júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o “baixo”, “comum”, “ruim”, é
apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito
básico, positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, “nós, os nobres,
nós, os bons, os belos, os felizes!” (GM I § 10)
É certo que seu passado é tão trágico
quanto o de Batman: era um artista frustrado que não conseguia emprego e depois
perde a esposa grávida em um acidente doméstico. Contudo sua atitude diante da
tragédia não é reativa. Ele não é marcado por essa dor, o sofrimento não é
encontrado em sua memória. Ele não possui memória, não faz promessas: ele
simplesmente esquece. Não há ressentimento, portanto. O Coringa dirá: “Eu não
guardo rancor” 63. Sua atitude é ativamente deveniente. Não possui local fixo
ou fundamento para suas atitudes, ele apenas faz. Seu passado? Ele explica: “Se
eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha! Ah, ah, ah!” 64.
Em Asilo Arkham ele é entendido da
seguinte forma:
O
Coringa é um caso especial. Muitos de nós acreditam que ele está além de
qualquer tratamento. Na verdade, não estamos sequer certos de que ele possa ser
definido como insano. (...) É bem possível que estejamos diante de um caso de
super-sanidade. Uma nova e brilhante modificação da percepção humana. Mais
adequada à vida urbana no fim do século vinte (...) Diferente de você ou de
mim, o Coringa não parece ter controle sobre as informações sensoriais que recebe
do mundo externo. Por isso, alguns dias ele é um palhaço infantil. Outros, um
psicopata assassino. Ele não tem verdadeira personalidade. Ele cria uma
diferente por dia. O Coringa se vê como o mestre do desgoverno, e o mundo como
um teatro do absurdo. 65
Em outra ocasião, Batman fala sobre o
Coringa: “Ele mudou novamente. Você sabe como ele muda depois de alguns anos.
(...) Ele não tem nenhuma personalidade real, lembre-se, apenas uma série de
„superpersonas‟” 66. Esta ideia justifica o próprio nome do Coringa que é
associada à carta do jogo de baralhos que se instala a vários tipos de
disposições dentro de um jogo.
A figura do homem nobre é muito bem
levantada por Nietzsche. Atribuamos tal figura e perspectiva de valoração ao
personagem Coringa. Aquele que promete, que dá sua palavra e a lança para o
futuro na esperança de cumpri-la, seria, para Nietzsche, um dispéptico, um
doente no qual a seriedade e o peso de seu fardo o impedem de rir.
O Coringa pergunta: “Porque tão sério?” 67. Não há dispepsia aqui, não há
o que ficar digerindo, nutrindo-se com veneno:
Não
conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus
mal feitos inclusive – eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um
excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora de
esquecimento (...) Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos vermes
que em outros se enterrariam; apenas neste caso é possível, se for possível em
absoluto, o autêntico “amor aos inimigos”. (GM I § 10)
E de fato o Coringa ama o Batman. Ele
diz: “Mesmo que me levassem bem alto, num helicóptero. E alinhassem todos os
corpos no chão, todos dispostinhos num adorável padrão geométrico, não ia
adiantar nada. Eu perdi a conta dos mortos. Mas você, não. Você não perdeu. Eu
te amo por isso”. (MILLER, 1986)
Lembrando o que Nietzsche falou,
“Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência, para que novamente
haja lugar para o novo (...) eis a utilidade do esquecimento” (Gm II § 1), o
Coringa se recria a todo o momento, ele abre espaço para o novo no qual uma
memória apenas seria impedimento. Ele não rumina sentimentos de ódio, não se
lembra de dores. Ele dirá:
Lembrar
é perigoso... eu vejo o passado como um lugar cheio de ansiedade. O “pretérito
imperfeito”, como você chamaria. Ah, ah, ah, ah! As memórias são traiçoeiras!
Num momento, você está perdido num carnaval de prazeres, com o aroma da
infância, os neons da puberdade... No outro, elas te levam a lugares onde a
escuridão e o frio trazem à tona coisas que você gostaria de esquecer! As
memórias podem ser vis, repulsivas, brutais... como crianças. Ah, ah, ah! Mas
podemos viver sem elas? A razão se sustenta nelas. Não encarar as memórias é o
mesmo que negar a razão! Mas e daí? Quem nos obriga a ser racionais? Não há cláusula
de sanidade. Assim, quando você estiver dentro de um desagradável trem de
recordações, seguindo pra lugares do seu passado onde o riso é insuportável...
lembre-se da loucura. Loucura é a saída de emergência! Você só precisa dar um
passo pra trás e fechar a porta com todas aquelas coisas horríveis que
aconteceram... presas lá dentro... pra sempre. (MOORE, 1988)
O roteirista de quadrinhos Grant
Morrison (2007), faz uma bela descrição da disposição psíquica do Coringa em O
Palhaço à Meia Noite.
Talvez
ele seja uma nova mutação humana, fruto das águas industriais pegajosas, gerado
num mundo de cancerígenos brilhantes e chuvas ácidas. Talvez ele seja o modelo
do multihomem do século 21, embaralhando egos como um funcionário de cassino
embaralha cartas, para aliviar os choques e trabalhar alguma alquimia que possa
talvez transformar o chumbo da tragédia e horror no cruel e caótico ouro da
gargalhada do amaldiçoado. Talvez ele seja especial e não apenas um homem
terrivelmente amedrontado e mentalmente doente, viciado num interminável ciclo
de violência autodestrutiva. Coisas mais estranhas já aconteceram (MORRISON,
2007)
Na história da descrição acima o
Coringa está fugindo do Asilo Arkham e decide trocar de personalidade. Assim
como um artista reinventa uma obra já existente e velha, o Coringa se olha no
espelho e decide não apenas trabalhar um novo rosto, mas também uma nova
postura. Pega um bisturi e se mutila extendendo um grande sorriso em sua
bochecha. A recriação psíquica também é descrita por Morrison.
O
seu corpo entra em convulsão. Suas entranhas se apertam como se forças
gravitacionais tivessem conspirado e se moldado para fazê-lo se ajoelhar.
Então, ele deita de lado, gemendo horrivelmente. Seu gemido é o sinal, o rádio,
o novo som de si sendo projetado como uma frequência. “Eu sou uma barata!”, ele
grita, e primeiro move uma perna, depois a outra, interpretando um cancã de
contrações, dores de trabalho de parto e nascimento enquanto o alarme do Asilo
dispara loucamente. “La cucaracha! La cucaracha! A dor é terrível! Eu quero
morfina! Estou tendo um filho!”, ele ofega, depois gargalha, depois tosse, como
uma dançarina de cabaré dando à luz um asno no palco. “La
cucaracha-hahahahaha!” Vozes múltiplas do Coringa disputam seu controle
conforme ele se prepara para dar à luz a si mesmo como a Palavra de Deus
invertida. O seu único arrependimento é que Batman não está aqui para
testemunhar este acontecimento obsceno, sua exuberante patologia em pleno
florescimento (MORRISON, 2007)
O Coringa é um assassino: “Eu agora
faço o que outras pessoas apenas sonham. Eu faço arte... até alguém morrer. Eu
sou o primeiro artista homicida do mundo totalmente em exercício” 68. Ele é
cruel, sádico e impiedoso. Ele surrou um dos Robins com um pé de cabra e o
explodiu 69, atirou a queima roupa em Bárbara Gordon deixando-a paraplégica,
torturou psicologicamente o comissário Gordon mostrando as fotos de sua filha
nua e agonizante 70, arrancou a pele de um homem deixando-o apenas com os
músculos à mostra 71, envenenou milhares com o seu gás do riso e etc. Tudo isso
sem qualquer tipo de remorso.
Quando Nietzsche usa a fábula dos
cordeiros e das aves de rapina (GM I § 13), seu foco é tratar a força de
expressão ativa presente nas aves de rapina levando em conta a falta do sujeito
atuante que seria culpável de acordo com a perspectiva das ovelhas. Ele afirma
que: “Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um
querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de
inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza
que se expresse como força”. (GM I § 13)
Essa afirmação coloca as aves de rapina
dentro de um campo de atuação na qual elas não podem escolher serem fortes ou
fracas: elas simplesmente são fortes e expressam essa força por meio do ataque
às ovelhas. A ideia de sujeito livre, que decide atacar ou não, seria, para
Nietzsche, uma ficção inventada pelas ovelhas para que as aves de rapina recuem
no ataque. Ou seja, a criação da alma é uma ficção criada pelos fracos para
imputar nos fortes um sentimento de culpa.
O
sujeito (ou falando de modo mais popular, a alma) foi até o momento o mais
sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande
maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos
com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu
ser-assim como mérito. (GM I § 13)
Sem sujeito/alma não pode haver o que
culpar. Não há quem, apenas o que: a saber, a ação, o fazer. Se o Coringa
tivesse de culpar-se pelos atos de crueldade que praticou, ele deveria culpar
uma multidão de superpersonas que criou ao longo de sua vida. No caso do
Coringa deveria haver vários sujeitos atuantes, várias almas: uma legião! As
ovelhas amedrontadas, conscientes de sua derrota olham para um tipo como o
Coringa e o nomeiam como mau: “Eu apenas faço as coisas”72, dirá o Coringa.
Esta
“audácia” das raças nobres, a maneira louca, absurda, repentina como se
manifesta o elemento incalculável, improvável, de suas empresas (...), sua
indiferença e seu desprezo por segurança, corpo, vida, bem-estar, sua terrível
jovialidade e intensidade do prazer no destruir, nas volúpias da vitória e da
crueldade – para aqueles que sofriam com isso, tudo se juntava na imagem do
“bárbaro”, do “inimigo mau”, como o “godo”, o “vândalo”. (GM I §11)
Reparemos nesta fala do Coringa
pronunciada a um policial: “Você quer saber por que eu uso uma faca? Armas são
muito rápidas. Você não consegue saborear todas as pequenas... emoções” 73.
Agora a fala das aves de rapina na fábula de Nietzsche: “nós nada temos contra
essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nada mais delicioso do que
uma tenra ovelhinha”. (GM I § 13)
Zombaria e crueldade se casam nestas
duas falas. A alegria do cômico mistura-se com o sofrimento alheio. A
satisfação no fazer sofrer do Coringa tem sido sua marca. Ele possui uma arte
de fazer seus crimes terem uma teatralidade. Gotham City 74 é a cidade de
criminosos teatrais: Mulher Gato, Pingüim, Charada, Duas Caras, Espantalho,
Senhor Frio, Hera Venenosa, Crocodilo, Chapeleiro Louco, Cara de Barro,
Scarface, Ventríloquo. Todos artistas do crime. Promotores da diversão e da
criatividade no fazer sofrer tendo o Coringa na vanguarda.
Dentre todos estes personagens, eis que
surge a seriedade encarnada: Batman, o homem morcego que procura evitar e lutar
contra toda essa barbárie que assola Gotham. Contudo, as salas de cinema
vibraram quando Batman arremessou um homem de um prédio com altura suficiente
para que ele quebrasse as pernas e na agonia da dor pudesse confessar uma
informação. Batman derrama bastante sangue também: ele castiga. “Sem crueldade
não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do homem – e
no castigo também há muito de festivo!”. (GM II § 6)
Nietzsche fala em uma “crescente
espiritualização e „divinalização‟ da crueldade, que atravessa toda a história
da cultura superior (e até a constitui, num sentido significativo).” (GM II §
6) Em Além do Bem e do Mal, ele fala do ingrediente constitutivo da tragédia
deixando a tese de que o animal selvagem não está morto.
(...)
eis a minha tese; esse “animal selvagem” não foi abatido absolutamente, ele
vive e prospera, ele apenas – se divinizou. O que constitui a dolorosa volúpia
da tragédia é a crueldade; o que produz efeito agradável na chamada compaixão
trágica, e realmente em tudo sublime, até nos tremores supremos e mais
delicados da metafísica, obtém sua doçura tão-só no ingrediente crueldade nele
misturado. O que o romano, na arena, o cristão, nos êxtases da cruz, o espanhol,
ante as fogueiras e as touradas, o japonês de hoje, quando corre às tragédias,
o operário de subúrbio parisiense, com saudade de revoluções sangrentas, a
wagneriana que, de vontade suspensa, “deixa-se tomar” por Tristão e Isolda – o
que todos eles apreciam, e procuram beber com misterioso ardor, é a poção bem
temperada da grande Circe “crueldade”. (ABM § 229)
5.4 Judéia vs Roma: Batman vs Coringa
Nas obras A Piada Mortal, O Palhaço à
Meia Noite e Batman: O Cavaleiro das Trevas temos o confronto entre Batman e
Coringa são elevados a graus extremos, onde os dois personagens se encontram
numa agonia filosófica, num dilema trágico no qual sangue e gargalhadas se
entrelaçam de maneira paradoxal.
Estes dois antagonistas traduzem um
confronto épico. No entanto, não se pretende aqui elencar mocinho e bandido,
herói e vilão, o bem e o mal. Este maniqueísmo parece há muito ter sido
superado. Trata-se de observar, através da filosofia nitzscheana,
concernente à visão do filósofo a respeito do que ele chamou de preconceitos
morais 75, os mitos de Batman e Coringa.
A primeira obra, A Piada Mortal,
inicia-se com a seguinte fala de Batman direcionada ao Coringa:
Olá,
eu vim conversar. Estive pensando muito ultimamente. Sobre você e eu. Sobre o
que vai acontecer com a gente no fim. Vamos matar um ao outro, não? Talvez você
me mate. Talvez eu te mate. Talvez mais cedo. Talvez mais tarde. Eu só queria
estar certo de ter realmente tentado mudar as coisas entre nós. Só uma vez.
(MOORE, 1988)
Interessante perceber a consciência de
Batman em se dirigir ao seu maior inimigo e cogitar a possibilidade de uma
trégua. Mais tarde ele é ainda mais direto:
Eu
não quero machucar você! Não quero que nenhum de nós mate o outro no fim... Mas
estamos esgotando as alternativas e ambos sabemos disso! Talvez tudo dependa
desta noite. Talvez esta seja nossa última chance de parar. Se você não
aproveitar, entraremos numa rota suicida que levará nós dois à morte. Não
precisa terminar assim. Não sei o que tirou você dos trilhos mas... quem sabe?
Talvez eu também tenha estado lá também. Talvez eu possa ajudar. Podíamos
trabalhar juntos. Eu podia reabilitar você. Não precisa ficar sozinho. Não
precisamos nos matar. (MOORE, 1988)
Esta consciência de um perigo maior, ou
seja, do perigo da morte iminente, desta força pavorosa que é a morte, é
sentida pelo órfão Bruce Wayne que logo a quer afastar. A luta de Batman também
é contra a morte: essa força agressiva, impiedosa, injusta, incontrolável que
tira a vida daqueles aos quais se tem amor, afeto. Batman tenta estar no
controle da vida, quer apartar de si o sofrimento que a morte de seus pais lhe
causou, contudo, a morte aparece em seu caminho sempre.
O filósofo francês Gilles Deleuze,
leitor de Nietzsche, define a consciência nestes termos:
Em
Nietzsche, a consciência é sempre consciência de um inferior em relação ao
superior ao qual se subordina ou “se incorpora”. A consciência nunca é
consciência de si, mas consciência do um eu em relação ao eu que não é
consciente. Não é consciência do senhor, mas consciência do escravo em relação
a um senhor que não tem de ser consciente. “A consciência habitualmente só
aparece quando um todo quer subordinar-se a um todo superior... A consciência
nasce em relação a um ser de que nós poderíamos ser função” 76. É assim o
servilismo da consciência: testemunha apenas “a formação de um corpo superior”.
(DELEUZE, ANO, p. 62)
O fato de Batman ter consciência da
morte é justamente porque ela é não consciente. A morte é senhor enquanto
Batman é escravo. Por isso ele tem consciência dela. Mas, e o Coringa? Qual sua
relação com a morte? A princípio, é lícito dizer que ele não a teme. Na HQ O
Cavaleiro das Trevas, o roteirista Frank Miller desenha uma luta forte entre
Batman e Coringa, na qual Batman contorce o pescoço do Coringa quase o levando
à morte. Coringa diz: “Eu estou muito desapontado com você, querido. O momento
era tão perfeito e você não teve coragem. Estou paralítico. Uma pressãozinha a
mais e eu teria...” 77. Em outra ocasião ele chegar a pedir que o Batman o
acerte com o bat-pod ao que o Morcego desvia. 78
O Coringa é autodestrutivo, não se
importa em morrer, contudo se satisfaz e tem muito prazer em viver a vida de
várias maneiras, recriando-se a cada momento, testando possibilidades. De certa
forma, dentre estas várias possibilidades de acoplagem, próprias de uma carta
coringa no baralho, uma delas é a de se colocar como não consciente, justamente
a mesma falta de consciência tratada por Deleuze logo acima. O Coringa adentra
no território do não controle, no caos, alternando-se entre agente e produto do
caos. Muitas vezes, também, agindo como o próprio caos, precisamente nos
momentos denominados como loucura, insanidade: não consciência. 79
É difícil a observação desta
alternância entre estados, mas, uma passagem pelas histórias mostra bem tais
saltos, próprias de uma personalidade ativa, deveniente, aberta ao novo,
repentina, incalculável, improvável, indiferente, com “intensidade do prazer em
destruir, nas volúpias da vitória e da crueldade”. (GM I § 11) O Coringa
afirmará: “Aquilo que não te mata simplesmente te faz mais estranho” 80.
“O
que é ativo? Tender para o poder” 81. Apropriar-se, apoderar-se, subjugar,
dominar são as características da força ativa. Apropriar-se quer dizer impor
formas, criar formas explorando as circunstâncias 82. Nietzsche critica Darwin,
porque este interpreta a evolução, e mesmo o acaso na evolução, de um modo completamente
reativo. Admira Lamarck, porque Lamarck pressentiu a existência de uma força
plástica verdadeiramente ativa, primeira em relação às adaptações: uma força de
metamorfose. Acontece em Nietzsche o mesmo que na energética, aí se chama
“nobre” à energia capaz de se transformar. O poder de transformação, o poder
dionisíaco, é a primeira definição de atividade. (DELEUZE, ANO, p. 66)
Enquanto a morte é senhor e Batman
escravo, o Coringa é senhor com a morte: eles são amigos, pares, por isso não
se temem. Neste ponto, parece ficar clara nossa pretensão em associar a força
ativa ao personagem do Coringa em toda sua capacidade expansiva, criativa e
exploratória e caótica. Parece estar clara também a compreensão de Batman como
a força contrária, reativa, dependente da força Coringa, nobre em sua atividade
de transformação.
Mas
sempre que marcarmos assim a nobreza da ação e a sua superioridade sobre a
reação, não devemos esquecer que a reação designa tanto um tipo de forças como
a ação: simplesmente, as reações não podem ser concebidas, nem cientificamente
concebidas como forças, se não as referirmos às forças superiores que são
precisamente de um outro tipo. Reativa é uma qualidade original da força, mas
que só pode ser interpretada enquanto tal em relação ao ativo, a partir do
ativo. (DELEUZE, ano, 66)
O Coringa, dentro da noção nitzscheana
de confronto moral, no qual a valoração escrava contrapõe a valoração do
senhor, é o antípoda perfeito para o Batman se colocarmos ambos dentro de cada
valoração e estabelecermos a dominação e prostração próprias das forças ativas
e reativas respectivamente. O diretor Christopher Nolan entendeu algo disso. Em
entrevista ele afirma: “Penso que o Coringa é a resposta lógica para um
personagem como o Batman”.83 Talvez, ele precisaria apenas inverter a posição
das forças: o Batman é a resposta lógica para um personagem como o Coringa.
Responder é sempre uma reação. Batman responde ao crime enquanto o Coringa diz:
“Saúde ao crime!” 84.
Nietzsche verá na tresvaloração dos
valores, uma vitória do tipo de valoração escrava, sendo que existe, ainda, uma
luta entre os dois tipos e atribui nome à luta: Roma contra Judéia.
Pois
os romanos eram os fortes e nobres, como jamais existiram mais fortes e nobres,
e nem foram sonhados sequer: cada vestígio, cada inscrição deles encanta, se
apenas se percebe o que escreve aquilo. Os judeus, ao contrário, foram o povo
sacerdotal do ressentimento par excellence, possuído de um gênio moral-popular
absolutamente sem igual (...) Quem venceu temporariamente, Roma ou Judéia? Mas
não há dúvida: considere-se diante de quem os homens se inclinam atualmente na
própria Roma, como a quintessência dos mais altos valores – não só em Roma, mas
em quase metade do mundo, em toda parte onde o homem foi ou quer ser domado –
diante de três judeus, como todos sabem, e de uma judia (Jesus de Nazaré, o
pescador Pedro, o tapeceiro Paulo e a mãe do dito Jesus, de nome Maria). Isto é
muito curioso: Roma sucumbiu, não há sombra de dúvida. (GM I § 16)
Vejamos a luta traduzida para os
quadrinhos, para as telas de cinema, sob as formas de sanidade contra loucura.
Deixemos que os antagonistas falem. O Coringa diz ao Batman:
Só
é preciso um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático. Essa é
a distância entre o mundo e eu... apenas um dia ruim. Você teve um dia ruim uma
vez não é? Eu sei como é. Agente tem um dia ruim e tudo muda. Senão, porque
você se vestiria como um rato voador? Seu dia ruim o deixou tão louco quanto
qualquer um. Só que você não admite. Prefere continuar fingindo que a vida faz
sentido... que vale a pena todo esse esforço! Você me dá vontade de vomitar!
Queria saber qual é a sua. O que fez você ficar desse jeito? Namorada estuprada
por viciados, talvez? Irmão esquartejado por assaltantes? Aposto que alguma
coisa assim... do gênero. Foi assim que aconteceu comigo, sabe... Bem, eu não
tenho certeza absoluta. Algumas vezes me lembro de um jeito. Outras vezes, de
outro... Se eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha! Ah,
ah, ah! Mas meu ponto é... meu ponto é... eu fiquei louco. Quando vi que piada
de mau gosto era este mundo, preferi ficar louco. Eu admito! E você? Você não é
nenhum burro, não é imbecil! Só precisa ver a realidade. Sabe quantas vezes
estivemos perto da terceira guerra mundial? Sabe? Sabe o que disparou a última
grande guerra? Uma discussão sobre quantos postes telegráficos a Alemanha devia
aos seus credores de guerra! Postes telegráficos! Ah, ah, ah, ah, ah! É tudo
uma piada! Tudo pelo que as pessoas lutam e dão valor não passa de uma
monstruosa e insensata anedota! Então, porque você não vê o lado engraçado?
Porque não está rindo? (MOORE, 1988)
Batman responde à questão:
Porque
eu já ouvi isso antes e não foi engraçado da primeira vez. Talvez pessoas
comuns não se quebrem à toa. Talvez agente não precise ficar caído no chão só
porque levou um tombo. Talvez a fraqueza seja só sua. Talvez seja apenas você o
tempo todo. (MOORE, 1988)
Batman pronuncia muito talvez. Seu
comedimento é interessante. Na HQ Coringa de Brian Azzarello, um Coringa recém
saído do Asilo Arkham, aterroriza Gotham. Ele fala ao Batman:
Você
exibe sua vergonha como um distintivo porque não tem colhões pra conseguir um
de verdade. É... olha pra você... Desesperado pra ser temido... quer ser visto
como um monstro vestido de preto. Porém deixa essa janelinha. Um vislumbre da
perfeição por baixo. Óbvia... A beleza bem delineada... não é o queixo, a boca
de um monstro... Porque deixa que vejam? Me conta porque? (AZZARELLO, ANO, P)
A resposta de Batman: “Pra zombar de
você”. Na mais recente longa-metragem sobre Batman, os antagonistas são
colocados frente a frente num diálogo revelador 85. O Coringa inicia:
-
Aqueles tolos da Máfia querem você morto para que as coisas voltem a ser do
jeito que eram. Mas eu sei a verdade. Não há volta. Você mudou as coisas para
sempre.
-
Então porque você quer me matar? (Risadas do Coringa)
-
Eu não quero te matar! O que eu faria sem você? Voltar a roubar os negociantes
da Máfia? Não, não, não, não! Você... você me completa!
-
Você é lixo que mata por dinheiro.
-
Não fale como um deles, você não é!86 Mesmo se quisesse ser. Para eles você é
apenas uma aberração, como eu. Eles precisam de você agora, mas quando não
precisarem mais eles vão te lançar fora como a um leproso. Veja, as morais
deles, o código deles... é uma piada ruim, caída ao primeiro sinal de problema.
Eles apenas são bons na medida em que o mundo os permite ser. Eu te mostro:
quando as fichas caírem, essas “pessoas civilizadas” irão comer umas às outras.
Veja! Eu não sou um monstro! Eu apenas estou a frente da curva (...) Você tem
todas essas regras! Você pensa que elas irão te salvar?
-
Eu tenho apenas uma regra.
-
Oh e esta é a regra que você terá que quebrar para saber a verdade!
-
Qual é?
-
Que a única maneira sensata de viver neste mundo é sem regras e esta noite você
irá quebrar a sua única regra. (NOLAN, 2008)
Esse diálogo oferece ponto de engate
crucial para a culminância da relação entre Batman e Coringa. É aqui que o
problema filosófico na moral encontrará seu ponto máximo. É aqui que o Coringa
começa sua intensa empresa sádica e filosófica de colocar o Batman contra a
parede. O Batman não mata: eis a sua única regra. Em Batman Begins ele diz:
“Não sou um carrasco”. Em Ano Um suas palavras são: “Não sou assassino”.
Até que ponto o Morcego pode ser
conduzido sem que rompa com seus princípios morais? Sua promessa é baseada em
um valor moral que sendo quebrado esse valor, não matar, ele simultaneamente
cumpre a promessa feita aos pais “limpar Gotham City do mal” e quebra seu
princípio mesmo. Ou seja: matar criminosos é a única forma de “limpar Gotham
City do mal”, uma vez que a lei penal não resolve, mas este ato aniquila seu
princípio moral. Dito de outra forma: seu princípio moral contradiz a
possibilidade de cumprir a promessa feita aos pais. Está dada a tragédia.
Vejamos o discurso niilista do próprio
Batman em Mais Sombrio que a Morte de Bruce Jones:
Existe
escuridão maior que a morte? Gotham City, minha cidade. Ame-a ou deixe-a. Só
não fique indiferente. Entretanto, ultimamente venho pensando no que faz falta.
Estranho, não? Falta algo aqui? Gotham tem os melhores espetáculos, a melhor
comida e serve o melhor do crime. O que falta é a música. Claro que temos nossa
própria produção musical. Mas se você pensa em Nova York, pensa logo em
Sinatra. (...) Mas e Gotham? Nada. Silêncio. Preto profundo. Impenetrável.
Escrevem-se canções sobre amor, dor de cotovelo e perdas. Mas nenhuma sobre
desesperança, sobre o fundo do poço da derrota ou a morte lenta da alma. Talvez
seja a visão daquela moça fugidia e sofrida, talvez seja ver a futilidade de
mais um grupo de vândalos somando sua cota de marginalidade e ódio a uma cidade
outrora gloriosa. Talvez seja mais um blecaute em mais um verão já sufocante de
umidade e desumanidade. Mas alguma coisa hoje me deixa vazio e morto por
dentro, como em nenhuma outra noite. Algo que nenhuma letra de música pode
abranger. Não há letra que aplaque todas as noites solitárias... de observar e
esperar sozinho. Tão só quanto aquela garota ameaçada... ou mesmo seus
agressores. Tudo culmina numa vida inteira de vigilância vazia, espera vazia e,
no fim das contas, violência vazia. Na vazia jornada de volta para casa e para
a cama mais vazia ainda. Existe escuridão maior que a morte? Eu creio que
existe. (JONES, 2006, p. 03-07)
Esta tragédia do homem morcego é
percebida pelo Coringa que não hesita em ir direto à ferida de seu inimigo. Na
HQ Morte em Família, o Coringa mata o pupilo de Batman, o Robin Jason Todd 87.
Contudo, misteriosamente, anos depois, Jason Todd volta à vida. Em Acerto de
Contas com a Morte, o Robin ressuscitado prende o Coringa e coloca Batman em um
dilema: tirar a vida do Coringa definitivamente. Eis a conversa dos três:
Batman- Eu sei que falhei com você. Mas eu tentei
salvá-lo Jason.
Robin- É por isso que você acha que estamos aqui? Por
você ter me deixado morrer? Eu não sei o que torna o seu julgamento pior. Sua
culpa ou seu antiquado senso moral. Bruce, eu te perdôo por não ter me salvado.
Mas por que... por que em nome de Deus? Ele ainda está vivo?
Coringa- Agora temos uma festa legal! Todos juntos outra
vez! Quem tem uma câmera? Drácula, você deve ter uma digital nessa loja de
ferramentas que usa na cintura. Primeiro, tire uma de mim e do garoto. Depois,
você e eu. Depois, nós três. Então, uma com o pé de cabra 88.
Robin- Ou você fica quieto ou eu meto uma bala na sua
boca.
Coringa- Estraga prazer. Não vai comer bolo! (...)
Robin- Eu pensei... eu pensei que depois de me matar...
você não o deixaria machucar mais ninguém. Se tivesse sido você quem ele deixou
em agonia. Se ele tivesse levado você deste mundo... eu não teria feito outra
coisa nesta vida além de caçar este lixo e mandar o desgraçado pro inferno.
Batman- Você não entende. Acho que nunca entendeu.
Robin- O quê? O seu código moral não permite isso? É
difícil demais “passar do limite”?
Batman- Não. Santo Deus... não. Seria fácil demais. Tudo
que eu sempre quis fazer foi matá-lo. Por anos não houve um único dia sem que
eu me imaginasse agarrando-o, levando-o e passando um mês inteiro fazendo-o
sofrer as torturas mais terríveis e excruciantes do mundo. Tudo isso para no
final ele estar surrado, despedaçado e mutilado... implorando, gritando... no
pior tipo de agonia, indo de encontro a uma monstruosa morte.
Coringa- Ah entendi, eu pensei nisso também!
Batman- Eu o quero morto, talvez mais do que eu jamais
quis qualquer coisa. Mas se eu fizer isso, se eu me permitir me rebaixar a esse
ponto... eu nunca voltarei.
Robin- Por quê?
Batman- O que?
Robin- Porque todo escoteiro fantasiado sempre diz isso?
“Se eu passar do limite não há volta?”. Eu não estou falando em matar o
Pingüim, ou o Espantalho, ou o Cara de Barro. Nem o Charada ou Dent... estou
falando dele. Só dele. (WINICK, 2006)
Batman não fere seus princípios. Ele
não define o que vai encontrar ao ultrapassar a linha. Porque não há volta? Ele
não responde. O Coringa ri disso. Em Batman o Cavaleiro das Trevas, o diálogo
final entre os dois, encerra uma espécie de conclusão para os antípodas. Após
conseguir se livrar do Coringa, Batman o lança do alto de um prédio. Enquanto
cai, o Coringa dá gargalhadas de satisfação como que provando sua teoria: o
Batman mata, ele quebra seu princípio moral. Esta constatação é inclusive mais
importante para o Coringa do que o fato de que está caindo de um prédio e em
segundos irá morrer. Contudo, Batman lança seu bat-arpão e draga o Coringa de
volta. Vejamos o que ele diz:
Oh
você... você não poderia me soltar, poderia? Isto é o que acontece quando uma
força irrefreável encontra-se com um objeto imóvel. Você verdadeiramente é
incorruptível, não é? Você não me matará por causa de um utópico senso de
retidão própria e eu não te matarei porque você é divertido demais. Eu penso
que você e eu estamos destinados a fazer isso para sempre. (NOLAN, 2008)
Em O Palhaço à Meia Noite, Grant
Morrison encerra sua obra apresentando um Coringa definitivamente feliz em
olhar para Batman e enxergar a beleza do único ser capaz de completá-lo. Aqui
fica expresso o que Morrison chamou de “A Insuportável Necessidade de Batman e
Coringa” 89. O príncipe palhaço do crime diz a Batman:
Todos
me perguntavam, “O que faz o Coringa rir?”, e eu apontava para você. Todos nós
ríamos de você e de seus estúpidos batbrinquedos pelas suas costas. Nós dois
tentando encontrar significado num mundo sem sentido! Por que ser um pária
desfigurado quando posso ser um notório Deus do Crime? Por que ser um órfão
quando se pode ser um super-herói? Você não pode me matar sem se tornar
como eu. Eu não posso te matar sem perder o único ser humano que pode comigo.
Isto não é irônico? (MORRISON, 2007)
O Batman não mata o Coringa por conta
de seus princípios morais que, até onde vimos, se baseiam em algo incerto:
Batman fala de não ultrapassar linha, mas não especifica. Em outra situação
dirá que o criminoso precisa ser julgado 90. Um julgamento que se desdobra em aplicação
de penas/castigos que não reabilitam. Quando em Batman Begins, Bruce escolhe
não matar um criminoso, alegando que ele precisa ser julgado, Ra‟s Al Ghul
interfere: “Por quem? Burocratas corruptos? Os criminosos zombam das leis da
sociedade. Você sabe disso mais que a maioria”. (NOLAN, 2005) A esse argumento
Bruce abaixa a cabeça, literalmente.
Há uma ocasião em que Batman argumenta
os motivos por não matar. No filme Batman Eternamente, o primeiro Robin, Dick
Grayson, quer tirar a vida do assassino de seus pais, na ocasião, Harvey Dent,
o Duas Caras. Batman diz ao garoto:
Então
você está querendo tirar uma vida? Então vai acontecer desta forma: você mata.
Mas sua dor não morre com Harvey, ela cresce. Então você sai pela noite para
encontrar outro rosto, e outro, e outro. Até que em uma terrível manhã você
acorda e percebe que sua vida inteira se tornou vingança. E você não saberá por
que. (BURTON, 1995)
Analisemos imediatamente uma narração
de Batman há pouco citada:
Tudo
culmina numa vida inteira de vigilância vazia, espera vazia e, no fim das
contas, violência vazia. Na vazia jornada de volta para casa e para a cama mais
vazia ainda. Existe escuridão maior que a morte? Eu creio que existe. (JONES,
2006, p. 03-07)
Segundo a perspectiva de Nietzsche, levando
em conta o castigo, a relação credor/devedor e a tartufice do ressentido, as
citações acima expressam a mesma coisa. A questão aqui não é o matar, mas a
vingança. Entre a seqüência de “vários rostos que se mata” na primeira citação
e a sequência de “várias noites com vigilância vazia” da segunda, não há
diferença. Matar como vingança equivale a cumprir a lei como vingança.
Se limpar o mal de Gotham, consiste em
colocar criminosos na cadeia para que sejam condenados à prisão sem que haja
arrependimento dos atos praticados, ou seja, sem que haja o arrependimento
pretendido pela penalização, é o mesmo que, de acordo com o dito popular,
tapar o sol com uma peneira. É certo que a prisão, assim como o castigo, podem
manter a ordem por um determinado tempo e em determinado espaço, mas não
resolvem o problema querido pela moral: melhorar o homem dito mau, melhorar o
mal de Gotham.
Tão pouco a chamada “educação dos bons
costumes” que pretende domesticar e suprimir os instintos, ou seja, a vontade
de potência, resolveria. Por que “todos os instintos que não se descarregam
para fora voltam-se para dentro”. (GM II § 16) Toda “a hostilidade, crueldade,
o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se
voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má
consciência”. (GM II § 16) Má consciência que se expressa em Batman que quando
olha para o Coringa e lembra-se de todas as coisas que seu inimigo mau lhe fez,
simplesmente volta toda a carga de ódio e crueldade contra si mesmo. Falta-lhe
coragem, porque é covarde. Na precisão dos dois termos, sem tresvaloração.
Coragem como força, bravura, intrepidez. E covardia como medo, timidez,
fraqueza. Pois para Batman seu mérito e louvor na ação são bons enquanto os
atos do Coringa são maus.
Se
os oprimidos, pisoteados, ultrajados exortam uns aos outros, dizendo, a
vingativa astúcia da impotência: “sejamos outra coisa que não os maus, sejamos
bons” E bom é todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca,
que não acerta contas, que remete a deus a vingança, que se mantém na sombra
como nós, que foge de toda maldade e exige pouco da vida, como nós, os
pacientes, humildes, justos” – isto não significa, ouvido friamente e sem
prevenção, nada mais que: “nós, fracos, somos realmente fracos; convém que não
façamos nada para o qual não somos fortes o bastante”; mas esta seca
constatação, esta prudência primaríssima, que até os insetos possuem (os quais
se fazem de mortos para não agir “demais”, em caso de grande perigo), graças ao
falseamento e à mentira para si mesmo, próprios da impotência, tomou a roupagem
pomposa da virtude que cala, renuncia, espera, como se a fraqueza mesma dos
fracos – isto é, seu ser, sua atividade, toda a sua inevitável, irremovível
realidade – fosse um empreendimento voluntário, algo desejado, escolhido, um
feito, um mérito. (GM II § 13)
Por outro lado o Coringa não mata o
Batman, simplesmente porque se o fizer, estará eliminando um de seus pares,
talvez o único: “Quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! – e tal
reverência é já uma ponte para o amor... Ele reclama para si seu inimigo como
uma distinção, ele não suporta inimigo que não aquele no qual nada existe a
desprezar, e muito a venerar!”. (GM I § 10)
O Coringa venera a incorruptibilidade
moral de Batman e zomba dela, pois é o único que pode estar a seu nível e ser
chamado, com reverência, de inimigo: “Em contrapartida, imaginemos „o inimigo‟
tal como o concebe o homem do ressentimento – e precisamente nisso está
seu feito, sua criação: ele concebeu „o inimigo mau‟, „o mau‟, e isto como
imagem equivalente, um “bom” – ele mesmo”. (GM I § 10) Batman não venera o
Coringa, ele o quer longe. Não só o Batman, mas toda a cultura hegemônica que
teme os vândalos, os bárbaros, a vida. E assim, Batman sempre se esforça em
prender o Coringa. Pois quanto mais esforço em direção ao nada, mais engraçada
será a piada.
Gostaríamos de finalizar com uma piada
contada pelo Joker 91.
Escute só... tinha dois caras num
hospício.
Uma noite eles decidiram que não queriam mais viver lá...
E resolveram escapar para nunca mais voltar.
Aí, foram até a cobertura do Asilo e viram, ao lado,
O telhado de um prédio apontando para a lua...
Então, um dos sujeitos saltou sem problemas pro outro telhado,
Mas seu amigo se acovardou...
É...ele tinha medo de cair.
Aí o primeiro cara teve uma ideia.
Ele disse: “Ei! Estou com minha lanterna aqui.
Vou acendê-la sobre o vão dos prédios,
E você atravessa pelo facho de luz!”
Mas o outro sacudiu a cabeça e disse:
“O que acha que eu sou? Louco?
E se você apagar a luz quando eu estiver no meio do caminho?”92
Uma noite eles decidiram que não queriam mais viver lá...
E resolveram escapar para nunca mais voltar.
Aí, foram até a cobertura do Asilo e viram, ao lado,
O telhado de um prédio apontando para a lua...
Então, um dos sujeitos saltou sem problemas pro outro telhado,
Mas seu amigo se acovardou...
É...ele tinha medo de cair.
Aí o primeiro cara teve uma ideia.
Ele disse: “Ei! Estou com minha lanterna aqui.
Vou acendê-la sobre o vão dos prédios,
E você atravessa pelo facho de luz!”
Mas o outro sacudiu a cabeça e disse:
“O que acha que eu sou? Louco?
E se você apagar a luz quando eu estiver no meio do caminho?”92
“Vida...” “... e morte.”
“A piada...” “... e o fim da piada” 93
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A filosofia nitzscheana é tão dura
quanto atrativa. O confronto icônico entre Batman e Coringa traduz um dilema
moral que perpassa a história da humanidade e que por falta de conhecimento e
honestidade é ignorado. A indiferença perante as possibilidades limitam
horizontes e de certa maneira causam sofrimentos desnecessários. O filósofo que
não ama a sabedoria acaba por se tornar escravo dela ao invés de ser senhor com
ela: amiga dela, portanto.
Parece haver ter-se deixado de lado
preconceitos com relação a quadrinhos e heróis, tidos, com bastante freqüência,
como destinados para o público infantil exclusivamente. A pertinência do tema
da moral nesse tipo de mídia é sintoma de um cerceamento social e de uma
canalização dos instintos que encontram na arte sua possibilidade de expressão.
Com relação ao cinema: há muito se fala
de moral, ela está escancarada nas telas. Contudo, existe um tipo de tartufice
social e econômica que reduz as obras cinematográficas a meras fontes de
entretenimento e lucro, como se entre elas e o cotidiano civil existisse uma
corroboração pacífica. É preciso olhar por cima e ser honesto consigo mesmo
para ver os sintomas e a emergência de uma guerra.
7. REFERÊNCIAS
AZZARELO, Brian. Coringa. São Paulo:
Panini Comics, 2009.
BORBA, Francisco da Silva.
Melhoramentos: dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1988.
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são bons? Os quadrinhos e o anel de Giges. In: IRWIN, William (org.).
Super-heróis e a filosofia. São Paulo: Madras, 2009.
BRUBAKER, Ed. O homem que ri. São
Paulo: Panini Comics, 2005.
______________. Sombras do passado. Rio
de Janeiro: Panini Comics, 2002.
COSTA, André Augusto. Cavaleiro das
trevas: uma leitura sócio-cultural e ideológica de um mito das histórias em
quadrinhos. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2001.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a
filosofia. Rio de janeiro: Editora Rio, 1976.
FERRAZ, Maria Cristina. A genealogia e
suas vozes: o cordeiro e a ave de rapina. In: PASCHOAL, Antônio Edmilson
(org.). 120 anos de para a genealogia da moral. Ijuí: Editora Unijuí, 2008.
FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder.
23.ed. São Paulo: Edições Graal, 2007.
GALE, Bob. No man’s land. Nova York: DC Comics, 1999.
GIACÓIA, Oswaldo. Labirintos
da alma: Nietzsche e a auto-supresão da moral. Campinas: Editora da Unicamp,
1997.
________________. Moralidade e memória:
dramas do destino da alma. In: PASCHOAL, Antônio Edmilson (org.). 120 anos de
para a genealogia da moral. Ijuí: Editora Unijuí, 2008.
JENSEN, Randall. M. A promessa de
Batman. In: IRWIN, William (org.). Batman e a filosofia. São Paulo: Madras, 2008.
JONES, Bruce. Mais sombrio que a morte.
São Paulo: Panini Comics, 2006.
KANE, Bob. O homem por trás do elmo
vermelho. In: MANN, Carlos. Batman e Coringa através das décadas. São Paulo: DC
Comics, 2003.
LIEBERMAN, A.J. A carta. São Paulo:
Panini Comics, 2007.
LOEB, Jeph. O longo dia das bruxas. São
Paulo: Editora Abril S.A. Divisão Jovem, 1998.
MALLOY, Daniel P. Os melhores... amigos
(?) do mundo: Batman, Super-Homem, e a natureza da amizade. In: IRWIN, William
(org.). Batman e a filosofia. São Paulo: Madras, 2008.
MILLER, Frank. Batman: Ano Um. São
Paulo: Panini Comics, 1987.
_____________. O cavaleiro das trevas.
São Paulo: DC Comics, 1986.
MOORE, Alan. A piada mortal. São Paulo:
Panini Comics, 1988.
MORRISON, Grant. Asilo Arkham. São
Paulo: Abril Jovem, 1990.
_____________. O palhaço à meia-noite.
São Paulo: Panini Comics, 2007.
MORRIS, Matt. Batman e amigos:
Aristóteles e o círculo interno do Cavaleiro das Trevas. In: IRWIN, William
(org.). Super-heróis e a filosofia. São Paulo: Madras, 2009.
SPANAKOS, Tony. Governando Gotham. In: IRWIN, William (org.). Batman e a filosofia. São Paulo: Madras, 2008.
STARLIN, Jim. Morte em família. São
Paulo: Panini Comics, 1988.
WINICK, Judd. Ajuste de contas com a
morte. São Paulo: Panini Comics, 2006.
VIDEOS
BERKOWITZ, Stan. Superman e Batman:
Inimigos públicos. Warner Brothers, 2009.
BURTON, Tim. Batman. Warner Brothers, 1989.
NOLAN, Christopher. Batman Begins. Warner
Brothers, 2005.
___________________. Batman: O
cavaleiro das trevas. Warner Brothers, 2008.
SCHUMACHER, Joel. Batman Eternamente. Warner Brothers, 1995.
DOCUMENTÁRIO: Batman Desmascarado.
History channel, 2008.
8. ANEXOS
MORTE EM FAMÍLIA
O CAVALEIRO DAS TREVAS
1 Exceto no seriado “Batman” de 1966
estrelado por Adam West e produzido por William Dozier, no qual era apresentada
uma estética “camp”, infiel às pretensões originais de Bob Kane e Bill Finger
(COSTA, 2001). Ver contraste de personalidade entre Batman e Superman por exemplo.
2 Os anos trinta marcaram um período de
instabilidade econômica nos Estados Unidos devido à grande quebra (Crack) da
bolsa de valores de Nova York em 1929. Também se via um clima de medo na
sociedade: a II Guerra Mundial era iminente. O nacional socialista Adolf
Hitler, líder da Alemanha, invadiu, em 1939, a Polônia dando início à guerra.
3 A promessa de Batman será
exaustivamente citada. Ela será relacionada com a filosofia de Nietzsche ao
longo do terceiro capítulo, por conta de sua pertinência à constituição moral
do personagem.
4 A mnemotécnica será tratada no
segundo capítulo com base nas propostas de Nietzsche.
5 “Justice is about harmony. Revenge is about you making yourself
better. Which is why we have an impartial system”. (NOLAN, 2005)
6 Cf.: Ano Um de Frank Miller (1987) e Batman Begins de Christopher
Nolan(2005).
7 “People need dramatic examples to shake them out of apathy. And I
can‟t do that as Bruce Wayne. As a man… I‟m flash and blood. I can be ignored,
I can be destroyed. But as a symbol... As a symbol I can be incorruptible. I
can be everlasting (...) Something elemental, something terrifying. (NOLAN,
2005)
8 “Bats frighten me. It‟s time my enemies shared my dread”. (NOLAN,
2005)
9 JONES, 2006.
10 MILLER 1987.
11 “- But first, you must demonstrate your commitment to justice.
- No. I‟m no executioner.
- Your compassion is a weakness your enemies will not share.
- That‟s why it‟s so important. It separates us from them.
- You want to fight criminals? This man is a murderer.
- This man should be tried.
- By whom? Corrupt bureaucrats? Criminals mock society‟s laws. You know this better than most. (…)
- I will go back to Gotham and I will fight men like this… But I will not become an executioner.” (NOLAN, 2005)
- No. I‟m no executioner.
- Your compassion is a weakness your enemies will not share.
- That‟s why it‟s so important. It separates us from them.
- You want to fight criminals? This man is a murderer.
- This man should be tried.
- By whom? Corrupt bureaucrats? Criminals mock society‟s laws. You know this better than most. (…)
- I will go back to Gotham and I will fight men like this… But I will not become an executioner.” (NOLAN, 2005)
12 “The man who laghs”, filme de Paul Leni. É uma adaptação do romance homônimo de Victor Hugo.
(www.cineplayers.com/filme.php?id=981)
13 No baralho, a carta possui a função
de mudar de valor de acordo com as pretensões do jogador ou com as disposições
do jogo. Ela pode preencher o lugar de qualquer outra carta. (Melhoramentos,
1988)
14 “I now do what other people only dream. I make art... until someone
dies. I am the world‟s first fully-functionning homicidal artist”. (BURTON, 1989)
15 Do inglês smile que significa
“sorriso”. Trata-se de um produto químico que contrai os músculos faciais no
formato de um sorriso constante.
16 “Some men aren‟t looking for anything logical, like money. They can‟t
be bought, bullied, resoned or negociated with. Some men just wanna watch the
world burn”. (NOLAN, 2008)
17 Famoso asilo de Gotham City que abriga os “criminosos insanos” que
Batman prende.
18 Nome dado ao herói ou heroína que
assume o posto de parceiro de Batman. Mais conhecidos: Dick
Grayson, Jason Todd, Timothy Drake e Carrie Kelley.
19 BORBA, 1988, p. 335
20 “You want order in Gotham... Batman must take off his mask and turn
himself in. Oh, and everyday he doesn‟t, people will die. Starting tonight. I‟m
a man of my word!” (NOLAN, 2008)
21 Promotor de Justiça de Gotham City. Posteriormente se transformará em inimigo de
Batman, também conhecido como Duas Caras.
22 Amiga de infância de Bruce Wayne.
Bruce irá se apaixonar por ela.
23 “There‟s only minutes left. So you‟re gonna have to play my little
game if you wanna save one of them.(…) Killing is making a choice.(…) Choose
between one life or the other: You‟re friend, the district attorney, or his
blushing bride-to-be”. (NOLAN, 2008)
24 “You have nothing, nothing to threaten me with. Nothing to do with
all your strength”. (NOLAN, 2008)
25 “I had a vision of a world without Batman. The Mob ground out a
little profit and the police tried to shut them down one block at a time. And
it was so… boring. I‟ve had a change of heart. I don‟t want Mr. Reese spoiling
everything... but why should I have all the fun? Let‟s give someone else a
chance. If Coleman Reese isn‟t dead in 60 minutes… then I blow up a hospital”.
(NOLAN, 2008)
26 “Tonight, you‟re all gonna be a part of a social experiment. Through
the magic of diesel fuel and ammonium nitrate, I‟m ready right now to blow you
all sky-high. If anyone attempts to get off their boat, you all die. Each of
you has a remote to blow up the other boat. At midnight I blow you all up. If,
however, one of you presses the botton, I‟ll let that boat live. So who is it
gonna be? Harvey Dent‟s most-wanted scumbag collection or the sweet and
innocent civilians? You choose! Oh, and you might wanna decide quickly because
the people on the other boat may not be quite so noble”. (NOLAN, 2008)
27 “No one wants to get their hands dirty. Fine. I'll do it. Those men
on that boat? They made their choices. They chose to murder and steal. It
doesn‟t make any sense for us to have to die too”. (NOLAN, 2008)
28 “You don‟t wanna die... but you don‟t know how to take a life. Give
it to me. These men will kill you and take it anyway. Give it to me. You can
tell them I took it by force. Give it to me, and I'll do what you should‟ve did
10 minutes ago”. (NOLAN, 2008)
29 “Do you wanna know why I use a knife? Guns are too quick. You can‟t
savor all the little emotions. You see… in their last moments people show you
who they really are”. (NOLAN, 2008)
30 “My father was a drinker and a fiend. And one night, he goes off
crazier than usual. Mommy gets the kitchen knife to defend herself. He doesn‟t
like that... not one bit. So, me watching, he takes the knife to her, laughing
while he does it. He turns to me and he says: „why so serious?‟ He comes at me
with the knife: „why so serious?‟ He sticks the blade in my mouth: „Let‟s put a
smile on that face‟”. (NOLAN, 2008)
31 “I had a wife. She was beautiful. (…) Who tells me I worry too much.
Who tells me I ought to smile more. Who gambles and gets in deep with the
sharks. One day they carve her face. And we have no money for surgeries. She
can‟t take it. I Just wanna see her smile again. I Just want her to know that I
don‟t care about the scars. So… I stick a razor in my mouth and do this to
myself. And you know what? She can‟t stand the sight of me. She leaves. Now I
see the funny side. Now I‟m always smiling”. (NOLAN, 2008)
32 “Do I really look like a guy with a plan? You know what I am? I‟m a
dog chasing cars. I wouldn‟t know what to do with one if I caught it. (…) I
Just do things! The Mob has plans. The cops have plans. Gordon‟s got plans. You
know, they‟re schemers. Schemers trying to control their little worlds. I‟m not
a schemer. I try to show the schemers how pathetic their attempt to control
things really are”. (NOLAN, 2008)
33 “Look what I did to this city with a few drums of gas and a couple of
bullets. You know what I noticed? Nobody panics when things go „according to
plan‟. Even if the plan is horrifying. If tomorrow I tell the press that, like,
a gangbanger will get shot… or a truckload of soldiers will be blowing up…
nobody panics. Because it‟s all part of the plan. But when I say that one
little old mayor will die… well, then, everyone loses their minds. Introduce a
little anarchy... upset the stablished order... and everything becomes chaos.
I‟m an agent of chaos. Oh, and you know the thing about chaos? It‟s fair”. (NOLAN, 2008)
34 O termo origem precisa ser tomado
com cuidado para estar de acordo com uma genealogia. Segundo Michel Foucault,
Nietzsche, enquanto genealogista, rejeita o uso de Ursprung por designar uma
origem da essência, do descobrimento de algo imóvel, um princípio, um
fundamento e, por tanto, não histórico. “Termos como Entestehung ou Herkunft
marcam melhor do que Ursprung o objeto próprio da genealogia”. (FOUCAULT, 2007,
p. 20) Herkunft: proveniência. “A pesquisa da proveniência não funda, muito
pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel”. (FOUCAULT, 2007, p. 21)
Para Entestehung temos emergência, o ponto de surgimento, o qual vem à luz após
uma luta. “A emergência se produz sempre em um determinado estado das forças
(...) é portanto a entrada em cena das forças”. (FOUCAULT, 2007, pp. 23-24)
35 Conferir documento da Comissão
Teológica Internacional: Em busca de uma ética universal, novo olhar sobre a
lei natural. (2008) O documento pretende a consideração de uma solidariedade
global da qual a unidade do gênero humano seria seu fundamento.
36 Dos psicólogos ingleses,
genealogistas da moral, cujo expoente maior é Paul Rée com o livro A origem das
impressões morais de 1877.
37 Cf. ABM § 260
38 “Aber es gibt kein solches Substrat; es gibt kein “Sein” hinter dem
Tun, Wirken, Werden; “der Täter” ist zum Tun bloss hinzugedichtet – das Tun ist
alles. Observe-se que a mesma palavra foi
traduzida como “o fazer” e “a ação”. Trata-se do verbo tun (“fazer”; do, em
inglês), transformado em substantivo no texto, e por isso escrito com maiúscula
(todo verbo pode ser substantivado no alemão). Os outros verbos ai
substantivados, termos importantes em Nietzsche, são wirken – “atuar, operar,
causar um efeito” – e werden – “devir, vir a ser, tornar-se” (Paulo César de
Souza, nota 17 da primeira dissertação de Genealogia da Moral, p. 154).
39 Cf. Rm 9, 1-5.
40 Se levarmos em conta o fenômeno da
expansão marítima globalizada na qual a Igreja terá acesso aos novos
continentes explorados, firmando a catequese cristã aos nativos.
41 GIACÓIA, 2008, p. 198.
42 A vontade de nada é tratada por Nietzsche
na terceira dissertação de Genealogia da Moral, na qual o ideal ascético é
visto como aquele que dá sentido ao sofrimento do homem, mesmo que esse ideal
resulte em nada, daí a frase: “o homem preferirá ainda querer o nada a nada
querer”. (GM III § 28)
43 Cf. O Mercador de Veneza de William
Shakespeare. (Século XVI)
44À citação em francês: “Faire le mal
pour le plaisir de le faire: literalmente, „fazer o mal pelo prazer de
fazê-lo‟; segundo Colli e Montinari, trata-se de uma citação do romancista
Prosper Merimée, extraída de Lettres à une inconnue, I, 4 (Paris, 1874). (GM,
p. 156)
45 Esse “eu”, deve ser compreendido
como aquele sujeito atuante da força, acreditado pelas ovelhas como alvo de
culpabilização. Para Nietzsche este sujeito não existe. (Cf. GM I § 13)
46 Tanto o Superman quanto a Mulher
Maravilha possuem as cores azul claro e vermelho em seus uniformes que remontam
à bandeira norte americana. O uniforme do Flash é todo ele em vermelho.
47 Referimo-nos às abordagens de Batman
em Hollywood e nas campanhas publicitárias cujos fatores heróicos e fantásticos
sobressaem-se. Por exemplo: em Batman Begins, por mais que o filme tenha se
aproximado mais das abordagens feitas nas HQs, o diretor Christopher Nolan
preferiu centralizar a história na temática do medo anulando a promessa.
48 Lex Luthor: principal inimigo de Superman.
Louis Lane: a repórter do Planeta Diário, namorada e futura esposa de Clark
Kent, o Superman.
49 No cinema, é mais comum encontrar um
Batman com senso de humor, que faz piada. As HQs o mostram mais
centrado, mais sombrio.
50 - You‟re getting lost inside of this monster of yours.
- I‟m using this monster to help other people, just like my father did.
- But Thomas Wayne helping others wasn‟t about proving anything to anyone. Including himself.
- It‟s Rachel Alfred, she was dying.
- Well we both care for Rachel sir, but what you‟re doing has to be beyond that. It can‟t be personal, or you‟re just a vigilante.
- Is Fox still here?
- Yes sir.
- We need to send these people away now.
- Those are Bruce Wayne‟s guests. You have a name to maintain.
- I don‟t care about my name!
- It‟s not just your name sir. It‟s your father‟s name! And it‟s all that‟s left of him. Don‟t destroy it. (NOLAN, 2005)
- I‟m using this monster to help other people, just like my father did.
- But Thomas Wayne helping others wasn‟t about proving anything to anyone. Including himself.
- It‟s Rachel Alfred, she was dying.
- Well we both care for Rachel sir, but what you‟re doing has to be beyond that. It can‟t be personal, or you‟re just a vigilante.
- Is Fox still here?
- Yes sir.
- We need to send these people away now.
- Those are Bruce Wayne‟s guests. You have a name to maintain.
- I don‟t care about my name!
- It‟s not just your name sir. It‟s your father‟s name! And it‟s all that‟s left of him. Don‟t destroy it. (NOLAN, 2005)
51 “„Culpa‟ e „dívida‟: em alemão há
uma só palavra para as duas, Schuld. Ter presente essa identificação é essencial
para acompanhar o argumento de Nietzsche. E é bom recordar, a propósito, a
mudança introduzida na oração do „Padre Nosso‟ pela igreja Católica: „perdoai
nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores‟ deu lugar a
„perdoai nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido‟”. (Nota 04 de GM II)
52 The Wayne legacy is more than bricks and mortar. (NOLAN, 2005)
53 It‟s not who I am underneath, but what I do that defines me. (NOLAN, 2005)
54 Com relação às amizades e amores de
Batman, conferir artigo de Matt Morris Batman e amigos: Aristóteles e o círculo
interno do cavaleiro das trevas em Super Heróis e a Filosofia, 2009.
55 (NOLAN, 2005)
56 (MORRISON, 2007)
57 Den of iniquity. (GALE,
1999, p.40)
58 Liga formada pela união de heróis da
DC Comics tendo Superman, Batman e Mulher Maravilha como líderes.
59 Batman Desmascarado (Batman
Unmasked). Documentário exibido por History Channel em 2008.
60 He‟s a silent guardian, a watchful protector: a Dark Knight. (NOLAN, 2008)
61 No alemão Bestrafung designa tanto
castigo quanto pena.
62 (Justiça, 2006, apud, JENSEN, 2008,
p. 87)
63 (LIEBERMAN, 2006, p. 28)
64 (MOORE, 1988)
65 (MORRISON, 1990)
66 (MORRISON, 2007).
67 “Why so serious?”. (NOLAN, 2008)
68 (BURTON, 1989)
69 (STARLIN, 1988)
70 (MOORE, 1988)
71 (AZZARELO, 2009)
72 “I just do things”. (NOLAN, 2008)
73 NOLAN, 2008
74 Explicar a escolha do nome Gotham.
75 Cf. GM p. 08
76 Esta citação, Deleuze a retira da
obra de Nietzsche Vontade de Potência, II, § 227.
77 MILLER, 1986
78 Nome da motocicleta usada por
Batman.
79 Com relação ao caos, verificar o
final do primeiro capítulo no qual apresentamos os quatro dilemas aos quais o
Coringa submete o Batman e a cidade de Gotham. É precisamente nesta posição de
agente do caos que haverá a possibilidade de entendê-lo como uma força nobre
não consciente.
80 Whatever doesn‟t kill you simply makes you stranger. (NOLAN, 2008)
81 Vontade de Potência, II § 43
82 ABM § 259 e Vontade de Potência II §
63
83 Batman Desmascarado
84 MOORE, 2008
85 Este filme rendeu um Oscar póstumo
ao ator Heath Ledger pela interpretação do Coringa. Antes do lançamento do
filme nos cinemas, o ator australiano foi encontrado morto no quarto de um
hotel nos Estados Unidos, por conta de uma overdose de medicamentos
ansiolíticos.
86 Refere-se aos policiais.
87 Nesta HQ o público participou da
escolha do final. Eles tinham que telefonar e escolher se Robin morreria ou não.
A maioria quis a morte de Jason Todd.
88 Foi com um pé de cabra que o Coringa
surrou e matou Jason Todd em Morte em Família.
89 MORRISON, 2007.
90 NOLAN, 2005.
91 Coringa em inglês. Joke: piada. Joker:
piadista.
92 MOORE, 1988.
93 MORRISON, 2007.
Publicado por: Paulo Vinícius Souza Machado
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