Tania Navarro Swain
“O que
é uma mulher?” perguntou Simone de Beauvoir em 1949(de
Beauvoir,ed.1961:7) As evidências em geral tendem a se desconstruir quando
analisadas atentamente: o que é o feminino, o que é a feminilidade? Fêmea ou
mulher ou mulher porque fêmea? Em que ordem de evidências
instituiu-se a reprodução, a procriação enquanto marco decisivo na divisão
dos seres e em que ordem de representações definiu-se feminino e masculino em
patamares hierárquicos e assimétricos na constituição das relações sociais?
Meio século de feminismo
permitiu uma intensa produção teórica a este respeito, inspirada de alguma
forma pelo “On ne naît pas femme, on le devient” de Simone de Beauvoir.( de
Beauvoir,ed. 1966,13) Obra incontornável para o feminismo contemporâneo, a
releitura do Segundo Sexo em 1999 permite a atualização de reflexões em torno
dos papéis e dos corpos sexuados, constituídos em identidades
sexuais.
Entretanto, se as teorias
feministas continuam a desenvolver sua análise crítica do social,
debruçando-se sobre os mecanismos constitutivos da divisão binária do social,
os movimentos feministas vem perdendo seu lugar de fala, sua força subversiva
na medida em que decretou-se, no senso comum e na mídia, que o feminismo
acabou, que a igualdade foi conseguida, que as mulheres já ocupam seu lugar
ao sol.
Tenho
ouvido jovens universitárias perguntarem candidamente se é
possível ser feminista e feminina mas sobretudo
indagarem se o feminismo é ainda necessário. Simone de Beauvoir
questionava a noção de feminilidade em 1949 e 50 anos depois as imagens do
“ser mulher”, do “ser feminina” permanecem ancoradas no imaginário social
traduzidas em trejeitos e modelos normatizadores que interinam a
re-naturalização dos papéis sociais.
Quantas mulheres recusam o
feminismo receosas da assimilação às lésbicas, às mal-amadas, às feias , às
excluídas do desejo e do olhar dos homens, sem perceber que continuam a se
colocar enquanto o Outro do “verdadeiro” sujeito, o masculino,
assujeitando-se às normas da beleza, da sedução enquanto eixos norteadores de
suas vidas? Quantas mulheres percebem que se atrelam a um destino “natural” ,
o da “verdadeira mulher” , mãe e esposa, cumprindo os desígnios das
representações sociais institucionalizadas?
Um olhar mais amplo percebe,
sob o verniz de “conquistas” liberais em tempos de globalização, a
multiplicidade de experiências no espaço vivido das mulheres: a desigualdade
de salários e de oportunidades, a pobreza e o analfabetismo preferencialmente
feminino, a violência específica que sofrem em seus corpos e em seu lugar no
mundo, a eliminação sistemática de bebês-meninas em certos países, a
mutilação sexual, a banalização da prostituição, todas formas
paroxísticas da violência social contra as mulheres.
A definição do ser humano
enquanto mulher organiza práticas sociais que delimitam suas atividades e sua
importância culturais no tempo e no espaço; no Ocidente tem-se atrelado,
desde a antiguidade grega a imagens e representações negativas do feminino
constituídas em densas redes discursivas interligando filosofia, teologia,
medicina, direito, educação, senso comum, tradições orais e escritas.
A construção e desvalorização
do ser “mulher” aparece como resultado de uma essência atrelada à um corpo
deficiente, à um espírito fraco e superficial, a uma moral escorregadia e
duvidosa que pedem uma vigilância constante e a domesticação de seus
pendores para o deslize e o mal. Benoîte Groult ( Groult, 1993) publicou um
livro que reúne as pérolas distiladas ao longo do tempo sobre as mulheres,
reunindo os discursos de autoridade dos Aristóteles, Paulo, Agostinho,Tomas
de Aquino, Jeronimo, Crisóstomo e outros padres da igreja, dos Lutero, Freud,
Rousseau, Proudhon, Nietszche, Hegel, dos Baudelaire, Musset, Balzac ,
Rabelais etc, que as condenam à ignorância, à domesticidade, à submissão, ao
silêncio, à penitência e à resignação dada sua “natural” inferioridade ,
marcada em seu corpo ao nascer, pelo estigma e a maldição do feminino,
“segundo sexo”, macho mutilado e imperfeito.
Diabolizado desde a lendária
Eva, (Delumeau,1978) o feminino é, porém, resgatado em seu próprio corpo pela
fecundidade, pela possibilidade de reproduzir o humano e sobretudo, o
masculino.(Paulo, Epístola Corintíos) Em seu lado obscuro, portanto,
toda mulher deveria carregar o pecado e a fraqueza moral e em seu lado
luminoso, o dever e a alegria da maternidade.
Encontramos assim a mãe e a
prostituta, analisadas por Simone de Beauvoir, binômio inseparável da
representação social da mulher. Mãe e esposa , família, sexo domesticado,
moralidade, espaço privado, reprodução do social; prostituta, mulher
pública, liberação do vício e da devassidão latentes no feminino .
Estas categorias , que habitam
a imagem do feminino são fundadas nas premissas da heterossexualidade e nas
matrizes institucionais do patricarcado. Assim, as mulheres só realizariam
seu ser no mundo no encontro incontornável com o masculino, para dar-lhe uma
descendência e apaziguar seu desejo. A maternidade seria seu destino e sua
transcendência, a prostituição a imanência na impureza de seu sexo.
O capítulo sobre a maternidade
em Simone de Beauvoir é longo, invocando testemunhos e exemplos em sua
argumentação. O que salta aos olhos é sua dimensão política, na medida em que
desde o início se concentra em uma longa análise da questão do aborto , da
liberdade que deve acompanhar a decisão de ser mãe; aponta para a hipocrisia
social que impede o aborto e se desinteressa da criança ao nascer .(291)
Todo o início de seu discurso
sobre a maternidade é um debate sobre a liberação do aborto , as condições
psicológicas das mulheres cuja gravidez é indesejável e a necessidade do
contrôle de nascimento. Afirma que “[…] O “birth-control’ e o aborto
legalizado permitiriam à mulher assumir livrmente sua maternidade.[…]
Gravidez e maternidade são vividas de maneira muito diferentes, de acordo com
suas circuntâncias, na revolta, resignação, satisfação, entusiasmo”.(301)
Assim desnaturaliza uma questão que finalmente é moral e histórica,
inserida em uma trama de valores que se travestem em verdades definitivas .
A maternidade perde assim seu
caráter inexorável e toma em sua análise uma perspectiva de retomada de seus
corpos pelas mulheres, identificando-se na procriação compulsória uma das
chaves do poder partriarcal. De Beauvoir discute e desmistifica o desejo
de maternidade, o amor materno como partes constitutivas do feminino.
Sublinha que “[…] É preciso estar atento pois as decisões e os
sentimentos expressos pela jovem mãe não corresponde sempre à seus
desejos mais profundos.”( 301) Afastando o essencialismo que fixa o a mulher
numa classificação e num modêlo único tenta mostrar o múltiplo da experiência
concreta DAS mulheres em práticas sociais diversas.
Mostra a relação contraditória
das mulheres em relação à vontade de ser mãe em diferentes fases de suas vida
ou num misto de desejo/repulsa. Indica igualmente a força da relação
com o pai da criança: “A mulher modelará muitas vezes seus sentimentos
sobre os de seu marido se lhe tem afeto : acolherá gravidez e maternidade com
alegria ou desagrado segundo ele demonstre orgulho ou impaciência.” , afirma
(306)
Esta contextualização do amor
materno é inovadora na medida em que o discurso social torna inseparável a
imagem da “verdadeira mulher “e da mãe. A mulher torna-se sexo e
sexualidade , na medida em que seu ser só atinge a plenitude na prática
heterossexual. O corp
o inteligível da mulher se coloca em matrizes determinantes de sua ação e de sua images.
Inserida nesta trama de
representações Simone de Beauvoir, mesmo desconstruindo o essencialismo ,
nele recai ao declarar que :“É pela maternidade que a mulher cumpre
integralmente seu destino fisiológico: é sua vocação ‘natural’pois todo seu
organismo é orientado pela perpetuação da espécie”(290) Esta afirmação é
entretanto matizada, pois para ela “[…] a sociedade humana não é nunca apenas
natureza”(290). Temos assim, para a autora, uma base ‘natural’, biológica,
sobre a qual se inscreveriam os ditames sociais: “[…] diz-se de uma
mulher que se ela é coquette , ou apaixonada ou lésbica ou ambiciosa é ‘por não
ter filhos’; sua vida sexual, seus objetivos, os valores que afirma seriam
apenas substitutos de filhos. […]É uma moral social e artificial que se
esconde sob este pseudo-naturalismo. Que uma criança seja o fim supremo da
mulher, isto é uma afirmação que tem apenas o valor de um slogan
publicitário.”(338)
A mulher retoma, desta forma, a
posse de seu corpo enquanto ser humano , cujo destino deixa de ser atrelado à
seu potencial reprodutor: este passa a ser uma escolha , livre, de um sujeito
no mundo. A possibilidade aqui desatrela-se da necessidade. A construção
social dos papéis surge claramente na análise de de Beauvoir, marco
importante na quebra da imagem que fazia da maternidade a essência e a razão
de ser da mulher, núcleo de coerência do feminino. De Beauvoir considera que
“[…] não existe ‘instinto’materno: a palavra não se aplica de forma alguma à
espécie humana. A atitude da mãe é definida pelo conjunto de sua situação e
pela maneira pela qual ela se assume. E é, como vimos, extremamente variável.”(324)
As reflexões teóricas dos
feminismos que se seguiram analisaram este determinismo biológico e
identificaram na construção e na apropriação dos corpos das mulheres o
aparatus histórico e social da divisão binária da sociedade. Deste modo a
declaração do naturalismo “[…] que o status de um grupo humano, como a
ordem do mundo que assim o instaura, é programado do interior da matéria
viva”( Guillaumin,mars 1978:10) é criticada por Collete Guillaumin: “É uma
idéia singular que as ações de um grupo humano, de uma classe, são
‘naturais’: que elas são independentes das relações sociais, que elas
pré-existem à toda história, à todas condições concretas determinadas.”(
Guillaumin,mars 1978:11).
Betty Friedan, por sua vez,
analisa a mística do feminino, e o assujeitamento da mulher americana: “A
mística da mulher pretende que o único valor para uma mulher e seu único
dever residem na realização de sua feminitude.[…] que não pode desabrochar
senão na passividade sexual, na aceitação da dominação do marido e o dom
de si no amor.( Friedan, 1964: 40/41) Para esta autora, tão denegrida e
vilependiada à época, a imagem desta mulher dos anos 50/60 se resume na
definição: “profissão- do lar”. ( Friedan, 1964: 41) E acrescenta: “Um mundo
sem fronteiras se reduzia às dimensões de um lar quente e confortável”.(
Friedan, 1964: 41)
A análise de Friedan, que
traduz as mesmas inquietações de Beauvoir penetra entretanto mais
profundamente nos mecanismos representacionais que instituem o feminino
enquanto essência imutavel: “ Quando uma mística é suficientemente forte ela
incarna sua própria representação nos fatos.
Ela se alimenta nos fatos que deveriam contradize-la e se infiltra em cada
interstício da cultura[…]”.( Friedan, 1964: 61) De Beauvoir comenta , porém,
que “[…] quantidade de mulheres são intimidadas por uma moral que
mantém a seus olhos seu prestígio, mesmo se elas não podem seguí-la em sua
conduta […]. (298) Se entendemos as representações sociais como uma
forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, que nas relações
sociais institui a realidade,( Denise Jodelet,1989:36) podemos entender assim
o assujeitamento das mulheres a um saber elaborado em lugares de autoridade
que as reduz a um corpo/sexo/ matriz.
A instituição social do
casamento e a maternidade como seu corolário aparece nestas imagens
constitutivas do “ser mulher” como o locus ideal do feminino no social;
entretanto, a análise feminista vai além desta cristalização de um destino
binário do mundo, identificando a matriz heterossexual como o mecanismo
produtor de corpos “diferentes” e complementares , inexoravelmente ligados.
Assim, em 1981, Adrienne Rich
indaga se: “[…]a grande questão do feminismo […] não é também a da
heterossexualidade obrigatória para as mulheres, como meio de assegurar um
direito masculino de utilização física, economica e afetiva sobre as
mulheres? ( Rich, 1981:31)E continua “Mas a incapacidade de ver na
heterossexualidade uma instituição é da mesma ordem que a incapacidade de
admitir que o sistema economico nomeado capitalismo […] é mantido por um
conjunto de forças que compreendem tanto a violencia física quanto a falsa
consciência”. ( Rich, 1981:32)
De fato, a diferença biológica
adquire sua importância num conjunto semiótico e simbólico que tem como
referente a reprodução; no sistema representacional do patriarcado , onde o
masculino se erige como norma do humano, polo hierarquicamente superior, a
capacidade de procriação própria do feminino torna-se o próprio feminino.
Isto faz do ser humano mulher a
fêmea humana cuja existência se justifica apenas na sua capacidade de
reprodução. Guillaumin sublinha que “[…] ideologicamente as mulheres são o
sexo, inteiramente sexo e utilizadas neste sentido.[…] O sexo é a mulher, mas
ela não possui um sexo: um sexo não pode possuir a si mesmo.”( Guillaumin,
mars 1978:7) No confinamento da mulher à sua função reprodutiva, de Beauvoir
já comentava que “[…] ela engendra na generalidade de seu corpo, não na
singularidade de sua existência.”(308)
Assim, por um lado, o discurso
da ‘natureza’ faz da possibilidade de procriação a essência da mulher,
tirando-lhe ao mesmo tempo o papel de sujeito e a posse de seu corpo; por
outro, a instituição do casamento em particular e da heterossexualidade
obrigatória em geral fazem com que a mulher possa ser apropriada individual e
coletivamente pelos homens em sua força de trabalho e em sua sexualidade.
Tecida em uma densa rede
discursiva que entrelaça memória, tradição e autoridades diversas a
representação da verdadeira mulher “mãe e espôsa”, “do lar”, é ainda hoje a
imagem e o quotidiano da maioria das mulheres. A multiplicidade dos
desejos e da experiência das mulheres já apontadas por Simone de Beauvoir
tende a se fechar em tornor da homogeinização do Mesmo. O eterno feminino,
está assim presente nas tecnologias de reprodução do gênero: o senso comum, a
mídia em suas diferentes formas ( televisão, cinema, impressos) e os
discursos sociais dotados de autoridade( religioso, político, médico,
jurídico, científico).
A análise de Beauvoir em 1949 é
ainda totalmente válida em nossos dias, ao analisarmos revistas femininas
como Nova, Elle, Marie Claire: “Os jornais femininos ensinam abundantemente à
mulher ‘do lar’a arte de permanecer atraente sexualmente mesmo lavando a
louça, de continuar elegante na gravidez , de conciliar coquetterie,
maternidade e economia[…]”(342), comenta de Beauvoir.
Isto nos leva à figura da
prostituta, o lado sombrio e negativo da representação construída sobre a
mulher-mãe na historicidade discursiva ocidental. Simone de Beauvoir inicia
seu capítulo sobre a prostituição afirmando que “o casamento[…] tem como
correlato imediato, a prostituição”e cita Morgan, que, em seu evolucionismo,
assegura a existência da prostituição desde o início dos tempos.
A famosa frase “a mais antiga
profissão do mundo” enterina a id
éia da existência inexorável da prostituição ; nesta asserção é mantida no senso comum a noção da essência maléfica e viciosa da mulher, que através dos tempos se concretiza na figura da prostituta. Lombroso, conhecido médico italiano do século XIX afirmava igualmente que 15% das mulheres estavam destinadas fisiológicamente à prostituição. De Beauvoir se insurge contra esta afirmativas e declara que “ nennhuma fatalidade hereditária, nenhuma tara fisiológica pesa sobre elas ( as prostitutas)”(377)
Delimitada pela noção de
essência e permanência, a prostituição vai perdendo sua historicidade e a
própria variação semântica da palavra desaparece sob generalizações no mínimo
insustentáveis. Por exemplo, a “prostituição sagrada” na antiguidade dos
povos orientais é uma interpretação anacrônica, pois insere em valores do
presente – o sexo mercantilizado – a análise de um ritual simbólico de
renovação da vida. Mas assegura, no discurso oficial, a representação das
mulheres enquanto prostitutas desde a aurora dos tempos conhecidos.
A questão é igualmente aqui: o
que é uma prostituta? Cada época tem sua definição e seus limites que vão
desde a mulher que não é casada e tem um amante até a profissão que ela
exerce, como até pouco tempo as aeromoças. Se o termo contém uma suposta
relação mercantil, a representação da prostituta atinge todas aquelas que não
se enquadram na norma da esposa-mãe.
Beauvoir afirma que “a
prostituta é um bode expiatório; o homem descarrega nela sua torpeza e a
renega.”(376) e continua […] a prostituta não tem direitos de uma
pessoa, nela se resumem , ao mesmo tempo, todas as figuras da escravidão
feminina.” E descreve o que significa para ela a prostituição: “a baixa prostituição
é um trabalho penoso onde a mulher oprimida sexualmente e economicamente,
submetida ao arbítrio da polícia, à uma humilhante vigilância médica, aos
caprichos dos clientes, destinada aos micróbios e à doença, é realmente
submetida ao nível de uma coisa.”(389)
Afirma ainda que “a maior parte
das prostitutas estão moralmente adaptadas à sua condição; isto não significa
que elas sejam congenitalmente ou hereditariamente imorais, mas que se
sentem, com razão, integradas à uma sociedade que reclama seus serviços”.
(388) Estas frases contém um sem-némero de questões: a prostituição como o
resultado de relações sociais hierárquicas de poder; como resultado
igualmente de uma situação moral invertida; como objetificação total da
mulher nas instâncias sexual e econômica submetida à ordem masculina ;
como instituição partícipe do funcionamento do sistema patriarcal; como uma
forma trabalho. Estes indícios analíticos irão alimentar o debate feminista
posterior , como veremos adiante.
De Beauvoir analisa as possíveis
causas que levariam as mulheres à prostituição e em sua argumentação
transparece uma passividade, uma lassidão , uma indiferença ligada inclusive
à classe social; para a autora, no meio camponês “[…] há um grande número de
jovens que se deixam deflorar pelo primeiro que aparece e que acham natural
em seguida, dar-se a qualquer um.”(379) Acrescenta ainda:”[…] elas haviam
consentido com indeferença, sem sentir nenhum prazer.”(379) Os exemplos que
invoca, de ingenuidade, deixam entretanto perceber o estupro e a
violência na vida das prostitutas: “Srta.G. de Bordeaux, saindo do convento
com 18 anos, deixa-se levar por curiosidade e sem malícia à uma tenda
onde é deflorada por um desconhecido.”(379),[…] S., com 14 anos,
deflorada por um jovem que a atrai para sua casa sob o pretexto de
apresentar-lhe sua irmã”, etc,(380) , exemplifica.
A este respeito , Beauvoir
comenta : “Estas jovens que cederam passivamente, sofreram com certeza o
traumatismo do defloramento; gostariamos de saber a influencia psicológica
que esta brutal experiência teve sobre seu futuro; mas não se psicanalisa “as
putas”, elas não sabem se descrever e se escondem sob os clichês.”(380)
Meninas abandonadas pelos pais,
pelos amantes ou maridos, falta de oportunidade de trabalho, falta de capacitação,
sedução e exploração, escravidão sexual, medo, são causas arroladas por de
Beauvoir para a prostituição. Coloca portanto, sob o signo do social a
existência da prostituição num contexto de violência implícita ou explícita,
desmascarando “a mais antiga profissão do mundo”.
Entretanto, faz uma diferença
entre a prostituta e a hetaïra, da qual a “star” seria o último avatar, pois
para a autora “Sempre houve entre a prostituição e arte uma passagem incerta,
pelo fato que se associa de forma equívoca, beleza e voluptuosidade”(390) E
define: “[…] sirvo-me da palavra ‘hetaïra’ para designar todas as mulheres
que tratam, não somente seus corpos, mas sua personalidade inteira como um
capital à explorar”.(390)
Por um lado Beauvoir
desnaturaliza a prostituição e aponta para um sistema de poder/saber e
violência, que arrasta grande número de mulheres à prostituição; por outro,
analisa as vedettes como “grandes” prostitutas, que escolhem esta condição
para melhor se promover. Ou seja, é uma decisão de carreira e neste
caso, a profissão passa pelo corpo, obstáculo ou força, mas sempre
intermediário: a mulher é seu corpo.
Neste caso, diz Beauvoir :{…]
paradoxalmente, as mulheres que exploram ao extremo sua feminitude criam uma
situação quase igual à de um homem; a partir deste sexo que as dá aos machos
como objetos, elas se reencontram sujeitos.(392) E acrescenta[…]o dinheiro
tem um papel purificador[..] fazer o homem pagar[…] é transformá-lo em
instrumento[…] a posse sexual é ilusória, é ela que o possui no terreno mais
sólido da economia.”(393)
Este argumento é retomado nos
dias atuais em termos de poder: a mulher teria algo tão desejável que faria o
homem se submeter a pagar por isto, diz a revista Nova em 1999. O patrão que
paga um salário torna-se assim instrumento e posse de seu operário? Que
estranho poder é este que deteria o vendedor, tributário do comprador ? Que
tipo de raciocínio é este que seria destruído em segundos por qualquer
estudante de economia e se sustenta na análise da prostituição?
De toda maneira, o dinheiro ganho pelas prostitutas raramente ficam em suas
mãos.
Em nossos dias, o debate gira
ainda em torno destas questões: de Beauvoir conseguiu identificá-las e os
termos de sua análise , ainda que modificados, ainda estão presentes.
De fato, no estupro e no
abandono material e psicológico encontram-se raízes da prostituição; no
aliciamento para o mundo artístico inumeráveis jovens desaparecem no tráfico
de internacional de mulheres; muitas são vendidas e confinadas em bordéis; no
apelo ao consumo e na falta de oportunidades de trabalho, na ausência de
capacitação professional e mesmo de alfabetização outras passam a
vender seus corpos.
Estas são situações de fato,
levadas em conta pelo feminismo quando se debruça sobre a experiencia
singular das mulheres, colocando-se em sua defesa e proteção. Sob a égide da
legalização da prostituição encontram-se estes casos díspares e um imenso
mercado que mal disfarça seus interesses. Jean Ferdinand Laurent, relator das
Nações Unidas sobre a prostituição, em 1983, sublinha que “Ao mesmo
tempo que um fenomeno cultural tendo sua raiz nas imagens do homem e da
mulher veiculadas pela sociedade, é um mercado e muito lucrativo. A
mercadoria é aqui o prazer do homem, ou a imaginação do prazer. Esta mercadoria
est infelizmente oferecida pela intimidade do corpo da mulher ou da criança
[…] mais grave que na escravidão no sentido habitual, onde o que é alienado é
a força de trabalho e não a intimidade.”(Barry, 1984:31)
Por vários motivos, a
prostituição não pode ser assimilada a um trabalho, a uma profissão: numa
relação profes
sional o que se vende é o produto do trabalho. Na prostituição, o corpo da mulher seria seu produto? Isto não seria uma re-naturalização do sexo feminino , cujo destino é a satisfação do desejo de outrem? ”.
Confundir prostituição e
trabalho é dotá-la de uma dignidade que não possui no imaginário e na
materialidade social; é a forma falaciosa de justificar o completo
assujeitamento da mulher a seu corpo sexuado, mergulhando-a na total
imanência. É a melhor maneira de perpetuá-la igualmente, na medida em que as
próprias mulheres defenderiam sua professionalização, para escapar ao opróbio
e às perseguições legais.
Assim, descriminalizar é uma
coisa e professionalizar é algo muito diferente, pois integra ao
funcionamento do mercado de trabalho e normaliza a apropriação das mulheres
pelos homens, na expressão paroxística da matriz heterossexual. A
prostituição é portanto uma instituição social que materializa a apropriação
geral da “classe” dos homens em relação à “classe das mulheres” , (
Guillaumin, 1978) historicamente constituída nas relações sociais e que tende
a ser naturalizada .
A prostituição enquanto
“escolha” de uma “profissão” obscurece a profunda esquizofrenia do olhar
lançado sobre as prostitutas, destituídas de toda perspectiva psicológica,
capazes de cindir , no exercício da sexualidade, seu corpo e sua mente, seu
corpo e suas emoções. Evidentemente, os consultórios de psicólogos e
psicanalistas estão repletos de mulheres e homens com problemas sexuais; as
prostitutas, entretanto, não são afetadas por estas disfunções, já que se
trata de um “trabalho”, de uma “escolha”.. As imagens que são produzidas pela
televisão , pelo cinema, pela literatura, mostram os bordéis como casas de
alegre convivência, de felizes encontros, de doces recordações – para os
homens talvez- escondendo a sombria realidade de seres despojados de seu corpo
e de sua humanidade. Imersa em suas condições de produção e limitada pelos
instrumentais teóricos de que dispunha. Simone de Beauvoir pode entretanto
detectar as questões que hoje ainda fazem problema.
Na trilogia de figuras de
mulher que escolhi analisar em Simone de Beauvoir, a lésbica compõe a última
representação e neste capítulo as questões identitárias compõem o quadro que
aqui me interessa mais específicamente . A lésbica, ao contrário da mãe-
espôsa e da prostituta, aparece como a negação do patriarcado, aberração da
natureza, na recusa da heterossexualidade obrigatória, perigo maior de quebra
nas representações de mulher e homem.
Mas a análise do social , a meu
ver, deveria procurar desconstruir o evidente, o inquestionável, para fazer
surgir a infinita pluralidade do real. Assim , no domínio da sexualidade, o
que se coloca são questões , as que procuram não desvendar o ser interior,
mas desfazer sua ilusória corência.
Como se pode atribuir uma
identidade a partir de uma prática, de que forma o desejo e a sexualidade se
tornaram atributos essenciais do ser? E como ou porque esta prática ou
o desejo sexual se tornaram atributos essenciais do ser, o eixo em torno do
qual se constitui o indivíduo? A mulher heterossesual não tem necessidade
de se dizer, de se explicar, a norma sendo aqui sinônimo de ‘normal”.
A lésbica, por sua vez tem um
segredo, uma dúvida, uma porta fechada e só a exposição pública de suas
preferências pode assegurar-lhe uma identidade. Mas para dizer a si mesmo é
preciso antes ter um nome; assim a questão que se coloca em primeiro lugar, é
: o que é uma lésbica? Simone de Beauvoir iniciara um caminho similar ao
indagar: o que é uma muher?
O lesbianismo não pode ser um
definidor de identidade já que não pode nem ao menos ser definido enquanto
categoria. Tema espinhoso e quase sempre ausente nas teorias feminstas
que nos precedem, ocupadas com os problemas derivados da divisão binário do
social aparece entretanto , Na preocupações de Simone de Beauvoir. Neste ano
do Cinquantenário de sua publicação é interessante observar suas reflexões
sobre o lesbianismo que de Beauvoir desenvolve.
Neste livro pioneiro, De
Beauvoir perfura o horizonte epistemológico de sua época demonstando a
construção social das categorias mulher/homem; porta-voz autorizado de sua
época, o peso de sua legitimidade intelectual atravessou os estudos feminstas
e marcou , de alguma forma, a circularidade que liga as teorias e as
práticas. Entretanto, enreda-se nos sentidos que esclarecem e ao mesmo tempo
escondem a seus olhos as ambiguidades das representações sociais, onde
a lógica do desejo masculino é que define o lesbianismo, em um mundo
marcado pelo binário heterossexual da norma disciplinar.
O texto
de De Beauvoir sobre o lesbianismo insere-se em um sociograma dado, “este
conjunto informe, instável” que representa uma “atualização do imaginário
social em sua própria indecidabilidade.”(Robin, 1979:58)[i] Com efeito, a indecisão
argumentativa vinca este discurso que navega nas águas do senso comum, da
“autoridade” dos testemunhos mas apresenta em certos momentos uma
análise aguda das imagens construídas sobre preconceitos.
A
frase-choque do capítulo sobre o lesbianismo e que acompanha a
desnaturalização do social seria esta: “Na verdade, nenhum fator é jamais
determinante; trata-se sempre de uma escolha efetuada no coração de um
conjunto complexo e repousando sobre uma livre decisão; nenhum destino sexual
governa a vida do indivíduo; seu erotismo traduz ao contrário sua atitude
global quanto à existência.”(Beauvoir,1966:185)[ii] Muito atual esta afirmação que
separa o erotismo ( aqui entendido como sexualidade) e o sexo biológico num
quadro de apreensão do mundo; afirmação da liberdade e da escolha na
coerência da pessoa, do indivíduo face ao social. O lesbianismo seria assim
uma escolha pessoal , “existencial”.
Por
outro lado, suas considerações sobre o amor entre as mulheres, que aqui se
confunde com a sexualidade, criam um universo erótico onde o binário
desaparece em todos seus aspectos de oposição para ressaltar a interação
entre dois seres: “[…] as carícias destinam-se menos a apropriar-se da outra
do que recriar-se lentamente através dela; a separação é abolida, não há
luta, nem vitória, nem derrota; em uma mesma e exata reciprocidade cada uma é
ao mesmo tempo o sujeito e o objeto, a soberana e a escrava, a dualidade e a
cumplicidade.”(idem:184)[iii]
Neste
idílico universo, suas considerações tem o mérito de contemplar a quebra da
representação social de um mundo divido em dois, de hierarquia e assimetria
que estão ligadas à heterossexualidade obrigatória. Num sopro utópico vemos
assim se desenhar o lesbianismo como um locus de não violência e de harmonia.
Adrienne Rich contradiz esta perspectiva e suas reflexões sobre o
lesbianismo trazem o gosto amargo de um imaginário social que impregna todas
os relacionamentos com seus esquemas de luta e de dominação: “ Isto inclui
também a reprodução dos papéis, o ódio de si mesmo, a depressão, o
alcoolismo, o suicídio e a violência entre mulheres.”[iv]
O
lesbianismo aparece também como o fracasso de uma sexualidade “normal”,
último refúgio das mulheres cujo físico ingrato não atrai os homens.
“Desgraciosa, mal formada, uma mulher pode tentar compensar sua inferioridade
adquirindo qualidades viris.”, dirá de Beauvoir.( idem:171)[v] E acrescenta: “O desdém
masculino confirma a feia no sentimento de sua falta de beleza ; a arrogância
de um amante ferirá a orgulhosa. Todos os motivos de frigidez nos quais
pensamos: rancor, inveja, medo da gravidez, traumatismo provocado por um
aborto, etc, encontram-se aqui.”
[vi]Tornar-se lésbica é portanto uma saída para a inveja, a feiura, as famosas “mal amadas”que se voltam para o mesmo sexo pela impossibilidade de ter relações ‘normais” ou por frigidez pura e simples. “ Nada dá uma impressão maior de estreiteza de espírito e de mutilação que estes clans de mulheres liberadas” diz de Beauvoir.[vii]
Se em
seu discurso encontramos a escolha do lesbianismo atribuída a este tipo de
fatores , estes mesmos epítetos vão povoar as considerações sobre as
feministas durante décadas, estas “viragos”que não podem senão detestar os
homens. No afã de explicar porque uma mulher se torna lésbica, de
Beauvoir mergulha na norma da heterossexualidade. Desta forma
acrescenta: “ Da mesma forma que a mulher frígida deseja o prazer ao
mesmo tempo que o refusa, a lésbica gostaria muitas vezes de ser uma mulher
nornal e completa, mesmo não o querendo”.[viii]
O peso deste senso comum em de
Beauvoir parece espantoso, mais isto apenas demonstra o poder das
representações no discurso social, no imaginário que habita tudo o que é
dito, escrito, publicado, discutido, enunciado em um estado de sociedade
específico. O traço mais marcante deste texto p oderia ser a referencia maior
e constante ao homem, às relações heterossexuais e sua ‘normalidade”em suas
reflexões sobre os lesbianismo. “[…] muitas vêzes é a natureza das
experiencias heterossexuais que decidirá a mulher “viril” a assumir ou
repudiar seu sexo.” E igualmente: “[…] existe entre elas, como na mulher
frígida a repulsa, o rancor, a timidez, o orgulho […] ; ao seu rancor
feminino acrescenta-se um complexo de inferioridade viril […]” .
Para delimitar a imagem da
lésbica, parece necessário ancorar uma certa representação DA mulher: assim
se ela denuncia a construção da imagem da “verdadeira mulher” ”[…] produto
artificial que a civilização fabrica Com efeito, o enunciado que foi e será
ainda repetido dezenas de vezes “não se nasce mulher, torna-se”, é negado por
este gênero de argumentação na medida em que se desenha nitidamente uma
“natureza”feminina, uma feminitude que se afirma não somente em relação a
masculino, mas também em oposição äs “atitudes viris” das lésbicas. A
inversão, palavra empregada muitas vezes por de Beauvoir sublinha a noção de
uma ordem transtornada.
Esta
rápida análise do capítulo sobre o lesbianismo no Segundo Sexo , obra básica
na fundamentação do feminismo a partir da segunda metade deste século,
ilustra as dificuldades do trabalho crítico no mundo de representações
sociais que compõem a normatividade, os valores e as hierarquias a eles
assimiladas. Desmascarando a construção social dos papéis sexuados , de
Beauvoir não hesita em falar da “verdadeira mulher” face à qual
se encontram as lésbicas, cuja sexualidade seria infantil, incompleta, “[…] se
sua sensibilidade erógena não é desenvolvida, ela não deseja as carícias
masculinas”.[ix] “ […] inacabada enquanto
mulher, impotente enquanto homem seu malestar se traduz às vezes através de
psicoses.” [x]De seu lugar de fala privilegiado,
de Beauvoir interina as representações e os preconceitos sobre o lesbianismo
e reforça o biológico enquanto “natureza’ em oposição à construção dos
papéis sociais.
Mas o que hoje é
finalmente, ser lésbica?
Todas as definições criam um
campo de significações e neste espaço surgem imagens e representações
que simbolizam os sentidos delimitados. O discurso percorre caminhos de
explicitações e interdições, porém pode-se vislumbrar uma infinidade de
sentidos possíveis , silêncios constitutivos da linguagem. Quando se fala assim
de heterossexualidade, a pluralidade das vinculações sexo/gênero é ao mesmo
tempo revelada e obscurecida.
Se o
propósito é destruir as evidências [xi] e a pretensa univocidade do
sentido dado , a tarefa é multiplicar as questões , alimentar o múltiplo no
perfil das relações e da tipologia social. De fato, não se deve esquecer que
as palavras e as definições estão envoltas num halo conotativo, cujos valores
são explicitados na própria denominação. O ato de nomear é um movimento de
criação: quando se diz “lésbica” faz-se aparecer um personagem cujo
perfil obedece às características traçadas pelo momento de sua enunciação.
No
século XVI não havia uma palavra para nomear o sexo entre mulheres, que
era assim assimilado ao homossexualismo masculino: as mulheres que tinham
relações sexuais eram então chamadas de “sodomitas”.[xii] E “lesbianismo”
designa… o quê, propriamente? Relações sexuais, sentimentos , atração entre
mulheres? Todas as opções ou apenas uma ? Se o sentimento ou a atração não se
concretizam em atos pode-se falar de lesbianismo?
De
acordo com o dicionário, [xiii]“Lesbico: diz -se do amor sexual de
uma mulher a outra”. Amor ou sexo, qual destes ítens define o lesbianismo? O
sentimento ou a prática de uma certa sexualidade? O que é ser lésbica? Como
criar uma identidade individual ou de grupo em torno de uma preferência
eventual ou sistemática?
Que
classificação é esta que em sua ambiguidade atravessa o meu ser? Em que
medida tais definições não reduzem ou aniquilam o potencial subversivo
de transformação das delimitações de gênero? Sobre a homossexualidade, o
dicionário permanece ambíguo: “Homosexual: relativo a afinidades
ou atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo” .[xiv] Afinidades? Seríamos todos
homossexuais quando descobrimos afinidades com pessoas não necessariamente de
sexo oposto?
“Ser homossexual”. Porque não é
o mesmo que “ser professora” ou “ser atleta”? A profissão define um papel do
ser, do indivíduo na sociedade ; uma atividade qualquer demonstra uma
predisposição, uma inclinação. Porque o sexo definiria O SER propriamente
dito? Porque uma prática seria mais definidora que outras, em termos de
inclusão ou exclusão social? Que imaginário é este que erige a sexualidade em
árbitro da essência do humano?
O que
se nota é que no imaginário e no discurso que o explicita existem variáveis
definidoras de um espaço onde a prática intensa da sexualidade
prolifera pela ação do que Foucault chama de “dispositivo da sexualidade:
“[…] um conjunto heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões reguladoras, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições fisolóficas, morais,
filantrópicas” , que segundo sua definição [xv] “[…] funciona segundo
técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder […] com a finalidade de
“[…] proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar o corpo de modo
mais e mais detalhado, e de controlar as populações de maneira cada vez
mais global.” [xvi]
A problemática que nos
interpela aqui delimita-se em torno de questões tais como a identidade
enquanto um núcleo de coerência, a sexualidade como parâmetro de inserção
social, a norma como paradigma do comportamento forjado no imenso cadinho das
representações sociais de um mundo conjugado no masculino.
De fato, existe uma profunda
esquizofrenia social em torno do lesbianismo , seja para obscurece-lo ou
negá-lo enquanto prática corrente, seja para desqualificá-lo enquanto
mutilação do SER mulher. As conotações que acompanham o epíteto “lésbica”,
são sempre negativas: mulher-macho, paraíba,
mulher feia, mal amada, desprezada. As imagens revelam assim ou uma caricatura do homem ou uma mulher frustrada , uma mulher que foge ao paradigma da beleza e da “feminilidade” e escolhe a companhia feminina por não atrair os homens.
A
origem da palavra é conhecida de todos: de Lesbos, ilha onde morou Sapho,
considerada a décima musa grega , poeta do amor entre as mulheres.
Neste mundo grego-oriental do século VI a.c., era sacerdotisa de
Afrodite e participava dos ritos de iniciação e de renovação simbólica da
cidade. [xvii] Poderosa, louvada em sua
época ela qualidade de sua obra, esquecida ou vilependiada em seguida,
seus poemas em fragmentos atravessaram os tempos para cantar seus amores e
seu desejo pelas mulheres
No
século XVII seu nome reaparece com brilho, [xviii]. desta vez para
designar mulheres escritoras, cultas, as “Précieuses” adjetivo que se fez
logo acompanhar de “ridicules”; Madeleine de Scudéry torna-se a
primeira Sappho à época , nome que passará a designar toda mulher
que brilha no mundo das letras, mas sem as conotações sexuais
anteriores. [xix] Sappho é “liberada” de seu
lesbianismo, é “recuperada” a partir do relato de Ovídio sobre sua vida, que
a faz se suicidar por ser desprezada por um homem.[xx]
Já no
século anterior,( XVI ) os amores entre as mulheres eram considerados
destituídos de importância: não eram sexuados, pois apenas o sexo masculino ,
o falo e sua semente dariam sentido e valor ao ato sexual. Marie-Jo
Bonnet explica que “O desinteresse da religião cristã por este ramo
feminino da luxúria é coerente. Com efeito, porque condenar um prazer
insignificante? E pode-se falar mesmo de prazer quando há falta do
instrumento essencial?”[xxi] Entretanto, mulheres que se
vestissem de homem podiam ser condenadas à morte , [xxii] pois esta atitude
representava então um elemento de perturbação na ordem do social, logo,
do mundo.
No
Brasil do século XIX uma mulher com aparência e vestimentas masculinas podia
ser condenada ao hospício, como relata M.Clementina P.Cunha, pois “p…] há
pouca hesitação para a internação de mulheres, decidida por seus maridos,
pais, irmãos à menor “suspeita”ou desconforto causado por seu comportamento.”[xxiii] Crime ou loucura, a recusa
das mulheres de assumir seu papel “natural” de mães e esposas leva-as à
morte, à prisão, ao internamento, à exclusão , caso sua atitude ameace o
institucional e o normativo . O celibato é da mesma forma um sintoma da
desordem e sua punição pode ser a marginalização, além do ridículo e da
derrisão.
Para
Adrienne Rich a existência do lesbianismo é, ao mesmo tempo “[…] a
transgressão de um tabu e a rejeição de uma forma de vida obrigatória.” [xxiv] E acrescenta “ A destruição
dos traços, das memórias, das cartas atestando as realidades do lesbianismo
deve ser tomada muito a sério como um meio de preservar a heterossexualidade
compulsória […]” [xxv] De fato, perde-se o registro,
apaga-se da memória o que vem deslocar, perturbar a ordem do discurso, a
ordem do Pai.
A
existência das Amazonas, tantas vezes comentada pelos Antigos, é
sistematicamente condenada ao mito, ao domínio das impossibilidades, pois,
como sublinha Geneviève Pastre “[…] houve uma redução do campo não somente do
possível mas também do vivido e uma espécie de afunilamento na direção de uma
só passagem[…] en vez de ser estocada, a informação deixou de estar
disponível, foi eliminada e passou-se a considerar como produto da
imaginação […] o que havia sem dúvida existido[…] espelho de realidades
ricas e complexas.”[xxvi]
E o que
a história não diz…. Nunca existiu! A regra geral é o silêncio:
silenciar para melhor apagar , para melhor esquecer, para conjurar o perigo
daquelas que escapam à norma de uma heterossexualidade tão “natural” e
evidente que mesmo entre as feministas demorou muito a ser questionada.
Entretanto, como uma das pioneiras, há cerca de 20 anos Adrienne Rich
apontava para a disciplinarização sexual, denunciando a “obrigatoriedade do
heterossexualismo”, suprema divisão binária do mundo.[xxvii] Além disso, denunciava a
desvalorização do que caracterizava como um “continuum lésbico”, as relações
mais diversas e profundas entre as mulheres durante toda a vida:
amizade, maternidade, parentesco, etc.
Ti
Grace Atkinson, por sua vez, defendia o “lesbianismo político”, aquele que
uniria as mulheres na recusa do patriarcado e da dominação masculina, mesmo
que isso não implicasse em um relacionamento sexual. Para esta autora, este
tipo de lesbianismo seria essencial para a edificação de uma sociedade onde o
sexo não seria mais o eixo da vida, no plano individual ou
político. [xxviii]
O lesbianismo contemporâneo,
adotado como postura política em oposição à dominação masculina ,
encontra-se atualmente no domínio da memória, da história do início do
feminismo. Entretanto, atualmente, téoricas da importância de Judith Butler ,
de Christine Delphy, Teresa de Lauretis, não hesitam a sacudir as
evidências da heterossexualidade.
O sexo
biológico, natural? Esta questão torna-se central hoje nos estudos de gênero
, ou melhor, feministas[xxix] e diante de sua crescente
desconstrução, como reivindicar uma identidade em torno de uma categoria mal
delimitada?
De uma forma muito geral
e com a pertinência que podem conter as generalizações, o lesbianismo aparece
no movimento feminista como a radicalização extrema na recusa de
um mundo patriarcal , propondo o separatismo na vida social, a criação
de espaços de onde os valores masculinos seriam extirpados , uma utopia
moderna onde a violência e o poder não teriam lugar de existência
ou expansão.
Na recusa do domínio masculino
e da submissão feminina ligados às imposições de gênero , as comunidades
lésbicas canadenses e americans, por exemplo, excluíram os homens de
seu cotidiano. Neste sentido o questionamento da heterosexualidade aparece
como uma prática antes mesmo de retornar em força, na descontrução das
identidades.
À afirmação da categoria
“mulher” enquanto sujeito seguiu-se, nas teorizações feministas, sua
disseminação: “mulheres” no plural, levando-se em conta não apenas as
diferenças intergênero ( feminino/ masculino) mas igualmente
intragênero.( dentre as mulheres: etnia, classe, idade, aparência,
preferência sexual) .
Igualdade, diferença,
gênero , categorias problematizantes que compõem e atravessam as
diferentes teorias feministas deste século em torno do que finalemente
é este “ser mulher “, ou “mulheres”, o que é o feminino, o sexo feminino? O
lesbianismo reaparece nos anos 80 como parte da reflexão que interroga a
categoria “gênero” em seu fundamento maior: a divisão binária e “natural” da
sociedade em dois sexos, pressupondo assim a
heterosexualidade. O que se problematiza é a
desnaturalização do próprio sexo biológico como marco definidor das relações
sociais e sexuais.
Meu
argumento é que nem o sexo biológico nem o gênero nem as práticas sexuais
podem dar uma defnição do ser humano, atestando uma essência qualquer ou uma
substância estável de homogeneidade individual. Como sublinha N
icole Claude Mathieu, a ênfase desliza da diferença entre os sexos para o processo de diferenciação social dos sexos e da criação de corpos sexuados.[xxx] E assim acrescenta, “[…] é a idéia da heterogeneidade entre sexo e gênero que leva a pensar não que a diferença de sexos é ‘traduzida’pelo gênero, mas que o gênero constrói o sexo.[…] entre sexo e gênero se estabelece uma correspondência socio-lógica e política.” Para Haraway,[xxxi] os corpos são nós geradores materiais e semióticos cujas fronteiras se definem na interação social. Mas como objeto de saber, não existem enquanto tal antes de sua criação, são “projetos de fronteira” que se materializam de acordo com as práticas normativas e dão origem aos corpos sexuados, à instalação de diferenças na construção do binômio natureza/ cultura. A heterossexualidade é assim posta em questão.
Afinal, a ênfase dada à
diferença física é relativa às matrizes de sentido que presidem a
construção cultural dos gêneros, como por exemplo, a reprodução enquanto
critério máximo de “naturalização” do binômio sexo/gênero. Se por um lado, a
contestação da heterosexualidade contribui para um aprofundamento do debate
na modificação das estruturas mentais e representacionais, o próprio
lesbianismo é uma questão enquanto categoria, pois na dissolução das
identidades em frações infinitesimais , o que significa ser lésbica?
De
fato, se a prática ou a preferência sexual constrói um ser social – a lésbica
– a prática heterossexual constrói a fêmea , igualmente um ser social
cujo naturalização torna inquestionável o biológico . Mas o leque de
práticas que compõem esta categoria – a sexualidade- tem suas
polaridades enfatizadas segundo a importância que recebem da rede de sentidos
na qual estão inseridas, o que Butler chama de “matrizes de
inteligibilidade”. [xxxii]
A
apreensão do mundo e dos seres se faz assim num quadro de pensamento ordenado
por certas categorias, por imagens e representações sociais que designam os
lugares e os papéis em sua atividade incessante de constituição e criação do
real. O imaginário instituinte, tão bem descrito por Castoriadis [xxxiii] se inscreve deste modo em um
tempo e um espaço determinados e torna as categorias instituídas evidentes,
indiscutíveis.
Este é o caso do sexo e da
sexualidade, tantas vezes confundidos e imbricados cujo pregnância sobre o
social repousa somente na importância que lhes damos. Entretanto, as matrizes
de sentido que balizam nossa interpretação do mundo impedem-nos de perceber a
construção social e linguística do que consideramos inevitável, natural e
biológico.
Assim, em várias autoras
feministas como Haraway, Butler, de Lauretis, Baidrotti, entre outras, a
crítica do sexo biológico enquanto dado natural e do gênero como categoria
fundamental de análise social ganham importância e penetram o debate
geral do feminismo traduzindo a inquietação “pós-moderna” de identidades
múltiplas e disseminadas.
Isto significa que, na economia
do desejo, a homologia entre o sexo e o gênero tende a se desfazer e isto não
apenas nos quadros exóticos dos estudos antropológicos; esta quebra se faz
também sob nossos olhos na expansão de sexualidades múltiplas.
Nesta
ótica, assim como os estudos feministas se debruçavam sobre “o que é uma
mulher? podemos repetir nossa indagação primeira : o que é uma lésbica?” E as
questões continuam a se desdobrar: Mulheres que amam mulheres? Que
fazem sexo com outras mulheres? Que se sentem atraídas mas não ousam o
sexo? Que amam outras mulheres e fazem sexo com homens? A própria
bisexualidade que hoje se desvela torna irrelevante as defnições em torno de
práticas.[xxxiv]
A crítica feminista atual se
debruça sobre os quadros de pensamento que ordenam as categorias sexo/ gênero
na produção do saber e os efeitos de poder que assim são engendrados. Isto
significa que a pesquisa teórica se volta para a genealogia do quadro binário
e sua pregnância sobre o imaginário social e suas representações.
Neste sentido, o sexo biológico
é posto em questão enquanto elemento pré-discursivo, natural, pois o lugar
que lhe é dado faz parte de um sistema de sentido dado. Assim, perde sua
evidência enquanto significante geral das relações sociais, solo da divisão
binária da sociedade.
A
prática héterosessexual que Tereza de Lauretis nomeia “Sex Gender System”, seria
“[…] um construto socio-cultural, un aparelho semiótico e um sistema de
representações” [xxxv] que confere uma significação
à sexualidade em uma rede de valores: sobre o binário “natural”do sexo
biológico eleva-se um edifício de hierarquias e assimetrias,[xxxvi], um sistema simbólico fundado
sobre sua representação que adquire a evidência da enunciação repetida, da
tradição cultivada, de uma memória cuidadosamente elaborada em história.
Para de
Lauretis[xxxvii] a instituição da
heterossexualidade obrigatória chama-se heterosexismo, categoria que
fundamentaria o binário universal como base de elaboração do gênero. Para
esta autora, o heterosexismo “recupera o potencial epistemológico radical do
pensamento feminista no interior da casa do senhor.”[xxxviii]Quebrar o binário seria assim abrir
as portas de um sistema de significações que obscurecem o múltiplo em uma
coesão identitária em torno do sexo biológico. E isso nos leva à questão da
identidade, questão que anima o debate atual.
Se
deixamos de lado as “evidências”naturais que encontrarm seu sentido no
cultural, se nos desembaraçamos da essência do ser, da ilusão du sujeito
fundador de seus discursos e de suas práticas, encontramo-nos diante do
múltiplo cuja identidade delimita-se apenas pelas imposições do social. De
fato, o que é o feminino, o que é o masculino quando a categoria do gênero se
insere igualmente no processo de produção do corpo, um apparatus construído
pelo imaginário heterosexual, binário?[xxxix]
Com
efeito, Butler considera que não existe identidade de gênero atràs da
expressão do gênero; esta identidade em seu entender, seria constituída pela
expressão da qual ela deveria ser o resultado. Assim, para Butler, a
continuidade identitária “[…] não é feita de características lógicas ou
analíticas da personalidade mas socialmente instituída e mantida nas normas
de inteligibilidade”.[xl] Nesta ótica, os mecanismos de
construção de uma identidade generizada, estabelecida em bases relacionais de
sexo, gênero, prática sexual e desejo, derivam de normas reguladoras da
heterossexualidade obrigatória. A “verdade do sexo”em suma. O que acontece
com as práticas que fogem à esta verdade, que opõem o múltiplo à unidade, a
dispersão à coerência do eu dotado de gênero?
O que é
afinal o lesbianismo em uma rede de sentidos dominada pela heterossexualidade
, tal como se apresenta em grande parte das teorias feministas? Práticas
desviantes, ligadas à sexualidade? Sentimentos que se dirigem às pessoas do
mesmo sexo? Uma erótica particular? Uma escolha política, como nos primeiros tempos
do feminismo, as heterodykes? Ou práticas de recuo e de frustação diante dos
homens como aparece em de Beauvoir?
Não é
possível esquecer a frase de Wittig : “uma lésbica não é uma mulher”,[xli] definição em negativo, locus
maior de
resistência ao patriarcado. Mas esta própria designação supõe um quadro de epistemológico que coloca o lesbianismo num conjunto de práticas cuja referência axial é a sexualidade e o sexo. A visibilidade lésbica, as maneiras de se vestir , de ser diferente, de sublinhar uma singularidade não fazem senão interinar a ordem binária na medida que expõe uma diferença e a diferença supõe um modelo.
Assim, a questão espinhosa de
“sair do armário”, de “ser ou não ser”não se coloca que se a
heterossexualidade é obrigatória e que a homoliga sexo/gênero, sexualidade/
desejo define a normalidade em sua exata correspondência.e de espaços de
exclusão afirmam uma normalidade que apaga o múltiplo e naturaliza o binário.
O “apparatus”de construção do corpo enquanto significante geral do ser define
as fronteiras do sexo biológico do qual não nos desfazemos sem ameaçar a
ordem instituída.
É assim
que o gênero estabelecido socialmente na heterossexualidade constrói o sexo
biológico: não em sua materialidade, mas em sua apreensão mediatizada pelas
constelações de sentido, pelas redes de representações sociais que o
definem enquanto diferença incontornável et que se apoiam sobre “[…] sistemas
de pensamento mais amplos, ideológicos ou culturais, sobre um certo estado do
conhecimento científico, assim como sobre a condição social e a esfera da
experiência privada e afetiva dos indivíduos.”[xlii]
Os
discursos médicos, jurídicos, religiosos, educacionais bem como o senso comum
são unânimes na afirmação do sexo biológico como um dado incontestável da
natureza. Mas como sublinha Foucault, a respeito do sexo « […] deve-se
falar como de algo que não devemos simplesmente condenar ou tolerar, mas sim
gerir, inserir em sistemas de utilidade, regulamentar para o bem de todos[…]
O sexo não se julga apenas, administra-se. Está no âmbito do poder
público. » [xliii]
Assim, a norma
heterossexual , a disciplinarização da prática sexual dentro de padrões
delimitados por valores morais historicamente datados além de tornar-se
instituição normatizadora , adquire caráter de verdade, de sexo e sexualidade
verdadeiros, nucleares, de expressão máxima do ser humana .
Neste sentido, desafiar os
padrões , assumir a representação social da inversão e o nome dado às
práticas ‘desviantes” legitima de certa maneira, a norma que determina as
zonas de exclusão. Muitas vêzes, aliás, os casais de lésbicas reproduzem uma
divisão generizada de papéis, num mimetismo cujo efeito de espelho é uma
“mise en abîme” da assimetria e da hierarquia. A outra face da exposição
aberta de uma identidade “invertida” é, como analisa Butler, seu aspecto
performativo. A performance, para esta autora, das “drag queens” ou “drag
kings” desmascara os efeitos de homologia sexo/gênero, na medida em que
demonstra claramente o artifício que representa a aparência do SER mulher ou
homem, seu caráter construído socialmente e arbitráriamente. De toda
maneira, tentar traçar um perfil Da lésbica ou Das lésbicas é uma tarefa
impossível pois não há substancia à qual se prender, não há um bloco
homogêneo e monolítico de coerência, não existe experiência unívoca que possa
tomar o lugar de um referencial estável. Além disso, a própria noção de casal
não é evidente, quer seja heterossexual ou homossexual: é a sexualidade que o
define? O sentimento? A coabitação? Laços institucionais? Nenhuma resposta
positiva compreende em si a noção de casal e seu conjunto pode ser desdobrado
em séries inumeráveis.
É muito fácil cair no
essencialismo quando se reivindica uma identidade, quando se liga o ser à uma
prática, à uma atração, à um gosto, nem tão particular assim. Uma definição
já é um cerceamento, é demarcar um domínio que logo dará origem à novas
exclusões. A necessidade de se dizer, de se explicar, de se traduzir pela
sexualidade faz parte de notre quadro de pensamento, da época
pós-psicanalítca; de fato, a questão que se colocaria é: porque temos
necessidade de uma identidade senão para responder às exigências de uma
moldura binária de pensamento ?
Tomarei
aqui no que diz respeito à identidade lésbica as considerações que
Braidotti tece sobre a identidade das mulheres em geral: “[…] um
conjunto de experiencias múltiplas, complexas, potencialmente contraditórias,
atravessadas por variáveis como classe, idade, maneira de viver, preferências
sexuais, etc.” .[xliv]Acrescentaria o espaço e tempo
vividos, a linguagem e a língua e as constelações de sentido nas quais se
constróem e se auto-representam os indivíduos. Uma identidade portanto em
construção, móvel, fluida, nômade, transitória; uma identidade somente
retrospectiva, que indica onde estivemos e não estamos mais, no que Braidotti
chama a “cartografia nômade” do ser.[xlv] A identidade nômade é assim
uma posição de sujeito ocupada em uma situação, em uma sociedade dada. E
nesta ótica, eu não sou lésbica e vocês não são mulheres; de toda maneira não
existe lésbica onde não existem mulheres. Não há cópias pois os modelos se
esgotaram em sua busca de essência e de transcendência, em sua busca do ponto
nodal e definitivo de significação, pois deus se suidiciou ao modelar o homem
à sua imagem e semelhança.
Neste mundo instituído por
representações, a identidade é uma ficção e a incerteza e o paradoxo
são as conquistas maiores de nosso tempo para desmascarar as verdades de
todos os tempos.
Na disseminação da identidade,
lesbianismo e feminismo não se encontram em polos opostos ou em termos de
positivo/negativo, pois as posições de sujeito pontuais e locais serão palco
de configurações identitárias na criação de estratégias de dissolução e
resistência à violência da norma .
O que é finalmente ser
lésbica? É o exercício da sexualidade, finalmente, que torna uma
relação especial entre todas? De toda forma, a prática sexual nunca terá o
mesmo perfil para todas , nunca responderá às mesmas expectativas , com os
mesmos resultados. Quem sabe a emoção despertada possa ser um indício,
emoção restrita ou plural, num outro caminho livre de definições.
Não existem respostas. Apenas
um emaranhado de sentidos e representações que constituem o mundo:
estratégia, opção, passagem, destino, recusa , cansaço , emoção. Cada qual
seu desenho, sua fluidez. A volatização da essencia é a libertação da norma,
da disciplina, da exclusão. Em Simone de Beauvoir tivemos a inspiração e os
indícios desta démarche que na disseminação da identidade pode mudar a ordem
do mundo, a ordem do pai, a ordem do falo.
notes
[i], Régine Robin( 1979) Le
cheval blanc de Lénine : ou l’histoire autre, Bruxelles, Complexe,
pg.58.
[ii] Simone de
Beauvoir,op.cit.pg.185
[iii] idem,ib.pg.184
[iv] Adrienne Rich.
Op.cit. pg32
[v] idem,ib. pg 171
[vi] idem,ib. pg 178
[vii] idem, ib. pg.192
[viii] idem,ib. pg. 179
[ix] idem,ib. pg.171
[x] idem, ib.
[xi] Michel Foucault (1971) L’ordre du discours, Gallimard, Paris, pg.53
[xii]
ver em Ligia Belline (1987) A coisa obscura, , sodomia e inquisição no Brasil colonial, São Paulo, Ed. Brasiliense. .
[xiii] Koogan Larousse (1979)
direção de Antonio Houaiss, Ed. Larousse do Brasil, Rio de Janeiro, pg 507
[xiv] idem, ib. pg.443
[xv] Michel Foucault. (1988) A
microfísica do poder, Graal, Rio de Janeiro, pg 244
[xvi] Michel Foucault (
1976) Histoire de la sexualité, la volonté de savoir, Gallimard, Paris, pg. 140/141
[xvii]
, Marie-Jo Bonnet.( 1995) Les relations amoureuses entre
les femmes,
Paris, Ed.Odile Jacob, pg. 33
.[xviii] Ovidio, Heroïdes, XV,
Paris, Les Belles Lettres, 1965. Livro citado por Marie-Jo Bonnet, que faz
algumas citações e mostra como o sucesso de suas numerosas traduções mostra
que esta história, que serve de base biográfica para Sappho e que apaga
todas as especificidades sexuais da poeta ,cumpre nesta época uma outra
função, a de desvalorizar a mulher letrada e através ela, as Précieuses. (Bonnet :75
[xix] Marie Jo Bonnet,
op.cit. pg.77
[xx] [xx] Ovidio,
Heroïdes, XV, Paris, Les Belles Lettres, 1965. Livro citado por Marie-Jo Bonnet, que faz algumas
citações e mostra como o sucesso de suas numerosas traduções mostra que esta
história, que serve de base biográfica para Sappho e que apaga todas as
especificidades sexuais da poeta ,cumpre nesta época uma outra função, a de
desvalorizar a mulher letrada e através ela, as Précieuses. (Bonnet :75)
[xxi] Marie Jo Bonnet,
op.cit. pg.35
[xxii] idem, ibid. pg.35/36
[xxiii]
Maria Clementina Pereira. Cunha “Loucura, gênero feminino: as mulhres do
Juquery na São Paulo do início do século XX, p. 121 a 144
In Revista Brasileira de História, A mulher no espaço
público, SP, vol 9 n018 , 1989,
pg.129
[xxiv]
Adrienne Rich (1981) La contrainte à l’hétérosexualité et l’existence
lesbienne, Nouvelles Questions Féministes, Ed. Tierce, mars , n01, p.15-43, pg.32
[xxv] Idem, ibid.
[xxvi]
Geneviève Pastre. (1987) Athena ou le péril
saphique. Octaviennes, Paris, pg.44
[xxvii] Adrienne Rich,
op.cit.
[xxviii]Ti
Grace Atkinson. ( 1975) Odyssée d’une amazone, Paris, Des Femmes, pg.
155
[xxix] A crítica aos estudos de
gênero refere-se ao caráter relacional de construção social do feminino e do
masculino , obscurecendo ou deixando completamente de lado a hierarquização e
a assimetria desta configuração.
[xxx] Nicole Claude Mathieu,
op. cit.pg 256
[xxxi] Donna J. Haraway, (1991). Ciencia, Cyborgs Y Mujeres. La reinvención de la naturaleza, Valencia : Ediciones
Catedra., pg.345
[xxxii] Judith Butler,
op.cit.pg.17
[xxxiii]
Cornelius. Castoriadis (1995). A Instituição Imaginária Da
Sociedade, Rio
de Janeiro, Editora Paz e Terra.
[xxxiv]
ver em Tania Navarro Swain, Au déla du binaire : les queers et
l’éclatement du genre, in Lamoureux,Diane (org) Les
limites de l’identité sexuelle, Montréal, Ed. Remue
Ménage, 1998, 195 p. pgs135 a 150
[xxxv], Teresa De Lauretis (1987). Technologies
of gender, essays on theory, film
and fiction , Bloomington, Indiana,
Univ. Press, pg.3.
[xxxvi],Christine Delphy 1991). « Penser le genre, quels
problèmes ? » , in Hurtig, Maire Claude et
alli. Sexe Et Genre. De la hiérarchie des sexes. Paris : Ed. du CNRS, pg.91
[xxxvii] Teresa de Lauretis,
op.cit. pg.5
[xxxviii] idem,ib. pg.2
[xxxix] Donna Haraway,
op.cit. pg. 357
[xl] Judith Butler,
op.cit. pg.25
[xli] Monique Wittig (1980) La pensée straight. Questions Féministes, Paris, Ed. Tierce, février, n.7., pg.53
[xlii],Denise Jodelet (1989). Les representations sociales, un domaine en
expansion, dans Denise Jodelet (dir) Représentations sociales, Paris, PUF pg.35.
[xliii] Michel Foucault, Histoire
de la sexualité,
opc.cit. pg34/35
[xliv] Rosi. Braidotti (1994). Nomadic Subjects.Embodimentand sexual difference in contemporray feminist theory, New York : Columbia
University Press,pg.4
[xlv] idem,ibid. pg,35
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Fonte: http://www.tanianavarroswain.com.br/brasil/figuras_de_mulher_em_simone_de_b.htm
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