A 'guerra civil' na Igreja Católica que pode abalar pontificado do papa
Francisco
Visão
de Igreja mais liberal do atual pontífice tem enfrentado oposição de
conservadores, em uma batalha que extrapolou corredores do Vaticano para ser
travada em público.
Uma
guerra ideológica que há anos divide a Igreja Católica deixou os corredores do Vaticano
nesta semana para ser travada em público.
De
um lado, estão o papa Francisco e
aqueles que apoiam sua visão de uma Igreja mais liberal em relação a temas como
divórcio e homossexualidade. De outro, conservadores que criticam essa
tentativa de abertura e temem um enfraquecimento da religião.
O
embate ganhou manchetes com a divulgação, no domingo passado, de uma carta em
que o ex-núncio apostólico na capital americana, Carlo Maria Viganò, acusa Francisco de ter acobertado
crimes sexuais cometidos pelo ex-arcebispo de Washington,
Theodore McCarrick, e pede a renúncia do papa.
Papa Francisco. (Foto: EPA)
O documento de 11 páginas, publicado por sites religiosos conservadores
nos Estados Unidos, não oferece provas, mas chega em um momento em que fiéis do
mundo inteiro estão abalados por sucessivas revelações de abusos sexuais contra
crianças cometidos durante décadas por membros do clero em vários países.
A carta foi divulgada enquanto o papa visitava a Irlanda, um dos países
afetados. Francisco se reuniu com vítimas e pediu perdão por abusos cometidos
por membros da Igreja, ritual repetido em outras viagens. Mas muitos católicos
lamentam a falta de medidas concretas e de uma resposta rápida aos escândalos,
e alguns chegaram a abandonar a Igreja.
Nesse momento de vulnerabilidade, a sugestão de que
o papa seria cúmplice dos abusos pode abalar seu pontificado e expôs as
divisões na alta hierarquia da Igreja Católica.
"Essas acusações se tornaram parte de um embate ideológico muito
maior. Um dos lados vê Francisco como o papa que finalmente abriu a Igreja a um
entendimento mais realista sobre sexualidade, casamento,
homossexualidade", disse à BBC News Brasil o professor de teologia e estudos
religiosos Massimo Faggioli, da Universidade Villanova, na Pensilvânia
"O outro lado acredita que isso significa o fim da Igreja, e está
disposto a fazer qualquer coisa para impedir isso. Mesmo que seja o maior tabu,
que é pressionar um papa a renunciar, o que não acontece há seis séculos",
ressalta, referindo-se à renúncia de Gregório 7º, em 1415.
Oposição
Desde que foi eleito, em março de 2013, o papa é alvo de oposição por
parte da ala conservadora da Igreja, tanto dentro do Vaticano quanto entre acadêmicos,
que rejeitam o que consideram um afastamento da doutrina e tentam impedir
reformas. No ano passado, dezenas de teólogos chegaram a assinar uma carta em
que acusam Francisco de divulgar heresias na exortação apostólica sobre a
família Amoris Laetitia, de 2016.
O documento, que é uma tentativa de abrir novas portas para católicos
divorciados e tornar a Igreja mais tolerante com questões relacionadas à
família, representa um sinal claro de dissidência, que reflete o
descontentamento dos setores mais conservadores da instituição.
Apesar de não ter adotado mudanças concretas profundas nos ensinamentos
da Igreja, o papa defende uma postura menos rígida e em sintonia com atitudes
modernas em relação a fiéis que se afastaram da doutrina, demonstrando tolerância
a homossexuais e permitindo que católicos divorciados ou casados novamente
recebam a comunhão.
Cardeal Theodore McCarrick com Papa Francisco (Foto: Jonathan Newton/The
Washington Post via AP)
Francisco também deu destaque a questões sociais, incentivando os fiéis
a cuidar dos pobres, acolher imigrantes e refugiados e combater mudanças
climáticas, e rejeitou alguns privilégios do cargo, optando, por exemplo, por
não morar no Palácio Apostólico.
Em sua carta, Viganò não apenas acusa Francisco de acobertamento, mas
tenta conectar as críticas que conservadores fazem ao papa, especialmente à
postura de aceitação de gays - em referência a uma entrevista dada após viagem
ao Brasil, em 2013, quando o pontífice disse "Se um gay busca Deus, quem
sou eu para julgar" -, aos escândalos de abusos sexuais, afirmando que
"redes homossexuais" dentro da hierarquia da Igreja são cúmplices na
"conspiração de silêncio" que permitiu que os abusos praticados por
McCarrick e outros continuassem.
A sugestão de que homossexualidade e abusos estejam relacionados é
amplamente rejeitada por especialistas, mas ainda persiste em algumas alas da
Igreja. Apesar de muitos dos abusos terem ocorrido há várias décadas, durante
os pontificados dos antecessores de Francisco, opositores ligam a crise à
incapacidade do papa de manter sob controle a homossexualidade entre o clero.
McCarrick, que liderou a arquidiocese de Washington de 2001 a 2006,
durante os pontificados de João Paulo 2º e Bento 16, renunciou ao posto de
cardeal em julho, após acusações de que teria assediado seminaristas adultos e
abusado de um menino durante anos. Ele diz que é inocente.
McCarrick havia deixado a arquidiocese ao completar 75 anos, idade em
que os bispos católicos são obrigados a apresentar sua renúncia - que pode ser
aceita pelo papa ou não -, mas permaneceu no Colégio dos Cardeais, que
aconselha o pontífice.
Viganò alega que vários membros do Vaticano sabiam da conduta imprópria
do cardeal havia anos. Segundo a carta, depois que McCarrick deixou a arquidiocese
em Washington, Bento 16 havia proibido que ele, que ainda era cardeal,
oficiasse missas e vivesse em um seminário, entre outras restrições. Mas
Francisco, apesar de saber das acusações, teria levantado essas restrições e
até permitido que o cardeal ajudasse na escolha de bispos americanos
Os católicos americanos ainda tentam digerir as revelações divulgadas no
início de agosto em um relatório da Suprema Corte do Estado na Pensilvânia. O
documento acusa pelo menos 300 padres de terem abusado de mais de mil crianças
ao longo de 70 anos e líderes da Igreja de terem acobertado os crimes.
Reações
Apoiadores do papa e alguns sobreviventes de abusos questionam a
credibilidade das alegações, apresentadas sem evidências, e acusam Viganò de
usar o sofrimento das vítimas para avançar sua agenda política e uma vingança
pessoal contra Francisco.
Alguns observam que McCarrick apareceu em vários eventos, inclusive ao
lado de Bento, no período em que supostamente estaria sob sanções, e lembram
que foi Francisco, ao contrário de seus antecessores, que forçou o cardeal a
renunciar.
Também ressaltam o fato de os principais nomes criticados na carta serem
liberais e aliados do papa, o que levantaria suspeitas de que as acusações têm
motivação ideológica.
"Esse documento não tem o objetivo de proteger crianças, e sim
atacar o papa e qualquer um associado a ele", disse à BBC News Brasil o
pesquisador de estudos católicos Michael Sean Winters, colunista do jornal
National Catholic Reporter.
Mas alguns bispos conservadores defenderam o ex-núncio como um homem de princípios.
Um deles, Joseph Strickland, de Tyler, no Texas, orientou padres de sua diocese
a ler durante a missa do último domingo uma declaração em que afirma acreditar
nas alegações.
Um dos principais opositores do papa, o cardeal americano Raymond Burke,
ex-arcebispo de St. Louis, disse em entrevista à imprensa italiana que, caso as
alegações sejam comprovadas, "sanções apropriadas" devem ser
aplicadas.
Histórico de polêmicas
Viganò tem um histórico de polêmicas. O italiano de 77 anos trabalhou em
missões do Vaticano no Iraque e no Reino Unido, foi núncio apostólico na
Nigéria e ocupou altos cargos na Cúria Romana, mas nunca foi promovido a
cardeal.
Ele próprio já foi acusado de tentar acabar com uma investigação sobre a
conduta sexual de um ex-arcebispo em 2014, segundo documentos relacionados à
arquidiocese de St. Paul-Minneapolis. Também foi personagem no escândalo
"Vatileaks", em 2012, em que documentos do Vaticano foram vazados,
entre ele cartas em que Viganò sugeria que sua transferência para Washington,
em 2011, estaria relacionada aos seus esforços contra a corrupção na Santa Sé.
Em 2015, durante a visita de Francisco aos Estados Unidos, Viganò
organizou um encontro surpresa entre o papa e uma funcionária pública que havia
se recusado a emitir licenças de casamento para casais do mesmo sexo alegando
motivos religiosos. O encontro foi visto como um desafio à mensagem de inclusão
do papa e obrigou o Vaticano a divulgar uma declaração se distanciando da
funcionária. Pouco tempo depois, Francisco substituiu Viganò.
Em sua temporada em Washington, Viganò cultivou relações com setores
católicos conservadores críticos do papa, um grupo que Winters descreve omo
"pequeno, mas muito bem organizado e muito bem financiado".
Segundo Faggioli, desde o início do pontificado de Francisco, círculos
conservadores do catolicismo americano deixaram claro que não gostavam do papa
e de suas tentativas de reforma. Ele observa ainda que poucos bispos nos
Estados Unidos defenderam o papa após a publicação da carta. "A maioria
dos bispos está esperando (para de posicionar)", acredita.
Por enquanto, o papa tem mantido silêncio sobre as
acusações de Viganò, limitando-se a dizer que o documento "fala por si
próprio". Segundo analistas, o papa não quer dar mais visibilidade a seus
críticos.
Mas no avião ao voltar da Irlanda, ao responder a uma pergunta sobre o
que pais deveriam dizer a um filho ou filha que revela ser gay, o papa disse:
"Não condene. Dialogue, entenda."
Faggioli diz acreditar que a carta de Viganò tem inconsistências e
"buracos", mas mesmo assim considera fundamental que o papa e outros
líderes católicos respondam a algumas questões, especialmente sobre McCarrick.
"Os católicos americanos, tanto liberais quanto conservadores,
querem saber como foi possível que essa pessoa se tornasse um dos mais
importantes líderes da Igreja enquanto outros sabiam (dos abusos). Como isso
pode acontecer?"
Fonte: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/09/02/a-guerra-civil-na-igreja-catolica-que-pode-abalar-pontificado-do-papa-francisco.ghtml
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