Viaje para a Ásia: o Budismo Mahayana
Para nós brasileiros, a Ásia é um lugar distante geograficamente e culturalmente. Logo, quando nós viajamos para lá, tentamos visitar o maior número possível de países. Saindo da Europa em direção ao Extremo Oriente, até o meio do caminho, encontramos os países do Mundo Muçulmano, mas depois a paisagem é dominada por países dedicados ao Budismo, nas suas diversas formas. Camboja, Tailândia, China, Coréia e Japão, entre outros, são todos eles países majoritariamente budistas, embora sigam ramos diferentes dessa religião.
Contudo, viajando entre esses lugares, verifica-se uma gigantesca diversidade entre as grandes correntes do Budismo. Na realidade, parecem religiões inteiramente distintas, muito mais diferentes entre si do que o islamismo sunita do xiita, ou do cristianismo católico e ortodoxo.
Tal distinção vai além das aparências. Já discutimos em outro post (clique aqui para lê-lo) sobre os ensinamentos básicos do budismo, comum a todas as suas correntes. Hoje conversaremos sobre a principal corrente do Budismo, o Budismo Mahayana, ou Grande Veículo, que é a forma mais praticada em países como China, Japão, Coréia e Vietnã.
Então, viaje com a gente para o misterioso Mundo do Budismo, e descubra uma sabedoria que tem o potencial não só de tornar as suas viagens mais interessantes, mas também de enriquecer o seu espírito. Vamos lá!
O Individualismo do Budismo Hinayana
O Budismo tradicional, também chamado de Hinayana (Pequeno Veículo, em sânscrito), tem, como ideia principal, o processo de auto-aperfeiçoamento do ser humano, seguindo o caminho ensinado pelo Buda, a fim de alcançar o Nirvana. Tal procedimento e objetivo são tidos como projetos individuais. Ou seja, cada praticante busca a sua própria salvação, e quando alcança esse objetivo, tornava-se um arhat, uma pessoa que alcançou o nirvana seguindo o caminho aberto pelo Buda.
Hoje esse Budismo tradicional sobrevive no Budismo Theravada, praticado, por exemplo, na Tailândia (já falamos sobre a Tailândia aqui e aqui), Sri Lanka, Laos e Myanmar.
Outra característica do Budismo Hinayana é a sua ausência de uma cosmologia estabelecida. O budista acredita em carma e no círculo de reencarnações (samsara, em sânscrito), assim como as demais religiões surgidas no norte da Índia no Século V a.C., como o hinduísmo e o jainismo. No entanto, para além disso, o Budismo tradicional não trata da natureza de Deus ou dos deuses, das regras para a sua respetiva devoção, ou ainda da origem e do funcionamento do cosmos. Todas essas questões são lugares comuns em quase todas as religiões, mas estão ausentes do Budismo tradicional. Tal particularidade faz com que muitos considerem o Budismo como algo mais próximo de uma filosofia ou uma sabedoria espiritual, do que uma religião.
O Budismo Mahayana e o Caminho do Bodisatva
Já o Budismo Mahayana centra-se na ideia do bodisatva, ou Buda futuro. O bodisatva é alguém que alcança um alto grau de iluminação, mas se recusa a dar o passo definitivo que o conduziria ao nirvana, a absoluta aniquilação. Ele escolhe permanecer no círculo de reencarnações, para com a sua grande sabedoria ajudar outras pessoas a alcançar uma maior iluminação espiritual, e, no extremo, o nirvana. Só quando toda a humanidade tiver esse grau de desenvolvimento, o bodisatva se permitirá desaparecer no nirvana. Por isso, essa corrente possui o nome de Mahayana, pois considera o Budismo como um Grande Veículo para que toda a humanidade alcance a salvação, a libertação do círculo de reencarnações. O ideal do bodisatva, então, contrasta fortemente com o do arhat, que busca a salvação apenas para si, por considerar que tal conquista pode ser obtida apenas pelo esforço individual.
O bodisatva desenvolve duas principais virtudes: a sabedoria que o conduz até as portas do nirvana (prajña, em sânscrito); e a compaixão em servir ao interesse de outros seres humanos (karuna, em sânscrito). O elemento mais importante do caminho do bodisatva é a chamada “mente do despertar” (bodhicitta, em sânscrito), que mescla as ideias de sabedoria e compaixão, como ilustra bem a expressão: “que eu alcance a iluminação (a condição de buda) em benefício de outras pessoas”.
E mais, enquanto no Budismo tradicional, apenas os monges e monjas podem alcançar o nirvana, no Mahayana, a salvação está aberta para todos, inclusive para os leigos, também independentemente do sexo. É essa abertura a todos e a possibilidade da intervenção do bodisatva para nos ajudar nas dificuldades do dia-a-dia que tornou o Budismo Mahayana tão popular.
O Sincretismo e a Cosmologia do Budismo Mahayana
O Budismo Mahayana não constitui um todo homogêneo, mas sim um grande grupo de tradições, muito diversas entre si, que possuem um conjunto de crenças em comum. Se o Budismo fosse uma árvore, o Hinayana e o Mahayana seriam os principais ramos (embora outros existam, como o Tantra e o Budismo Tibetano), e cada um deles, por sua vez, daria origem a ramos cada vez menores, até uma grande e frondosa árvore se formar.
No contexto do Budismo, nunca existiu algo como a Igreja Católica ou mesmo o Califa, para promover o mínimo de homogeneização acerca dos dogmas da religião. Assim, por cada lugar para onde o budismo foi trazido, ele assumiu uma forma sincrética, assimilando elementos das tradições locais.
Esse sincretismo fica evidente na tradição de budas celestiais. O buda celestial seria um bodisatva que alcançou uma fase muito avançada no caminho da iluminação, e, por conta disso, adquiriu imensos poderes sobrenaturais e passou a residir em outro plano de existência, algo como o Paraíso cristão ou muçulmano. Seria um super bodisatva. Eles funcionariam como os deuses no hinduísmo e em outras religiões similares, embora os budistas defendam que os budas celestiais são muito superiores a estes em poder e compreensão da realidade.
Os budas celestiais são o centro de devoção de muitas correntes do Budismo Mahayana.
Por exemplo, os seguidores Budismo da Terra Pura (Ching-t’u, em chinês), surgido na China, mas muito forte no Japão e no Ocidente, são muito devotos do buda celestial chamado de Amitabha (Luz Infinita, em Sânscrito). Eles acreditam que se você tiver fé verdadeira fé na compaixão de Amithaba, entregar-se inteiramente a ele, quando morrer, reencarnará na Terra Pura, um lugar muito diferente do nosso mundo, onde é verdadeiramente possível alcançar a salvação. Ou seja, só a fé salva.
É interessante as transformações pelas quais uma religião pode passar. O Budismo nasceu como um caminho que cada indivíduo deve percorrer sozinho para alcançar a sua própria salvação. No Budismo da Terra Pura, a salvação é retirada inteiramente das mãos do indivíduo, que depende de Amitabha para ser transportado para a Terra Pura, único lugar onde é possível alcançar o nirvana. Essa corrente tem muito mais a ver com o Luteranismo ou o Calvinismo (e sua ideia de salvação exclusivamente pela fé, e não pelas boas ações), do que com o individualismo do Budismo Theravada.
O Vazio
Uma das principais inovações do Budismo Mahayana é a ideia de vazio.
O Budismo tradicional nega a existência do “Eu” como nós normalmente entendemos. O Buda argumenta que, se esse “Eu” efetivamente existisse, ele seria permanente. Todavia, nenhum dos chamados fenômenos psicológicos seria permanente. Logo, nós seríamos, na realidade, um conjunto de processos, de fenômenos temporários, que desaparecem de momento a momento. Porém, a sucessão desses fenômenos cria uma ilusão de continuidade. É como um rio que flui constantemente, e que parece ser sempre o mesmo rio, mas na verdade é sempre um rio diferente.
O Budismo identifica cinco agregados que constituiriam o “Eu”: o corpo, as sensações, as percepções, as formações mentais e a consciência, todas elas impertinentes. Clique aqui se quiser saber mais sobre cada uma delas, bem como sobre práticas meditativas relacionadas a cada uma.
O Budismo Mahayana dá um passo adiante. Ele defende que até mesmo esses fenômenos parciais (os chamados agregados do “Eu”) não existem. A natureza de todas as coisas seria o Vazio (shunyata, em sânscrito). Nenhuma coisa tem identidade própria e tem realidade em si mesma.
Da ideia de Vazio decorre a doutrina da Não-Dualidade. Se nada tem uma identidade própria, não existe diferença entre eu e o próximo, ou entre o ciclo de reencarnações e o nirvana, ou entre o autor deste texto e o Buda. Somente a natureza existe, e ela que gera tudo que há de forma interdependente. As coisas individualmente consideradas são meras abstrações, ou mais precisamente miragens.
Isso explica porque a virtude da compaixão é tão central no caminho para a iluminação apresentado pelo Budismo Mahayana. Veja ainda que a figura central dessa concepção é a natureza. Não há aqui qualquer referência à figura de um deus criador, que continua a ser irrelevante no Budismo, mesmo com a proliferação de bodisatvas e budas celestiais.
Além disso, a ideia de individualidade das coisas está estritamente relacionada com a ideia de individualidade do “Eu”, e, por consequência, é um importante obstáculo para o objetivo definitivo de todo budista: alcançar o nirvana. O “Eu” percebe as coisas, o “Eu” nomeia as coisas, o “Eu” quer se apropriar das coisas. Por fim, a própria ideia de Vazio deve ser desconstruída, pois ela também não possui identidade própria.
A noção de Vazio é muitas vezes mal-compreendida pelos ocidentais. Ela não traz uma visão niilista do mundo, em que nada tem valor. Pelo contrário, ela afirma que nós somente encontraremos o sentido do mundo na conexão que existe entre todas as coisas, ou seja, na harmonia com o mundo em si mesmo. O “Eu” é negado, para, em seguida ser reafirmado, como uma parcela de um grande mosaico que é o mundo da vida. É o que o Budismo Mahayana chama de o “Grande Retorno”, e é bem exemplificado pelo seguinte aforismo Zen:
Para uma pessoa comum, o prato é o prato, e o chá é o chá (primeira etapa).
Para um estudioso do Zen, o prato não é o prato, e o chá não é o chá (segunda etapa).
Para uma pessoa que alcançou a iluminação, o prato é o prato, e o chá, o chá (terceira etapa).
Assim, para o Budismo Mahayana, o nirvana não seria uma aniquilação do “Eu”, mas sim uma forma iluminada de estar no mundo. Afinal, para a Doutrina da Não-Dualidade, não existe diferença entre samsara e nirvana.
Uma mensagem para povos diversos
Essa é só uma amostra da diversidade que existe dentro do Budismo Mahayana. E essa variedade não é um problema do ponto de vista budista. Isso porque o budismo é um conhecimento prático, voltado para mitigar o sofrimento das pessoas e do mundo. Se adaptar as lições do Buda às figuras e personagens que já existem na tradição local torna mais fácil a transmissão dessa mensagem, os missionários budistas não tem qualquer problema com isso. Foi o que aconteceu na China, onde o budismo foi fortemente influenciado pela linguagem do Daoísmo, ou mesmo no Tibete, com resultados únicos, mas essa é uma conversa para outro dia.
Claro que, para muitas pessoas, no Ocidente ou no Oriente, a religião infelizmente se resume à prática dos seus rituais e seus aspectos externos, como rezar um rosário (invenção budista, que depois veio para o Ocidente) ou acender uma vela. Porém, a mensagem mais profunda dessas religiões, muitas vezes, está gravada na própria cultura do local, e faz parte do modo de ser das pessoas mesmo que de forma inconsciente. Assim, entender as diferentes religiões é indispensável para compreender as diferentes culturas que você vai visitar em suas viagens.
É essa, ao menos, a nossa incrível experiência! Curtiu? Compartilha com os amigos!
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