A geração que quer
“transformar isto tudo”
CATARINA
FERNANDES MARTINS (texto) e NUNO FERREIRA SANTOS (fotografia)
13/02/2016 - 22:21
Conhecidos como nativos digitais, ignoram o que é
viver sem Internet. Esta é a geração do 11 de Setembro, do aquecimento global,
da crise financeira e da consciência de que o futuro não trará a prosperidade
de que os pais gozaram. Vivem colados ao écrã, sim, mas com os pés assentes na
terra.
Inês do Canto, 16 anos,
diz já ter sentido os efeitos de ter nascido num mundo onde quase tudo se faz
com um dedo a deslizar pelo écrã. Sabe que quer ser música e desde cedo que
toca saxofone no Hot Club. Mas, numa determinada altura, os progressos na prática
do instrumento não se faziam notar. Inês encontrou dificuldades e desistiu.
Agora, com a distância analítica de ter aprendido com um erro, pensa ter
compreendido o que aconteceu: “Somos uma geração muito rápida, estamos
habituados a ter tudo muito rápido, com a Internet. Quando não temos tudo
rapidamente, desistimos ou ficamos desmotivados”.
Inês voltou ao saxofone,
determinada a apostar numa carreira no mundo da música e consciente de que o
jogo que quer jogar se faz no longo prazo. É quase como correr uma maratona —
não há gratificações instantâneas, mas um plano estratégico de doseamento de
esforço e de intensidade para chegar à meta. “Um dos traços mais vincados da
minha maneira de ser é pensar sempre no longo prazo”. E nesse seu plano
estratégico, a Internet, utilizada em moderação e com um propósito bem
definido, é uma ferramenta valiosa. “Uso as redes sociais para divulgar o meu
trabalho. Sei que há muita gente a querer o mesmo que eu, sei que há muita
porcaria que é preciso filtrar, tenho algum receio, mas sei que agora, mais do
que nunca, é mais fácil ser empreendedora”, diz.
Inês demonstra uma
consciência que parece não colar à imagem generalizada que é feita dos jovens e
adolescentes da Geração Z, a designação mais utilizada para referir o grupo de
crianças, adolescentes e jovens nascidos entre 1994 e 2012, no momento de
afirmação e consolidação da Internet. Depois dos Baby Boomers, da Geração X e Y
(também conhecida por Milénio), chegou a vez da Geração Z. E em
Portugal são praticamente dois milhões.
Facilmente se olha para estes jovens como seres fúteis,
vazios e narcisistas, incapazes de pensar além da selfie,
da aprovação nas redes sociais. Tememos o aumento do défice de atenção nas
crianças pela sua incapacidade de largar o telemóvel, a televisão, os
videojogos, o computador — tudo ao mesmo tempo, respondendo a uma velocidade
estonteante aos estímulos sociais que chegam de todas as frentes. Lemos relatos
de novas formas de pressão dos pares, de humilhações invasivas, disponíveis
para o mundo inteiro assistir.
E, tal como aconteceu
com as gerações anteriores (cada uma considerada mais narcisista e vazia do que
aquelas que a antecederam), os mais velhos receiam que os jovens e as crianças
de hoje não estejam à altura de herdar o desafio e acabem por transformar o
mundo para pior.
Os miúdos da chamada
Geração Z não conhecem outro mundo e outro modelo de sociedade que não aquele
que a Internet uniu e moldou. Mais do que isso, esta geração cresceu a explorar a Internet nos dispositivos móveis, gozando de um
acesso quase imediato a tudo e a todos.
Mas a velocidade que
experimentam todos os dias, essa sensação quase vertiginosa de que tudo está em
permanente mudança, não é característica dos grupos de amigos e das esferas
privadas da Geração Z. Nestes vinte anos, não foi só a tecnologia que mudou e
evoluiu. A economia e a política mundial atravessam transformações profundas,
com o 11 de Setembro, que deu início a uma nova ordem mundial marcada pelo
terrorismo islâmico, a crise financeira de 2007 e o aquecimento global. Neste
espaço de tempo, muitos países do mundo ocidental debateram causas
progressistas como o casamento gay e a adopção por casais homossexuais.
Recentemente, o feminismo parece estar de novo na moda, com uma roupagem mais
moderna e protagonistas que, muitas vezes, já são jovens Z, com uma linguagem e
formas de actuação próprias das redes sociais.
Os membros mais velhos
da Geração Z serão, provavelmente, novos demais para se lembrarem do “tempo das
vacas gordas” e da sensação de “fim da História” que se seguiu ao colapso da URSS e à consequente década de prosperidade
dos anos 90, em que o mundo ocidental seguiu a liderança unipolar dos Estados Unidos e se iludiu com a Pax Americana. A geração anterior assistiu,
a meio, às mudanças das regras do jogo, foi obrigada a redefinir expectativas,
sentiu-se enganada e desiludida.
Pelo contrário, o
habitat natural da Geração Z é também o do desemprego e da precariedade. As
palavras chave deste período: crise, défice, austeridade. Medo. Os remédios não
são milagrosos — porque já ninguém acredita em soluções que durem para sempre —
e há que estar preparado para tudo, ser consciente, ter um plano B, C, D.
Sonhar com os pés assentes na terra. Pensar no longo prazo, como Inês.
Um relatório da agência
de publicidade norte-americana Sparks & Honey concluiu que a Geração z, em
comparação com a Milénio, é mais “madura” e tem uma vontade maior de “mudar o
mundo”. Segundo a Sparks & Honey, 60% dos jovens Z acredita mesmo que vai
deixar uma marca no mundo, por oposição a 39% de Milénios.
Qual é o impacto de
todas estas transformações na formação dos jovens da Geração Z? Que
responsabilidades acrescidas têm pais e professores na educação de crianças que
parecem preferir o mundo virtual ao contacto com os outros? Teremos de pensar
num novo conjunto de direitos — digitais — para proteger a privacidade desta
geração? Que planos conseguem traçar para o futuro?
Avós
no Facebook, jovens em fuga
Alice Magalhães, 12
anos, Mafalda Portugal, 12 anos, Inês Capela, 12 anos e Sarah Lopez, 13 anos,
estão ligadas sempre que quiserem. A amizade, cumplicidade e a linguagem “só
das quatro” que dizem ter desenvolve-se num espaço privado que não é o da escola,
nem o das festas de aniversário ou dos trabalhos de grupo. Esse espaço não
obedece a horários, não necessita de um lugar físico e não está dependente da
disponibilidade dos pais nem sujeito às suas regras ou à sua linguagem. Esse
espaço é o das redes sociais como o Instagram, o WhatsApp, oTwitter, o Snapchat, ou o Facebook, mesmo que,
teoricamente, estas redes não admitam membros com menos de 13 anos (no final de
2015, a Comissão Europeia propôs que os menores de 16 anos ficassem interditos de utilizar o Facebook, o Instagram ou
o Twitter, caso não tenham autorização parental para o fazer).
É pela naturalidade com que
se movimentam nestas redes que a Geração Z recebeu também o nome de Geração
Aplicação. À excepção de Sarah, proibida pela mãe de aderir à rede criada por
Mark Zuckerberg, todas as outras arranjaram uma forma de contornar a regra. “A
minha tia criou por mim e pôs lá a idade dela”, diz Alice, que está no Facebook
há dois anos. Inês estreou-se na rede com oito anos, “com a ajuda da
irmã”.
Mas o Facebook está a deixar de interessar aos jovens da
Geração Z. Em 2013, uma adolescente de 13 anos, Ruby Karp, escreveu
um texto no site norte-americano Mashable que se tornou viral por ter explicado
aos adultos que os seus amigos e colegas estão a deixar o Facebook, que agora é
apenas “o sítio onde os pais estão”. A chegada dos familiares ao Facebook leva
alguns destes jovens a migrar para outras redes onde os pais ainda não
entraram. “Já vamos na fase em que os avós estão no Facebook”, diz Mafalda
Rola, 16 anos, também estudante na Escola Secundária Professor José Augusto
Lucas em Linda-a-Velha. “Nós fugimos para o Twitter”, continua.
Uma rede que é cada vez
mais popular, sobretudo entre os mais jovens, é o Snapchat, cuja grande
característica é permitir enviar uma fotografia que se apaga em dez segundos.
“Há pessoas que têm medo que as coisas fiquem permanentes e daquilo que os
outros pensam”, diz Mafalda, para começar a explicar por que razão o Snapchat
pode ser tão atractivo para os jovens. “Se enviarmos uma foto pelo Snapchat
sabemos que ninguém vai mostrar a um amigo e comentar: ‘Está tão ridícula’ ou
‘Está mesmo feia, cheia de borbulhas’”, diz.
Os pais, mesmo aqueles
que chegaram ao Facebook, não compreendem totalmente o funcionamento das outras
redes, o que levanta todo o tipo de preocupações e suscita diferentes posturas
— autorizar, proibir, ignorar — relativamente ao acesso que os filhos fazem
destas aplicações.
Telma Miguel, mãe de
Alice e de Teresa, de 16 anos, sabe que não consegue estar em cima de tudo o
que as filhas fazem online, mas não vê vantagens em transformar as redes
sociais no fruto proibido e apetecido. “Se as vamos proibir, elas não sabem
conviver com o mundo delas. Não vale a pena obrigá-las a fazer às escondidas
porque assim torna-se secreto e deixamos de ter acesso”, diz.
Joana Deus, 12 anos,
recebeu o telemóvel no último aniversário, há poucos meses. Foi a última aluna
da turma a ter telemóvel e mesmo assim a mãe, Luz Pimentel, continua a
acreditar que não precisa dele. Joana não tem qualquer acesso às redes sociais
no telemóvel e o Facebook está proibido mesmo no computador lá de casa. Usa a
Internet para trabalhos escolares e para ver alguns vídeos deyoutubers portugueses,
geralmente sobre jogos. Mas sabe o que é o Instagram, o Viber, o Snapchat, o
WhatsApp, porque quase todas as colegas usam. Já chegou a aparecer numa conta
Instagram de uma amiga, tendo depois pedido que a fotografia fosse retirada
porque não tinha dado autorização para a publicação.
Com apenas 12 anos, vive
rodeada por todas estas experiências sem ter ainda entrado nesse mundo e diz
ter muito receio dos perigos das redes sociais e da Internet. Teme o momento em
que irá estrear-se nas redes. “Tenho medo que mude aquilo que eu sou e quero
ser”, diz, referindo-se às notícias mais negativas que lhe vão chegando.
“Alguns adolescentes ficam muito deprimidos por situações na Internet e não
quero que isso aconteça comigo”.
Cristina Ponte,
investigadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa, tem estudado a relação das crianças com os media e a inclusão
digital. Diz que os pais, resistindo à tentação de proibir os filhos de
utilizar estas redes, devem antes prepará-los para a autonomia. “Os pais devem
ensinar os filhos a não terem de responder a tudo o que os amigos pedem para
fazer” e a compreenderem que têm o direito “a estar (online) e a não estar”.
Cristina Valente, psicóloga e autora do livro Coaching para Pais, pensa que
o equilíbrio entre permitir a utilização da Internet e evitar excessos passa
por fortalecer a estrutura dos “valores familiares não negociáveis”. Desta
forma, diz, permitir que uma criança tenha acesso ao Facebook quando não tem
ainda idade para o fazer passa aos jovens uma mensagem moral: “Os pais permitem
que isso aconteça sem reflectirem o que isto implica em termos de escolhas
morais. Estou a dizer-lhes que posso enganar uma empresa e que posso contornar
a lei”.
Por vezes, na equação da
responsabilidade, falamos dos educadores e esquecemos uma parcela importante,
ainda que aparentemente distante da vida diária das crianças. “A Geração Z não
é responsabilidade exclusiva dos pais e dos professores, mas também das
indústrias, das empresas, da regulação”, defende Cristina Ponte, que chama a
atenção para o facto de a presença das crianças online se traduzir num “negócio
brutal para as companhias de consumo”, como as operadoras móveis, por exemplo.
Segundo esta investigadora, estima-se que, actualmente, um terço dos
utilizadores da Internet tenha menos de 18 anos. A investigadora lembra como
“as empresas de telecomunicações proporcionam o consumo dos adolescentes”.
Em Portugal, as três
operadoras móveis têm campanhas destinadas à Geração Z e em alguns casos isso
traduz-se na oferta da utilização gratuita das aplicações das redes sociais (a
utilização do Facebook, WhatsApp, etc não consome dados de Internet). Num dos
sites destas operadoras há um apelo ao consumo em forma de provocação e de
pressão de grupo. O tarifário que está a ser vendido “não é para quem quer”,
pode ler-se, “convém teres smartphone”.O PÚBLICO tentou contactar as três
operadoras móveis, não obtendo resposta no caso da MEO e recebendo, por parte
da Vodafone e da NOS, a recusa em participar neste trabalho.
Pedro Castro Pinho,
criativo na agência de publicidade O Escritório, responsável pela marca do
tarifário Moche, da MEO, diz que a estratégia publicitária por detrás das
campanhas desta marca dirigida aos jovens sub 25 não leva em conta outras
características associadas à Geração Z além da dependência da Internet. De
resto, a linguagem utilizada, muitas vezes com um cunho sexual (“Faz-me um
like”) ou algo rebelde (a Moche teve um anúncio polémico em que um jovem desligava
a máquina que mantinha vivo o avô para poder carregar a bateria do telemóvel)
tem o objectivo de “falar aos jovens” e, se calhar “os jovens com 15 anos de há
vinte anos também achavam piada a isso”, diz.
Várias organizações da
sociedade civil, bancos, associações de direitos das crianças e empresas,
juntaram-se à iniciativa iRights, que quer definir os direitos
digitais para que crianças abaixo dos 18 anos possam utilizar as tecnologias
digitais “de forma criativa, sem medo e com conhecimento”. Estes são: direito a
remover toda a informação e dados disponibilizados online; direito a saber quem
está a utilizar a informação que foi cedida e quem lucra com essa informação,
vendendo-a para fins de publicidade ou outros; direito à segurança e ao apoio
em caso de situações de risco criadas online; direito
a escolhas informadas e conscientes; direito à literacia digital.
Os pais e educadores têm
outros receios relacionados com o uso das tecnologias e das redes sociais,
temendo os efeitos destas na aprendizagem, levantando dúvidas sobre as
consequências do multitasking na capacidade de concentração e questionando-se
sobre a qualidade das relações das crianças.
O psicólogo José Morgado
explica ao PÚBLICO que, de uma forma ou de outra, estes receios existem em
todas as gerações, mas adequados às realidades específicas de cada período. “Os
pais estão sempre preocupados com as ‘más companhias’ dos filhos. Na Internet
há um upgrade dessa preocupação — está ligado a quem, a fazer o quê? É normal
que os miúdos a partir dos 11 anos comecem à procura dos seus amigos e
encontrem as suas tribos. Se um miúdo dessa idade está ligado ao computador,
isso é normal na idade dele. Depois há efeitos colaterais — se o excesso de contactos
altera os hábitos de sono, por exemplo. Mas aí trata-se de uma questão
pedagógica. O erro não é o miúdo estar no computador, o erro é os pais
permitirem que ele tenha o computador (ou o telemóvel) no quarto e esteja a
usá-lo às 3h da manhã”, diz.
José Morgado utiliza uma
fórmula semelhante para desmistificar a ideia de que os jovens da Geração Z não
consolidam as aprendizagens apenas porque utilizam o Google em excesso. “Se eu
exercitar aquilo que vi no Youtube ou li no Google, fico a saber, aprendo”,
diz, em defesa dessas fontes de informação. O problema, acrescenta, está na
insuficiência dos filtros que os jovens terão. E isso, mais uma vez, combate-se
com educação e pedagogia, e não com a proibição da prática. “Temos deacompanhar a utilização das novas tecnologias com inovações do ponto de vista da
forma como ensinamos o aluno a pesquisar. Temos de ensiná-los a filtrar informação
e a fazer buscas pertinentes para que não fiquem intoxicados. Ou corremos o
risco de criar um gap muito evidente entre a aprendizagem na sala de aula e as
que existem lá fora. Há que diminuir esse gap, trazendo essas ferramentas para
a escola para que as crianças possam aprender a usá-las de forma regulada”,
diz.
Um
projecto de vida para tempos incertos
É também de educação e
de pedagogia que fala José Morgado quando se refere à dificuldade de os pais
ajudarem os seus filhos, herdeiros da crise e da precariedade, a projectarem um
futuro.
“Na minha geração
estudávamos para ser alguém e vislumbrávamos esse caminho. Muitos jovens têm
dificuldade em construir um projecto de vida e aquele discurso de que os
licenciados não têm emprego não ajuda”, afirma o psicólogo. “Temos de acreditar
— pais e profissionais — que mesmo em tempos de crise é possível construir um
projecto de vida”.
Os jovens da Geração Z
com quem falámos parecem ter os seus sonhos. Mas, mesmo quando falam de
ambições profissionais mais ligadas a um percurso artístico ou mediático, têm
um projecto de vida pensado para enfrentar mudanças, crises, alteração das
circunstâncias, desilusões e sonhos desfeitos.
Filipe Miranda, 18 anos
e um sonho ainda viável: ser jogador de futebol. Filipe vive no Fogueteiro,
joga no Cova da Piedade e ambiciona um dia chegar a um grande clube. “O meu
plano A é ser jogador de futebol”, diz. Filipe não fala apaixonadamente de ser
o próximo Cristiano Ronaldo ou o Luís Figo. Fala de metas e caminhos para lá
chegar. E de como a sua prioridade é o futebol e os treinos e um estilo de vida
— sem grande espaço para as redes sociais, diz — que permita sustentar esse
projecto. Mas fala também do momento em que pode perceber que o sonho não se
concretizou — “Quando vir que estou num clube que não me dê futuro”.
A existência de um plano
A pressupõe que haja outros caminhos e Filipe decidiu continuar os estudos.
Está neste momento a frequentar o primeiro ano de Contabilidade no ISCAL,
esperando conseguir transferência para o ISCTE ou o ISEG para estudar Gestão.
“Mesmo que consiga o meu sonho A, um dia mais tarde — o futebol acaba cedo —
gostava de ter a minha própria empresa”, diz.
Telma Miguel, a mãe de
Alice, diz que as filhas pensam no futuro de forma muito diferente da sua
geração. “Não têm sonhos tão ambiciosos como eu tinha na idade delas. Eu e os
meus amigos pensávamos que se estudássemos e fizéssemos as coisas certas, ia
ser tudo a somar. Acho que elas sabem que as coisas não são assim e entendem
que há muita gente à procura da mesma coisa, que é cada vez mais escassa. Elas
vão decidindo à medida que as coisas acontecem, tomam decisões passo a passo e
têm uma grande disponibilidade para mudar”, diz.
O professor na
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Daniel Cardoso confirma a
percepção desta mãe. “É uma geração que foi ensinada, para o bem e para o mal,
que terá de se adaptar tão depressa quanto possível ao maior número de mudanças
possíveis. Eles vão ficar profundamente marcados pela incerteza biográfica”,
diz. Por “incerteza biográfica”, Daniel Cardoso entende a perda de
“referenciais sobre o que é crescer e ser adulto”. Os jovens que hoje terminam
os cursos superiores, explica o investigador, “não sabem se terão emprego ou se
o emprego que têm será suficiente para se sustentarem”. Esta “ausência de um
percurso de vida minimamente definido” é um dos grandes marcos sociológicos
desta época. “À frente destes jovens não há estabilidade ou certeza, mas sim
uma espécie de obrigação de construir a sua marca”, diz o investigador.
É esta
“individualização”, este foco numa “biografia do it yourself” que adia essa
chegada ao mundo dos adultos. “Se eu faço de uma maneira e outro faz de outra,
afinal o que é ser adulto? Quais são os marcadores de sucesso?”, pergunta
Daniel Cardoso, sublinhando que esta mentalidade pode ter também um lado muito
negativo. “Este discurso pode ser mobilizado negativamente para dizer que se a
pessoa não for bem sucedida, a culpa é dela. Este tipo de postura pode promover
uma atitude de salve-se quem puder”.
Kim
Kardashian vs Malala Yousafzai
Pedro Marques, 19 anos,
sente pela geração a que pertence uma desilusão tão grande que preferiu
virar-lhe as costas. Quando estava no 11º ano desistiu de estudar e não chegou
a concluir o ensino secundário. “Não me sentia feliz”, diz. Agora, passa os
dias num atelier na Associação de Artes e Ofícios no Barreiro, onde se dedica
aos seus quadros e a ensinar crianças a pintar. Pedro diz ser mais feliz assim.
“O meu projecto de vida passa por ter comida para o dia a seguir. Mesmo que
fique só a pensar acho que isso já é válido”.
Pensar é aquilo que
Pedro acha que a sua geração não faz. “Esta geração… Há uma cena horrível que é
o valor do entretenimento. As pessoas deixam de pensar. É uma geração que tem
muita dificuldade em interessar-se por aquilo que não lhe é imediato ou está
distante, como a guerra na Síria”.
Virar as costas também
implica tentar ignorar o que está nas redes sociais, que utiliza para, à
semelhança de Inês do Canto, promover o seu trabalho artístico. “No outro dia
no Twitter, uma miúda escreveu: ‘Quem precisa de Pessoa e Camões quando há [o
rapper] Regula’?”, lembra Pedro, irritando-se e ameaçando atirar com o iPad que
tem ao seu lado. “Pensa noutra merda”, diz, como se estivesse a falar com a
colega.
Ao desafio de imaginar
um quadro que represente a sua geração, Pedro responde com a ideia de retratar
os colegas dentro de um smartphone a tirar selfies do lado de fora. “Para ver se
os punha a pensar que a maior parte delas está trancada lá dentro”.
O quadro de Pedro é o
retrato mais negativo da Geração Z, o retrato que mostra jovens que, incapazes
de tirar os olhos do écrã, se esquecem do mundo à sua volta, ignorando aquilo
que não diz respeito a si próprios, como sugerem as palavras de Pedro. Uma
geração liderada pela socialite Kim Kardashian e obcecada em tirar selfies.
Mas a geração que segue
o reality show das
irmãs Kardashian é também aquela que pode seguirMalala Yousafzai, a activista paquistanesa
dos direitos das mulheres e da luta pelos direitos de educação que foi
condecorada com o Nobel da Paz em 2014 e é uma jovem de 18 anos. Ou que pode
escolher seguir Martha Payne, a menina escocesa que em
2012, com apenas 9 anos, começou a tirar fotografias das refeições escolares e
a publicá-las num blog para denunciar a falta de qualidade das mesmas nas
cantinas e incentivando crianças de todo o mundo a fazer o mesmo. O sucesso do
blog foi tal que Martha conseguiu angariar dinheiro para a iniciativa de
caridade Mary’s Meals, que organiza projectos
alimentares em comunidades pobres de todo o mundo. Ou que pode admirar a
brasileiraIsadora Faber, que também em 2012, com 13
anos, e munida de um telemóvel, criou a página de Facebook “Diário de Classe —
A Verdade” para retratar as falhas e as deficiências da sua escola e chamar a
atenção para o estado das escolas públicas no Brasil. Isadora tem dado
palestras por todo o país, chamando a atenção para o problema. Em 2013, o
Financial Times escolheu-a como uma das 25 personalidades brasileiras mais influentes
no Brasil.
Tito de Morais, que
criou o site miudossegurosna.net, um projecto que ajuda famílias e escolas a
promover a utilização responsável das tecnologias, utiliza estes exemplos para
exprimir o seu optimismo pelo potencial da Geração Z para mudar o mundo.
“Estes jovens mostram que têm estas noções e comportamentos de cidadania. O que
poderão fazer quando chegarem a posições de poder?”
Tito de Morais lamenta
apenas que em Portugal aquilo que a Geração Z vai dando a conhecer são “os
aspectos menos desejáveis, os mais espampanantes, os mais fúteis e os mais
negativos”. Por que razão não apareceram ainda jovens tão influentes como nos
casos a que nos referimos lá fora? Tito de Morais tem uma resposta clara: “Não
capacitarmos os jovens para eles se assumirem como os seus próprios
porta-vozes”.
Em Portugal há já alguns
casos de youtubers populares que ganham dinheiro com os
vídeos que colocam nessa rede social, mas poucos são aqueles que tentam passar
uma mensagem que vá além do humor e de relatos mais superficiais. Kiko is Hot,
ou Francisco Soares, um jovem Z de 21 anos, estreou-se no Youtube em 2011 e
hoje conta com 97 mil subscritores.
A popularidade que
ganhou na rede já lhe permitiu ter programas na televisão e participar em
campanhas publicitárias, sendo hoje um dos rostos da WTF, o tarifário da NOS
direccionado à Geração Z. Francisco Soares decidiu utilizar o Youtube para
“fazer as pessoas rir”, mas começou a receber muitos e-mails de pessoas que
viam nele um exemplo de coragem. Kiko is Hot tem um look andrógino, utiliza o
cabelo comprido e maquilhagem e assume-se na comunidade LGBT. Então, Francisco
Soares decidiu começar a abordar questões mais activistas, abordando temas como
a auto-estima, a ansiedade, o bullying e as dificuldades sentidas pelos jovens
em se assumirem como gays ou lésbicas. “Sigo muitos bloggers e youtubers lá fora que discutem estas questões,
mas no panorama português do Youtube não havia ninguém que falasse dessas
coisas mais sérias e decidi ser o primeiro”, diz.
Sobre a Geração Z,
Francisco Soares diz que é “uma geração com pouca produtividade”, que tem
dificuldade em “levar um projecto até ao fim”, mas que é, ao mesmo tempo,
“muito empreendedora e tem ideias novas, o que se vê nos exemplos de pessoas
que pegaram em câmaras e fizeram carreiras disso”, diz. Mas nota também que um
dos grandes traços dos jovens Z é o activismo e a luta pelos direitos
feministas, LGBT… “Somos uma geração de transição que está a tentar transformar
isto. Quando formos mais velhos acho que as coisas já vão estar muito
diferentes. É possível que uma pessoa nasça sem ter na cabeça se será aceite ou
não — esse é o meu desejo”.
O investigador Daniel
Cardoso afirma que a obrigação de estes jovens criarem a sua marca e a sua
“biografia do it yourself” abre também
espaço “ao debate de temas que estão relacionados com a sexualidade,
identidades de género, estruturas relacionais”. É dada grande visibilidade à
história de cada um, ao individualismo, a como cada jovem é único. O psicólogo
José Morgado não tem certezas na hora de dizer se esta geração vai ser mais
tolerante. Isto porque, apesar de estes miúdos serem “mais abertos e mais
flexíveis”, as tomadas de posição que têm muitas vezes “não correspondem a
mobilizações activas”.
Inês do Canto, pensando
sobre o seu próprio exemplo, faz um retrato muito calibrado da Geração Z.
Apesar de lamentar a tendência dos jovens para “desistirem” ao primeiro
contratempo, elogia a elevada consciência das dificuldades que o futuro reserva
e a capacidade para, como no seu caso, “pensar a longo prazo”.
Essa capacidade também
se traduz na forte “consciência política” que nota entre amigos e colegas.
“Temos mais noção do que outras gerações de que o Donald Trump [candidato nas
primárias americanas pelo Partido Republicano] pode ser um próximo Hitler”.
Inês diz que esta geração está empenhada em lutar pela igualdade. “Somos contra
o sexismo, o racismo, a homofobia. Eu e os meus amigos tentamos assinar
petições ou ajudar alguém que não se sinta bem”, afirma, antes de acrescentar
que talvez seja uma “activista hipócrita”, sugerindo que existe uma distinção
entre tomar posição e mobilizar-se realmente.
Lamenta que em Portugal
não haja figuras de referência jovens e adianta que os seus ídolos são
“Francisco Louçã e Mariana Mortágua” porque “pensam como a Geração Z”. Quando
lhe perguntamos se está mais à esquerda a nível político, diz que não é de
esquerda nem de direita e revela que teria votado em Marcelo Rebelo de Sousa
nas últimas presidenciais. “A nossa geração não tem rótulos”, afirma.
Parando para pensar
nessa rejeição dos rótulos, Inês diz que existe uma certa cacofonia na sua
geração, em que cada um tem o desejo de ser único e de afirmar as suas
diferenças. Por isso mesmo, pensa numa expressão para descrever o mundo da
Geração Z. “Caos… mas caos consciente”, diz. “Cada um de nós é muito convicto
das suas opiniões e, ao mesmo tempo, aberto às opiniões dos outros. Lutamos
todos pelo mesmo, mas de maneiras tão diferentes que corremos o risco de nos
dispersarmos e não fazermos nada com isso”. E acrescenta: “Espero que não
fiquemos overwhelmedcom os nossos
erros”. Respira fundo e como uma adulta cautelosa e ponderada que aprendeu a
sustentar os sonhos e a descer à terra, assegura: “Vamos ficar bem”.
Fonte:https://www.publico.pt/sociedade/noticia/a-geracao-que-quer-transformar-isto-tudo-1723002
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