A mente livre e o mito do eu |
Dzogchen Ponlop Rinpoche
Quando Buda
ensinou sobre essa natureza impermanente e composta (ou agrupada) da mente
relativa, ele o fez com o objectivo de apresentar aos seus discípulos a
natureza última da mente: a consciência imutável, pura e não fabricada. Aqui, o
budismo separa-se radicalmente de conceitos teológicos, como pecado original,
que vêem a humanidade como espiritualmente maculada por alguma violação herdada
da lei divina. A visão budista afirma que a natureza de todos os seres é primordialmente
pura e plena de qualidades positivas. Quando acordamos o suficiente ao ponto de
ver além da nossa confusão, percebemos que mesmo os nossos pensamentos e
emoções problemáticos são, no fundo, parte dessa consciência pura.
Reconhecer
isso leva-nos naturalmente a uma experiência de relaxamento, alegria e humor.
Já que tudo o que vivenciamos no nível relativo é ilusório, não precisamos
levar nada tão a sério. Do ponto de vista do estado último, é como um sonho
lúcido, a vivida brincadeira da própria mente. Quando estamos despertos no meio
de um sonho, não levamos nada do que ocorre no sonho muito a sério. É como dar
uma volta nas atracções do Disney World. Um brinquedo leva-nos até o céu
nocturno, onde vemo-nos rodeados de estrelas, com as luzes de uma cidade lá em
baixo. É muito bonito e cativa-nos demais, mas nunca tomamos como sendo real.
E, quando entramos na casa assombrada, fantasmas, esqueletos e monstros podem
surpreender-nos por um instante ou por um pouco mais de tempo, mas eles também
são engraçados, porque sabemos que nada disso é de verdade.
Da mesma
forma, quando descobrimos a verdadeira natureza da nossa mente, somos
libertados de uma ansiedade fundamental, uma sensação básica de medo e
preocupação sobre aparências e experiências da vida. A verdadeira natureza da
mente diz: “Porque entrar em stress? Relaxe e sinta-se bem consigo mesmo.” A
escolha é nossa, a não ser que tenhamos uma tendência extraordinariamente forte
de lutar o tempo todo. Desse modo, até mesmo o Disney World se torna num local
horrível. E isso também é escolha nossa. O nosso mundo moderno é cheio de
opções: onde quer que estejamos, podemos escolher uma forma ou outra.
Muitas
pessoas perguntam como é esse tipo de consciência. Seria a experiência dessa
natureza verdadeira semelhante à de se tornar um vegetal, entrar em coma ou
sofrer de Alzheimer? Não. De facto, não é nada disso. A nossa mente relativa
passa a funcionar melhor. Quando damos uma folga para o nosso hábito constante
de rotular, o mundo torna-se límpido. Ficamos livres para ver com clareza;
pensar com clareza e sentir a qualidade viva e desperta das nossas emoções. A
abertura, a amplidão da experiência fazem com que este seja um local muito
bonito de se viver. Imagine-se no pico de uma montanha olhando para o mundo em
todas as direcções, sem obstruções. É a isso que chamamos de experiência da
natureza da mente.
O mito
do eu
Imagine que
olhamos para a nossa mão, certo dia, e reparamos que ela está fechada, formando
um punho. Está segurando algo tão vital que não conseguimos largar. O punho
está tão fechado que a mão chega a doer. A dor na mão viaja até o braço e a
tensão espalha-se pelo corpo. E isso segue por anos a fio. Às vezes, tentamos
tomar uma aspirina, assistir à televisão ou saltar de para-quedas. A vida
segue, um dia esquecemos o que era tão importante e, então, a mão se abre: não
há nada ali. Imagine a surpresa.
O Buda
ensinou que a causa raiz do nosso sofrimento — a ignorância — é o que dá
surgimento a essa tendência de agarrar. A questão que deveríamos nos colocar é:
“A que estou me agarrando?” Deveríamos olhar bem fundo esse processo, para ver
se realmente há algo ali. De acordo com Buda, estamos nos agarrando a um mito.
É só um pensamento que repete “eu” tantas vezes que cria um eu ilusório, tal
como um holograma que tomamos por sólido e real. A cada pensamento, a cada
emoção, esse “eu” aparece como o pensador e também como aquele que vivencia, e
ainda assim é apenas outra fabricação da mente. É um hábito muito antigo, tão
enraizado que esse próprio agarrar torna-se também ele próprio parte da
nossa identidade. Se não estivéssemos nos agarrando a esse pensamento de eu,
poderíamos sentir que algo muito familiar — como um amigo próximo — está
faltando e, assim, uma dor crónica repentinamente desapareceria.
Como se
segurássemos um objecto imaginário, o nosso agarrar ao eu, não nos ajuda muito.
Ele apenas dá-nos dores de cabeça e úlceras, e logo desenvolvemos muitos outros
tipos de sofrimento com base nele. Esse “eu” passa a defender a todo custo os
próprios interesses, porque imediatamente percebe um “outro”. E, no instante em
que temos o pensamento de “eu” e “outro”, o drama de “nós” e “eles” se
desenvolve. Tudo acontece num piscar de olhos: agarramos o lado do “eu” e
decidimos se o “outro” está a nosso favor, contra nós ou se não faz diferença.
Enfim, estabelecemos as nossas intenções: com relação a um objecto, sentimos
desejo e o queremos atrair; com relação a outro, sentimos medo e hostilidade e
o queremos repelir; e com relação a mais um outro objecto, somos indiferentes
ou apenas o ignoramos. Dessa forma, o nascimento das nossas emoções e dos
nossos julgamentos neuróticos é resultado de nosso agarrar ao “eu” e ao “meu”.
No fim, não estamos livres nem mesmo frente aos nossos próprios julgamentos.
Admiramos algumas de nossas qualidades e logo nos inflamamos todos, desdenhamos
outras qualidades e logo criticamos a nós mesmos, e assim ignoramos boa parte
da dor que realmente sentimos, totalmente engajados nessa luta interna para
sermos felizes com quem somos.
Por que
persistimos nisso, quando nos sentiríamos tão melhor e mais relaxados se
simplesmente soltássemos? A verdadeira natureza da nossa mente está sempre
presente, mas, por não vê-la, acabamos nos apegando ao que conseguimos ver e tentando
fazer dela algo que não é. Complicações desse tipo parecem ser o único jeito
que o ego tem para manter-se, isto é, criando um labirinto ou uma sala de
espelhos para nos confundir. A nossa mente neurótica torna-se tão revolta e
enredada que fica difícil para nós rastrearmos o que ela está fazendo.
Investimos nesse grande esforço apenas para nos convencer de que encontramos
algo sólido dentro da natureza insubstancial da nossa mente: uma entidade
separada e permanente — algo que podemos chamar de “eu”. Ainda assim, ao fazer
isso, estamos indo na contra-mão da verdadeira natureza das coisas, da
realidade. Estamos tentando congelar a experiência, criar algo sólido, tangível
e estável com algo que não tem essa natureza. É como pedir ao espaço que ele torne-se
terra ou para a água que se torne fogo. Pensamos que abandonar esse pensamento
de um “eu” é uma loucura, pensamos que a nossa vida depende desse pensamento.
Mas, na verdade, a nossa liberdade depende de nós o abandonarmos.
Fonte:http://portaldobudismo.org/2015/10/12/a-mente-livre-e-o-mito-do-eu-dzogchen-ponlop-rinpoche/
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