A Vida no Mundo
(trechos do Capítulo Três do livro “Os Ensinamentos de Ramana
Maharshi em Suas Próprias Palavras, de Paul Brunton)
[Os comentários em itálico
são de Arthur Osborne, devoto de Ramana e autor do livro, que sintetizou os
ensinamentos essenciais do Maharshi a partir de diálogos e textos escritos]
Uma vez que alguém
decida começar a praticar os ensinamentos de Bhagavan, uma pergunta que pode
surgir é como isso irá afetar a sua vida no mundo. O Hinduísmo não
necessariamente prescreve uma renúncia física como condição para uma vida
espiritual ativa, tal como prescrevia o ensinamento original de Cristo e do
Buda. Pelo contrário, a condição da família é honrada e o caminho da ação
correta é visto como legítimo.
No entanto, a
doutrina da não-dualidade, junto com o caminho da autoinquirição, que nela se
baseia, era tradicionalmente reconhecido como adequado apenas àqueles que
renunciavam à vida no mundo. Então é natural que os seguidores de Bhagavan lhe
perguntassem se eles deviam renunciar ao mundo. Isso também era uma indicação
notável da força da determinação espiritual que ainda existe na Índia moderna,
pois renunciar ao mundo não significava viver uma vida solitária em uma casinha
num sítio isolado, como pode parecer no Ocidente, e nem se retirar para a
segurança austera de um mosteiro, mas viver sem casa e sem dinheiro, dependendo
da caridade alheia para ganhar comida e roupas, dormindo em cavernas, templos,
ou onde fosse possível. Apesar de tudo isso havia pedidos constantes de pessoas
que desejavam tomar esse modo de vida, mas o Bhagavan sempre negava permissão.
O trabalho era interno e deveria ser feito na mente, independente das condições
exteriores de vida.
B.: Por que você se
considera uma pessoa do mundo? Se você se tornar um sannyasin (renunciante) você será perseguido
pelo pensamento de que é um sannyasin.
Sua mente irá persegui-lo quer você viva em casa quer renuncie ao mundo para
viver numa floresta. O ego é a fonte do pensamento; ele cria o corpo e o mundo,
e faz você acreditar que é uma pessoa do mundo. Se você renunciar, o ego
simplesmente substitui a ideia “sou uma pessoa mundana” pela ideia “sou um
renunciante”, e o ambiente da casa pelo da floresta. Mas os obstáculos mentais
estarão lá à sua espera. Eles até aumentam bastante em novos ambientes. Mudar
de ambiente não ajuda. O único obstáculo é a mente, e essa precisa ser
superada, em casa ou na floresta. Se você pode vencê-la na floresta, por que
não em casa? Então para que mudar de ambiente? Os seus esforços podem ser
feitos agora mesmo, qualquer que seja o ambiente.
D.: É possível desfrutar o samadhi
mesmo enquanto estamos ocupados com o trabalho mundano?
B.: O sentimento
“eu trabalho” é o obstáculo. Pergunte-se: “Quem trabalha?”. Lembre-se de quem é
você. Então o trabalho não irá aprisioná-lo; ele prosseguirá automaticamente.
Não faça nenhum esforço nem para trabalhar nem para renunciar ao trabalho; o
seu esforço é que é a prisão. O que está destinado a acontecer irá acontecer.
Se você está destinado a trabalhar não poderá evitar o trabalho; você será
forçado a se envolver com ele. Se você está destinado a não trabalhar, não
conseguirá encontrar trabalho. Portanto, deixe isso nas mãos do Poder Maior.
Não é, na verdade, escolha sua se você renuncia ou não.
Quando as mulheres
que carregam vasos d’água na cabeça param para conversar elas são muito cuidadosas,
mantendo suas mentes voltadas aos vasos d’água. Da mesma forma, quando um sábio
age sua mente permanece fixada no Eu Real, e sua atividade não o distrai.
D.: É necessário tornar-se um sannyasin
(renunciante) a fim de obter a Realização?
B.: “Sannyasa” significa renunciar
à sua individualidade, e não raspar a cabeça e vestir um manto ocre. Uma pessoa
pode ser alguém do mundo, mas se ela não tiver nenhum pensamento a respeito
disso e abandonar as noções “eu sou um pai de família”, “eu sou um trabalhador”,
“eu sou assim e assim”, “eu faço tal e tal coisa”, então na verdade ela é um sannyasin. Da mesma forma,
mesmo que alguém se vista como um renunciante e viva como tal, se ele tiver a
noção “sou um renunciante” então não o é. Pensar sobre a própria renúncia
frustra a sua finalidade.
O que você quer
dizer por “tomar o sannyas”?
Você acha que isso significa abandonar a sua casa ou usar um manto de uma cor
específica? Onde quer que você vá a sua mente vai junto. Você pode deixá-la
para trás e partir sem ela?
Por que os seus
deveres ou ocupações na vida deveriam atrapalhar o seu esforço espiritual? Por
exemplo, há uma diferença entre suas atividades em casa e no trabalho. No
trabalho você está desapegado: você apenas cumpre o seu dever e não se importa
com o que vai acontecer, não está preocupado com o ganho ou perda do seu chefe
ou empregador. Os seus deveres com a família, por outro lado, são desempenhados
com apego: você está sempre preocupado se as suas ações vão trazer benefício a
você e sua família. Mas é possível desempenhar todas as atividades da vida com
desapego e ver apenas o Eu Superior como real. É errado pensar que se você
permanecer fixado interiormente no Eu Real os seus deveres na vida não serão
bem desempenhados. É como um ator no palco: ele se veste do personagem, age
como ele e até sente que é parte da peça, mas na verdade sabe que na vida real
não é o personagem, mas outra pessoa. Da mesma maneira, por que deveria a
consciência do corpo ou o sentimento “eu-sou-o-corpo” lhe perturbar, uma vez
que você saiba que na verdade você não é o corpo, mas sim o Eu Real? Nada que o
corpo faça deveria afastá-lo da permanência como Eu Real. Permanecer fixado no
Eu Real não irá interferir com o desempenho adequado e efetivo de quaisquer
deveres que o corpo tenha, assim como o fato de o ator saber a sua verdadeira
identidade não interfere no personagem que ele representa no palco.
D.: Já foi dito
claramente que enquanto houver mesmo que o mínimo traço da noção “eu sou o
agente” não pode haver a Realização. Mas é possível para uma pessoa do mundo,
que tem trabalho e família, e que deseja intensamente a Libertação, desempenhar
suas atividades sem ter esse sentimento?
B.: Não há nenhuma
lei que diga que as ações só podem ser feitas com base no sentimento “eu-sou-o-agente”,
então não há motivo para perguntar se elas podem ser feitas e os deveres serem
cumpridos sem essa noção. Pegue como exemplo o caso de um contador que trabalha
o dia inteiro no escritório e cumpre suas tarefas diligentemente. Pode parecer
aos olhos dos outros que ele está carregando nas costas todas as
responsabilidades financeiras da instituição; porém, se ele estiver consciente
que não é pessoalmente afetado pelas entradas e saídas de capital ele
conseguirá permanecer desapegado e livre da noção “eu-sou-o-agente”, embora
desempenhe suas tarefas perfeitamente bem. Da mesma forma, é possível a um
sábio pai de família que busque ardorosamente a Libertação cumprir seus deveres
sem nenhum apego, considerando a si mesmo apenas como um mero instrumento para
isso. Uma atividade assim não é um obstáculo ao Caminho do Conhecimento (jnana-marga), e nem é o
Conhecimento um fator que impeça o cumprimento dos deveres da vida. A
Compreensão e a atividade nunca são mutuamente excludentes – uma não atrapalha
a outra.
D.: Qual é o
significado da vida de uma pessoa voltada para a espiritualidade mas que
precisa dedicar todo o seu tempo apenas para sobreviver e sustentar a família,
e que benefício ela e sua família recebem?
B.: Uma pessoa que
assim cumpre seus deveres, e que trabalha para o sustento de sua família,
ignorando o seu próprio conforto físico e conveniência pessoal, presta um
serviço abnegado à sua família, cujas necessidades é seu destino atender. No
entanto, pode-se perguntar qual é o benefício que uma pessoa assim recebe da
família. A resposta é que a família como tal não lhe traz nenhum benefício, já
que esse buscador cumpre os seus deveres para com ela como um meio de
treinamento espiritual. O seu verdadeiro benefício está em alcançar a
Bem-Aventurança e Felicidade perfeitas da Libertação, que é o objetivo último
de todos os caminhos e sua recompensa suprema. Portanto, esse buscador não
precisa de nada da sua família e nem de sua vida familiar.
Às vezes
perguntavam-lhe por que ele havia renunciado ao mundo se ele não aprovava esse
caminho para os outros; e ele respondia simplesmente que esse era seu destino.
Deve ser lembrado que o caminho que ele ensinou – a prática da autoinquirição
combinada com a ação harmoniosa – é um novo caminho, criado por ele para
satisfazer as necessidades do nosso tempo. Ele mesmo primeiro teve que alcançar
a Realização, para depois ensinar o caminho rumo a ela.
D.: Eu posso fazer a prática espiritual mesmo tendo uma vida no
mundo?
B.: Sim, com certeza; é isso o que deve ser feito.
D.: A vida no mundo não é um obstáculo? Todos os livros não estimulam a renúncia?
B.: Sim, com certeza; é isso o que deve ser feito.
D.: A vida no mundo não é um obstáculo? Todos os livros não estimulam a renúncia?
B.: O mundo está
apenas na mente. Ele não declara: “Eu sou o mundo!”. Se o fizesse, ele deveria
ser algo permanente e sempre presente, mesmo no seu sono. Como o mundo não está
presente durante o sono, ele é impermanente. Sendo impermanente, não é real.
Não sendo real, ele é facilmente absorvido pelo Eu Real. Apenas o Eu é
permanente. Renúncia é a não-identificação do Eu com o não-Eu. Quando a
ignorância desaparece, o não-Eu cessa de existir. Essa é a verdadeira renúncia.
Às vezes existia
uma certa ansiedade sobre o estado do mundo e um desejo de assumir uma
responsabilidade.
D.: O Bhagavan
faria a gentileza de dar a sua opinião a respeito do futuro do mundo, já que
estamos vivendo em tempos de crise?
B.: Por que se
preocupar com o futuro? Você nem conhece o presente direito. Cuide do presente
e o futuro cuidará de si próprio.
D.: O mundo vai entrar logo em uma nova era de solidariedade e
ajuda mútua ou vai decair em caos e guerras?
B.: Existe um Ser
que governa o mundo e é Sua tarefa cuidar dele. Aquele que deu luz ao mundo
também sabe como cuidar dele. Ele carrega o fardo do mundo, e não você.
D.: Mas se eu olho
ao meu redor com olhos despidos de ideias pré-concebidas é difícil enxergar
onde está esse cuidado benevolente.
B.: Como você é,
assim é o mundo. Qual é a utilidade de tentar entender o mundo sem entender a
si mesmo? Os buscadores da Verdade não precisam se preocupar com isso. As
pessoas desperdiçam sua energia com essas perguntas desnecessárias. Primeiro
descubra a Verdade por trás de você, e então você estará em uma posição melhor
para entender a Verdade por trás do mundo do qual você é uma parte.
D.: Eu deveria tentar ajudar esse mundo miserável?
B.: O Poder que
criou você também criou o mundo. Se Deus criou o mundo é tarefa Dele cuidar do
mundo, e não sua.
Entretanto, isso
não significa que o ensinamento de Ramana Maharshi incentivava a frieza ou
indiferença ao sofrimento humano. Aqueles que sofriam deveriam ser ajudados,
mas ajudados num espírito de humildade. O que era desencorajado era o
sentimento de autoimportância inerente ao esforço de tentar fazer o papel da
Providência. Isso fica muito claro na seguinte passagem:
D.: Mas nós vemos
sofrimento no mundo. Por exemplo: um homem passa fome. Isso é uma realidade
física, é muito real para ele. Nós deveríamos, então, chamar isso de sonho e
permanecer indiferentes ao seu sofrimento?
B.: Do ponto de
vista de jnana ou
Realidade, o sofrimento do qual você fala certamente é um sonho, assim como o
mundo inteiro, do qual esse sofrimento é uma parte ínfima, também o é. No sonho
que você tem enquanto dorme você sente fome e vê os outros sofrendo de fome.
Você se alimenta e, movido por compaixão, alimenta os outros que também passam
fome. Enquanto o sonho durava, todo esse sofrimento era tão real quanto é o
sofrimento que você vê no mundo agora. Foi só depois de acordar que você
descobriu que esse sofrimento era irreal. Você pode ter comido bastante antes
de dormir, mas mesmo assim você sonhou que estava trabalhando o dia inteiro sob
o sol ardente e que estava cansado e com sono. Então você acorda e descobre que
seu estômago estava cheio e que você não saiu da cama. Mas isso não significa
que enquanto você está no sonho você pode agir como se o sofrimento que
sentisse não fosse real. A fome no sonho deve ser satisfeita pela comida do
sonho. As outras pessoas famintas que você encontra no sonho devem ser
alimentadas com comida do sonho. Você nunca pode misturar os dois estados, o
sonhar e o estar desperto.
Da mesma forma, até
que você alcance o estado de Realização, e assim desperte desse mundo
fenomênico ilusório, você deve aliviar o sofrimento alheio sempre que entrar em
contato com ele. Mas mesmo assim você deve agir sem ego (ahamkara), isto é, sem o
sentimento de que é você quem está agindo e ajudando. Ao invés disso você deve
sentir: “Eu sou o instrumento de Deus”. Você também não deve ser vaidoso e
pensar: “Eu estou ajudando um homem que está numa situação pior que eu. Ele
precisa de ajuda e eu posso ajudá-lo. Eu sou superior e ele é inferior”. Você
deve ajudá-lo como um meio de venerar a existência de Deus nele. Todo serviço
feito assim é um serviço prestado ao Eu Real, e não a ninguém em particular.
Você não está ajudando ninguém além de si mesmo.
O Bhagavan
respondia àqueles que duvidavam disso, que a Realização é a melhor ajuda que se
pode dar aos outros. De fato, o próprio Bhagavan era prova disso: inúmeras
pessoas eram ajudadas no seu âmago mais profundo, elevadas acima da confusão e
do sofrimento, e direcionadas a um caminho seguro de paz e compreensão, tudo
pela graça de sua influência silenciosa. Paradoxalmente, ele também sempre as
lembrava de que, do ponto de vista do Conhecimento, não há outros para ajudar.
D.: A minha Realização ajudará os outros?
B.: Sim, com
certeza. É a melhor ajuda que você pode lhes dar. Mas na verdade não há
“outros” a serem ajudados, pois o Ser Realizado vê apenas o Eu Real, assim como
o ourives vê apenas o ouro ao avaliar as várias jóias feitas de ouro. Os nomes
e formas separados existem apenas enquanto você se identifica com o corpo.
Todavia, quando você transcende a consciência do corpo, os “outros” também
desaparecem.
É como um filme no
cinema. Tem a luz projetada sobre a tela, e as imagens que passam rapidamente
entre a luz e a tela dão a impressão de movimento, e criam o filme. Então
imagine que na história desse filme também aparece uma audiência assistindo um
[outro] filme. Aqueles que veem e o filme visto estarão ambos na tela. Agora
aplique isso a si mesmo: você é a tela, o Eu Real criou o ego, e o ego tem suas
acreções de pensamentos, que são projetados como o mundo e as árvores e
plantas, sobre os quais você pergunta. Na realidade tudo isso nada mais é que o
próprio Eu Real. Se você compreender o Eu Real verá que ele é tudo, em
todos os lugares e em todos os momentos. Nada existe além do Eu Real.
Fonte:http://advaita.com.br/2014/10/19/
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