O HOMEM COMUM- ROMANCE COMPLEXO E PROFUNDO SOBRE A VELHICE DO ESCRITOR PHILIP ROTH


O HOMEM COMUM - PHILIP ROTH

Numa narrativa direta, íntima e ao mesmo tempo universal, Philip Roth explora o tema da perda, do arrependimento e do estoicismo. O autor de Complô contra a América, que relatava o encontro angustiante de uma família com a história, agora volta sua atenção para a luta de um homem contra a mortalidade, conflito que dura sua vida inteira.
Acompanhamos o destino do homem comum de Roth a partir de seu primeiro confronto com a morte, nas praias idílicas dos verões da infância, passando pelos conflitos familiares e pelas realizações profissionais da idade adulta, até a velhice, quando ele fica dilacerado ao constatar a deterioração de seus contemporâneos e dele próprio, atormentado por uma série de males físicos.
Artista comercial de sucesso, trabalhando numa agência publicitária em Nova York, ele tem dois filhos do primeiro casamento, que o desprezam, e uma filha do segundo casamento, que o adora. É amado pelo irmão, um homem bom cuja saúde perfeita termina por despertar sua inveja rancorosa, e é também o ex-marido solitário de três mulheres muito diferentes, tendo ele próprio destroçado os três casamentos. No final, é um homem que se transformou naquilo que não quer ser.
O título original da obra, Everyman (literalmente, "Todo homem"), é também o nome de uma peça alegórica do século XV, um clássico da dramaturgia inglesa, cujo tema é a chegada da morte ao mundo dos vivos.

LIVRO VENCEDOR DO PEN/FAULKER 2007

"Philip Roth desmente com maestria a máxima de Georg Luckács, de que é impossível um escritor abarcar todos os fatos da vida." - Nadine Gordimer,The New York Times

"O estilo do romance é simples, comedido, mas também poderosamente humano e de uma verdade implacável." - The Observer
Em torno da sepultura, no cemitério malcuidado, reuniam-se alguns de seus ex-colegas de trabalho da agência publicitária nova-iorquina, relembrando sua energia e originalidade e dizendo a sua filha, Nancy, como fora divertido trabalhar com ele. Havia também pessoas que tinham vindo de carro de Starfish Beach, a comunidade de aposentados na costa de Nova Jersey onde ele morava desde o Dia de Ação de Graças de 2001 - os idosos que recentemente tinham sido seus alunos num curso de pintura. Vieram também os dois filhos, Randy e Lonny, homens de meia-idade, filhos do turbulento primeiro casamento, que eram muito próximos à mãe e que, em conseqüência disso, do pai conheciam pouco de bom e muito de péssimo, e só estavam ali por obrigação, mais nada. O irmão mais velho dele, Howie, e sua cunhada também estavam presentes, tendo vindo da Califórnia de avião na véspera; e também uma de suas três ex-esposas, a do meio, a mãe de Nancy, Phoebe, uma mulher alta, magérrima, de cabelo branco, cujo braço direito pendia inerte ao longo do corpo. Quando Nancy lhe perguntou se ela queria dizer alguma coisa, Phoebe balançou a cabeça, tímida, mas logo em seguida começou a falar em voz baixa, uma fala um pouco arrastada. "É muito difícil de acreditar. Fico lembrando o tempo todo dele nadando na baía - só isso. É o que vejo, ele nadando na baía." E mais Nancy, que havia negociado com a agência funerária e telefonado para as pessoas que compareceram ao enterro, para que não estivessem presentes apenas ela, sua mãe, o irmão e a cunhada dele. Havia uma única pessoa presente que não tinha sido convidada, uma mulher atarracada com um rosto redondo e simpático, de cabelo pintado de ruivo, que simplesmente apareceu no cemitério e apresentou-se como Maureen, a enfermeira particular que havia cuidado dele após a cirurgia de coração, anos antes. Howie lembrava-se dela, e foi dar-lhe um beijo no rosto.
Nancy disse a todos: "Eu queria começar falando alguma coisa a respeito deste cemitério, porque descobri que o avô do meu pai, meu bisavô, não apenas está enterrado na parte mais antiga, ao lado de minha bisavó, como também foi um dos seus fundadores, em 1888. A associação que financiou e construiu este cemitério era formada pelas sociedades funerárias das organizações beneficentes e congregações judaicas dos condados de Union e Essex. Meu bisavô era dono de uma pensão em Elizabeth, que recebia principalmente imigrantes recém-chegados, e ele se preocupava muito com o bem-estar deles, mais do que se espera de um dono de pensão. É por isso que ele estava entre os que compraram a terra e aplainaram o terreno e fizeram o tratamento paisagístico, é por isso que atuou como primeiro diretor do cemitério. Na época, era relativamente jovem, mas tinha muito vigor, e o nome dele é o único que assina o documento em que está especificado que o cemitério se destinava a 'enterrar os sócios falecidos de acordo com as leis e os rituais do judaísmo'. Como vocês podem ver, a manutenção dos túmulos, da cerca e dos portões não é mais como deveria ser. Há coisas apodrecidas e despencadas, os portões estão enferrujados, as trancas desapareceram, houve vandalismo. Com o tempo, o cemitério ficou muito próximo ao aeroporto, e o ruído distante que vocês estão ouvindo é do tráfego constante dos carros na rodovia expressa de Nova Jersey. Naturalmente, de início pensei nos lugares realmente bonitos em que meu pai poderia ser enterrado, os lugares onde ele e minha mãe iam nadar quando eram jovens, as praias que ele freqüentava. No entanto, por mais triste que eu fique quando olho à minha volta e vejo toda essa deterioração - vocês provavelmente também sentem o mesmo, e talvez até se perguntem por que é que estamos reunidos num cemitério tão maltratado pelo tempo -, queria que meu pai ficasse junto das pessoas que o amaram e das quais descendeu. Ele amava seus pais, e é importante que fique perto deles. Eu não queria que ficasse em outro lugar, sozinho". Nancy permaneceu em silêncio por um momento para controlar as emoções. Uma mulher de trinta e poucos anos, de rosto suave, de uma beleza simples, tal como sua mãe outrora, ela não parecia de modo algum uma pessoa investida de autoridade, nem mesmo corajosa; mais parecia uma menina de dez anos sem saber o que fazer. Virando-se para o caixão, pegou um punhado de terra e, antes de lançá-lo sobre a tampa, disse com simplicidade, ainda com um ar de menina perplexa: "Pois é, é isso. Não há mais nada que a gente possa fazer, papai". Então lembrou-se da máxima estóica de seu pai, de tantos anos atrás, e começou a chorar. "Não há como refazer a realidade", disse ela ao pai. "O jeito é enfrentar. Segurar as pontas e enfrentar."
O próximo a jogar terra sobre a tampa do caixão foi Howie, a quem ele cultuava quando os dois eram meninos e que, em troca, sempre o tratara com carinho e afeto, pacientemente ensinando-o a andar de bicicleta, a nadar e a praticar todos os esportes em que ele próprio se destacava. Parecia ainda capaz de correr com uma bola de futebol americano até o meio de campo, e já estava com setenta e sete anos. Jamais fora hospitalizado e, apesar de irmão de seu irmão, permanecera triunfalmente saudável durante toda a vida.
Sua voz estava rouca de emoção quando ele sussurrou para a mulher: "Meu irmão mais novo. Isso não faz sentido". Então dirigiu-se a todos os presentes. "Vamos ver se eu consigo. Vamos falar sobre esse cara. O meu irmão..." Fez uma pausa para organizar as idéias e falar coisa com coisa. O jeito de se exprimir e o tom agradável de sua voz eram tão parecidos com os do irmão que Phoebe começou a chorar, e mais que depressa Nancy tomou-lhe o braço. "Nos últimos anos", disse Howie, olhando para a sepultura, "ele teve problemas de saúde, e também estava solitário - um problema também muito sério. A gente conversava pelo telefone sempre que podia, se bem que, quando se aproximou o final da vida, ele tenha se afastado de mim, por motivos que nunca ficaram claros. Desde o tempo do colegial, ele sentia um impulso irresistível de pintar, e depois que se aposentou da firma de publicidade, onde teve muito sucesso, primeiro como diretor de arte e, após ser promovido, como diretor de criação - depois de toda uma vida trabalhando como publicitário, ele pintou praticamente todos os dias de todos os anos que lhe restaram de vida. Dele podemos dizer o que certamente foi dito por todos aqueles que amavam quase todos os que estão enterrados aqui: ele deveria ter vivido mais. Deveria, sim." Após um momento de silêncio, a expressão de dor e resignação em seu rosto foi substituída por um sorriso melancólico. "Quando entrei para o colegial e comecei a fazer treinamento esportivo na parte da tarde, ele assumiu as tarefas que antes era eu que fazia para meu pai depois das aulas. Ele adorava, com apenas nove anos de idade, levar os diamantes num envelope no bolso do paletó, ir de ônibus a Newark, onde o cravador, o gemólogo, o lapidário e o relojoeiro, nosso pai, ficavam cada um sentado em seu cubículo, lá na Frelinghuysen Avenue. Essas viagens davam um prazer imenso àquele menino. Tenho a impressão de que foi ao ver os artesãos trabalhando sozinhos naqueles lugares espremidos que meu irmão teve a idéia de usar as mãos para criar obras de arte. Creio que foi também ao examinar as facetas dos brilhantes através da lupa de meu pai que ele sentiu vontade de fazer arte." De repente Howie foi dominado por um riso, uma rápida trégua no meio daquela tarefa, e disse: "Eu era o irmão convencional. Em mim, os brilhantes despertaram a vontade de ganhar dinheiro". Depois retomou o fio da meada, voltando o olhar para a ampla e ensolarada janela da infância. "Nosso pai punha um pequeno anúncio no Elizabeth Journal uma vez por mês. Na época de festas, entre o Dia de Ação de Graças e o Natal, ele mandava publicar o anúncio toda semana. 'Troque seu relógio velho por um novo.' Todos aqueles relógios velhos que se acumulavam - a maioria já sem conserto - eram jogados numa gaveta nos fundos da loja. Meu irmãozinho ficava horas sentado ali, fazendo os ponteiros andar e ouvindo o tique-taque dos que ainda andavam, examinando cada mostrador, cada estojo. Era disso que ele gostava. Cem, duzentos relógios velhos, a gaveta inteira provavelmente não valia mais que dez dólares, mas para ele, com o olho de artista que já estava desenvolvendo, a sala dos fundos era um baú de tesouro. Pegava aqueles relógios e punha no pulso - sempre andava com um relógio tirado daquela gaveta. Um dos que ainda funcionavam. E os que queria fazer funcionar porque gostava da cara deles, esses ele tentava consertar, mas não conseguia - no mais das vezes, ficavam piores ainda. Mas, enfim, foi assim que ele começou a usar as mãos em tarefas meticulosas. Meu pai sempre tinha duas moças recém-saídas do colegial, adolescentes ou de vinte e poucos anos, que o ajudavam no balcão da loja. Moças simpáticas e boazinhas de Elizabeth, bem-educadas, decentes, sempre cristãs, principalmente católicas irlandesas, filhas e irmãs e sobrinhas de empregados da fábrica de máquinas de costura Singer, ou da companhia de biscoitos, ou do cais do porto. Ele achava que a presença daquelas mocinhas cristãs bem-educadas fazia os fregueses se sentirem mais em casa. Quando um freguês pedia, as moças experimentavam as jóias, atuavam como modelos para eles, e às vezes a gente tinha sorte e vendia. Meu pai dizia que, quando uma moça bonita usa uma jóia, as outras mulheres ficam achando que se usarem a mesma jóia vão ficar tão bonitas quanto ela. Os trabalhadores do cais do porto que vinham comprar alianças de noivado ou de casamento às vezes tinham a temeridade de segurar a mão da vendedora para examinar a jóia mais de perto. Meu irmão também gostava de ficar com aquelas moças, muito antes de ter idade para entender por que é que a presença delas lhe dava tanto prazer. Ele as ajudava a esvaziar a vitrine e os mostruários no final do expediente. Era capaz de fazer qualquer coisa pra ajudá-las. Eles tiravam da vitrine e dos mostruários quase tudo, só ficavam as peças mais baratas, e logo antes de fechar a loja o menininho abria o cofre grande da sala dos fundos com o segredo que meu pai já lhe havia confiado. Era eu que antes fazia todas essas tarefas, e eu também tentava me aproximar o máximo das garotas, especialmente de duas irmãs louras que se chamavam Harriet e May. Ao longo dos anos foram muitas, Harriet, May, Annmarie, Jean, e mais Myra, Mary, Patty, e Kathleen e Corine, e todas elas gostavam daquele menino. A Corine, que era muito bonita, instalava-se na bancada da sala dos fundos no início de novembro, e ela e meu irmão endereçavam os catálogos que a loja mandava imprimir e enviava a todos os clientes antes do período de festas, quando meu pai abria a loja seis noites por semana e todo mundo se matava de tanto trabalhar. Se a gente dava ao meu irmão uma caixa de envelopes, ele conseguia contá-los mais depressa que qualquer um, porque os dedos dele eram muito ágeis e ele contava os envelopes de cinco em cinco. Eu ia à sala dos fundos dar uma olhada, e não dava outra - lá estava ele a se exibir pra Corine, contando envelopes. Era impressionante como gostava de fazer tudo o que devia ser feito para ser o filho confiável do joalheiro! Era este o elogio favorito de nosso pai: 'confiável'. Durante muitos anos, ele vendeu alianças para os irlandeses, alemães, eslovacos, italianos e poloneses de Elizabeth - em sua maioria, operários jovens e sem dinheiro. Muitas vezes, depois que ele fazia a venda, nós éramos convidados, toda a família, para o casamento. As pessoas gostavam do meu pai - ele tinha senso de humor, mantinha os preços baixos e vendia fiado pra qualquer um; e assim nós íamos, primeiro à igreja, depois à festa animada. Veio a Depressão, veio a guerra, mas enquanto isso as pessoas se casavam, as moças trabalhavam no balcão, e a gente ia de ônibus a Newark com centenas de dólares em diamantes guardados em envelopes nos bolsos de nossos casacos de lã. Em cada envelope nosso pai anotava as instruções para o cravador ou o gemólogo. Havia um cofre Mosley de um metro e meio de altura, com fendas nas laterais onde se encaixavam as bandejas de jóias que a gente guardava cuidadosamente todas as noites e retirava todos os dias de manhã... E tudo isso era o cerne da vida de meu irmão como um bom menino." Os olhos de Howie fixaram-se no caixão outra vez. "E agora, o quê?", perguntou ele. "Acho melhor ficar por aqui. Eu poderia continuar, lembrar ainda mais coisas... Mas por que não lembrar? O que é que tem derramar mais um litro de lágrimas, entre familiares e amigos? Quando nosso pai morreu, meu irmão me perguntou se eu me incomodava se ele ficasse com o relógio dele. Era um Hamilton, feito em Lancaster, Pensilvânia, e segundo o perito, o patrão, era o melhor relógio já feito neste país. Sempre que vendia um Hamilton, nosso pai dizia ao freguês que ele havia feito a melhor escolha. 'Veja só, eu mesmo uso um. Um relógio muitíssimo respeitado, o Hamilton. A meu ver', dizia ele, 'é o melhor relógio feito nos Estados Unidos, de longe.' Custava setenta e nove dólares e cinqüenta centavos, se não me falha a memória. Naquele tempo os preços todos terminavam com cinqüenta centavos. O Hamilton tinha uma tremenda reputação. Era mesmo um relógio de classe, meu pai adorava o dele, e, quando meu irmão disse que queria ficar com ele, fiquei felicíssimo. Ele poderia ter escolhido a lupa e o estojo de carregar diamantes de nosso pai. Era um estojo de couro já gasto que ele levava no bolso do casaco sempre que saía da loja a trabalho: dentro tinha uma pinça, umas chaves de fenda minúsculas e a escala, uma série de pequenos aros para medir o tamanho de uma pedra redonda, e os papeizinhos brancos dobrados pra guardar diamantes soltos. Eram coisas pequenas e belas, importantes para ele, sempre perto das mãos ou do coração dele, e no entanto resolvemos enterrar a lupa e o estojo com tudo o que havia dentro junto com nosso pai. Ele sempre levava a lupa num dos bolsos e os cigarros no outro, por isso enfiamos a lupa dentro da mortalha. Lembro de meu irmão dizendo: 'Na verdade, a gente devia mesmo era pôr no olho dele'. Para vocês verem o que a dor faz com a gente. Nós ficamos atordoados. Não sabíamos o que mais fazer. Certo ou errado, foi isso que achamos que tínhamos que fazer. Porque essas coisas não apenas pertenciam a ele - elas eram ele... Para terminar a história do Hamilton, o velho Hamilton do meu pai, que a gente dava corda todos os dias e puxava o pino para poder mexer nos ponteiros... meu irmão usava esse relógio dia e noite, menos quando ia nadar. Só o tirou do pulso em caráter definitivo há quarenta e oito horas. Ele o entregou à enfermeira para que ela o guardasse enquanto estava sendo operado - foi a operação que o matou. No carro, a caminho do cemitério hoje de manhã, minha sobrinha Nancy me mostrou que tinha colocado mais um elo na pulseira, e agora é ela que está usando o Hamilton."
Então vieram os filhos, homens de quarenta e muitos anos que, com seus cabelos negros e luzidios, seus olhos negros eloqüentes e o sensual volume de suas bocas largas e idênticas, eram iguaizinhos ao pai (e ao tio) na idade deles. Homens bonitões, já começando a engordar, que, ao que parecia, eram tão unidos quanto eram irremediavelmente rompidos com o pai. O mais moço, Lonny, foi o primeiro a se aproximar da sepultura. Mas, depois que pegou um torrão de terra, todo seu corpo começou a tremer, a sacudir-se, dando a impressão de que ele estava prestes a vomitar com violência. Fora acometido por uma onda de sentimento pelo pai, um sentimento que não era de antagonismo, mas que o antagonismo o impedia de manifestar. Quando abriu a boca, dela só saiu uma série de sons sufocados, grotescos, como se a emoção que o dominava fosse algo que jamais o deixaria em paz. Seu estado era tão deplorável que Randy, o filho mais velho, mais decidido, o filho mais crítico, imediatamente veio salvá-lo. Tirou de sua mão o torrão de terra e jogou-o em cima do caixão pelos dois. E não teve nenhuma dificuldade em falar quando chegou sua vez. "Dorme em paz, papai", disse Randy, e era aterrador constatar que não havia em sua voz o menor toque de ternura, dor, amor ou perda.
A última pessoa a se aproximar do caixão foi a enfermeira, Maureen, que parecia ser uma batalhadora, alguém que tinha familiaridade com a vida tanto quanto com a morte. Quando deixou, com um sorriso, que a terra escorresse lentamente por entre os dedos da mão entreaberta, caindo sobre o caixão, o gesto pareceu o prelúdio de um ato carnal. Não havia dúvida de que aquele homem era alguém que tivera outrora alguma importância para ela.
E assim terminou. Não se chegara a nenhuma conclusão. Todos tinham dito o que tinham a dizer? Não, e ao mesmo tempo é claro que sim. Em todo o estado, naquele dia, tinha havido quinhentos funerais como este, rotineiros, normais e, tirando os trinta segundos inesperados proporcionados pelos filhos - e tirando a ressurreição efetuada por Howie, com tamanha precisão, do mundo inocente que existia antes da invenção da morte, a vida perpétua naquele éden criado pelo pai, um paraíso com apenas cinco metros de fachada e doze de profundidade, disfarçado de joalheria tradicional -, nem mais nem menos interessante que os outros. Por outro lado, é justamente o que há de normal nos funerais o que os torna mais dolorosos, mais um registro da realidade da morte que avassala tudo.
Minutos depois, todos já haviam ido embora - cansados, chorosos, deixando para trás a atividade menos atraente a que se entrega a espécie humana - e ele ficou só. É claro que, tal como ocorre quando qualquer pessoa morre, embora muitos estivessem sofrendo, outros permaneciam indiferentes, ou se sentiam aliviados, ou então, por motivos bons ou maus, estavam na verdade satisfeitos.
[...]
Fonte:http://www.companhiadasletras.com.br/trecho.php?codigo=12287
Vencedor do prêmio PEN/Faulkner Award em 2001
www.penfaulkner.org

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por Vinícius Lacerda
Homem comum é o livro de Philip Roth que tem o protagonista sem nome e morto. No início do romance o relato do enterro em um cemitério judeu conta sobre a presença de alguns amigos do protagonista e de sua segunda esposa, Phoebe, a única das mulheres que realmente o amou e que foi trocada por uma modelo de 24 anos no passado.

Saber que o protagonista morre no final não é nenhum spoiler do livro, pois a complexidade e a profundidade da obra de Roth passam por caminhos mais subjetivos que são mostrados por meio de flashbacks. A infância na cidade de Elizabeth, a saúde frágil, a questionável posição paternal e seu fraco por mulheres elucidam como este homem combate - tem medo - da morte que, como sabemos, chegou até ele.

Em "Homem comum", Philip Roth descreve a velhice de forma crua o que pode ser visto apenas como um fato pessimista ou uma forma real de narrar esse estágio avançado da vida de forma comum e, sendo assim, mais recorrente a todos os homens. Talvez não seja indicado para pessoas que sofrem de depressão ou que tenham medo de se descobrirem simplesmente ordinários.

- SOBRE O AUTOR



Philip Roth nasceu em Newark, Nova Jersey (EUA) em 1933. É filho de país judeus fato que explicaria a exploração do tema em diversos de seu livros. Lançou seu primeiro livro, "Goodbye, Columbus", em 1959. Desde então, publicou diversos livros e contos, ficção e não-ficção, que foram vencedores de prêmios. Assim como Fernando Pessoa, ficou conhecido também por meio de seu alter-ego, Nathan Zuckerman, que foi protagonista de diversos de seus livros.

Resumir o conjunto de uma obra tão extensa como a de Roth pode ser um caminho escuro e espinhoso. Contudo, com a ajuda do site do próprio escritor e relatos, pode-se concluir que seus livros trazem grande carga autobiográfica - incluindo alternância entre as pessoas da narrativa -, a cultura dos judeus americanos de classe média e temas como desejo sexual, humor e a histeria por meio do monólogo íntimo. Exceções existem e estão presentes na obra "As melhores intenções" como nos conta o blog Livros Abertos.

Questionado sobre o futuro da leitura em 2009, fez a seguinte afirmação: "Para ler um romance é necessário muita concentração, foco e devoção à leitura. E isso é difícil para um grande número de pessoas. Na verdade, apenas um pequeno número de pessoas consegue essa concentração". Recentemente,criticou a Wikipedia por ter seu pedido de modificação sobre o livro "Humain Stain" negado pelos administradores.

- SOBRE O PRÊMIO

Em 1949, o escritor William Faulkner foi agraciado como Nobel de Literatura. Ele doou a quantia recebida para a criação da Faulkner Foundation cuja responsabilidade seria de dar suporte e encorajar novos escritores. Atualmente, a Fundação é responsável, juntamente com a Internacional PEN – associação internacional de escritores -, pelo PEN/Faulkner Award for Fiction. O prêmio tem como objetivo estimular a produção de cidadãos estadunidenses premiando-os as melhores obras escolhidas por um comissão formada por três pessoas.
Fonte:http://cafecomletras.com.br/Phillip-Roth-Homem-Comum

Adentrei o mundo de Philip Roth lendo O Complexo de Portnoy, sobre o qual escrevi aqui. Trata-se de um livro que aborda um tema sério, mas no qual predomina o bom humor, a finíssima ironia. Homem comum, livro escrito em 2006 é tudo, menos bem humorado. Narra a história de um homem comum (único personagem do livro a não receber um nome) que vive à espera da morte, enquanto a combate. Dono de uma saúde frágil, visitante freqüente das salas de cirurgias, este judeu teve pais exemplares, mas não foi um. Sempre teve um fraco por mulheres, e por isso mesmo morreu sozinho, depois de três complicados casamentos. Publicitário de sucesso que sempre sonhou ser pintor, ele ao mesmo tempo em que admira o irmão mais velho, Howie, inveja-lhe a ótima saúde. Não é um homem de grandes pretensões, grandes realizações, mas um homem comum, que viveu como milhões de outros e, como esses mesmos milhões, não quer morrer, mas morrerá como todos eles.
E o livro se agarra à morte – ou ao medo que o homem tem dela – e vai visitando cada momento de sua vida por meio de um narrador que não se envergonha de aqui ou acolá emitir sua opinião, geralmente pessimista. É um livro proibido para pessoas que tendam à depressão, porque não há esperança nesse homem comum. Ele não acredita em Deus, nem em reencarnação, nem que haja qualquer sentido para a vida além de aproveitar os poucos anos que lhe foram dados para viver. Mesmo quando já velho e impossibilitado de fazer tudo o que mais gostava, ainda assim ele quer viver, quer continuar existindo.
Há um determinado momento em que ele conversa com uma senhora bastante idosa e doente, que depois de contar-lhe seus problemas, diz:
“Ah, mil desculpas. Eu realmente peço desculpas. Todo mundo aqui tem problemas. Não há nada de especial na minha história, e desculpe eu fazer você me aturar. Você provavelmente também tem a sua história.”
Li este livro durante um longo voo, por meio do qual iniciei uma longa viagem que me deixará por um longo tempo longe da minha família. Creio que meu estado de espírito – a dor provocada pela antecipação da saudade – contribuiu para a minha impressão em relação ao livro, mas começo a ficar fã de Philip Roth e estou bastante intrigado em relação a ele, ansioso pelo que poderei encontrar no próximo livro que ler.
A passagem a seguir ilustra o pessimismo do homem comum – um pessimismo do qual não compartilho, ressalto:
“De repente, ele estava perdido no nada, no som das duas sílabas “na-da” tanto quanto no nada em si, perdido, à deriva, e o terror começou a instilar-se nele. Não há nada que não traga riscos, pensava ele, nada, nada – nada que não termine mal, nem mesmo uma bobagem como pintar quadros.”
Por José Leonardo Ribeiro Nascimento
Fonte:http://catalisecritica.wordpress.com/2012/01/12/homem-comum-philip-roth/
Fraquezas da carne
Philip Roth é conhecido por sua abordagem
crua do sexo. E ele trata a morte da mesma forma

Jerônimo Teixeira
Douglas Healey/AP
Philip Roth: um escritor contempor�neo capaz de encarar uma queda-de-bra�o com Tolstoi

VEJA TAMBÉM
Exclusivo on-line• Trecho do livro
Homem Comum (tradução de Paulo Henriques Britto; Companhia das Letras; 136 páginas; 31 reais), romance breve do americano Philip Roth recém-lançado no Brasil, é uma espécie de A Morte de Ivan Ilitch do século XXI. Na também breve obra-prima do russo Leon Tolstoi, publicada em 1886, um juiz moribundo percebe como sua vida foi vazia e convencional. No livro de Roth, um publicitário (e artista plástico frustrado) faz um percurso similar ao longo de sucessivas internações para tratar de problemas de saúde. Os médicos que o acompanham são mais competentes e mais bem equipados do que os charlatões que cuidam do pobre Ivan Ilitch, mas a conclusão básica de Homem Comum é igualmente desoladora (ou talvez ainda mais desoladora, já que Roth, um judeu secular, não acredita no consolo cristão que embalou a fase final de Tolstoi): qualquer sentido que se encontre na vida é fátuo diante do fim inescapável.
Aos 74 anos, Roth é um dos poucos escritores contemporâneos que podem se bater em queda-de-braço com um gigante do porte de Tolstoi. Não será exagero dizer que seus vastos painéis da vida americana – como a trilogia formada por Pastoral Americana, Casei com um Comunista A Marca Humana – são parentes espirituais da radiografia social realizada por Tolstoi em livros como Ana Karenina. Não, o adultério não tem mais o poder de perturbar a ordem social, como acontecia nesses clássicos do século XIX. Mas, pelo menos desde o escandaloso sucesso de O Complexo de Portnoy, de 1969, Roth descobriu outra força motriz para sua ficção, um poder mais básico e incômodo (especialmente para o puritanismo americano): o sexo. Em Homem Comum, a carne fraca representa ao mesmo tempo liberdade e danação. A felicidade pode ser um momento de amor ao ar livre, na praia, com Phoebe, a única mulher com quem o protagonista estabelece uma conexão humana verdadeira. Mas é a irresistível atração sexual por outras mulheres – em especial a modelo Merete – que vai arruinar seu casamento com Phoebe.
O sexo é sobretudo uma imposição do corpo – como a doença e a velhice. Homem Comum acompanha com minudência obsessiva, quase hipocondríaca, o histórico médico do personagem, de uma trivial operação de hérnia na infância à intervenção cardíaca que causará sua morte (anunciada desde o início do livro, na magistral cena de seu enterro). Acossado por distúrbios variados, o protagonista nutre um ressentimento mesquinho em relação à saúde inabalável do irmão mais velho, Howie.
As mulheres, os filhos, as amantes, os colegas de trabalho do protagonista – todos contam com nomes próprios. Só o "homem comum" não tem essa distinção. O título em inglês, Everyman,vem de uma peça anônima do século XV, um drama moral em que um homem comum reencontra seus valores cristãos depois de uma conversa com a Morte. Roth não oferece uma moral tão simplória. Mas Homem Comum tampouco é um livro amoral. Fica a sugestão de que as escolhas que o personagem faz são determinantes para o vazio que assombra o seu fim. Phoebe ou Howie poderiam estar ao seu lado no hospital, no último momento, se ele não os houvesse afastado com sua traição ou sua atitude fria. Seria um consolo pequeno, claro. Depois do fim, somos todos comuns e sozinhos.

Fonte:http://veja.abril.com.br/190907/p_136.shtml

Um morto comum
"A última pessoa a se aproximar do caixão foi a enfermeira, Maureen. Quando deixou que a terra escorresse lentamente por entre os dedos da mão, o gesto pareceu o prelúdio de um ato carnal. Não havia dúvida de que aquele homem era alguém que tivera outrora alguma importância para ela. E assim terminou. Em todo o estado, naquele dia, tinha havido quinhentos funerais como este, rotineiros, normais. (...) É justamente o que há de normal nos funerais que os torna mais dolorosos, mais um registro da realidade da morte que avassala tudo."
Trecho de Homem Comum

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