A VIDA SECRETA E OCULTA DE JESUS : O OUTRO MESSIAS


O outro Jesus

A Bíblia não diz por onde andou o filho de Maria dos 13 aos 29 anos de idade. Lendas e histórias cultivadas na oralidade e transcritas para livros antigos têm a resposta.

Um homem sábio anda pelo mundo curando doentes e fazendo milagres enquanto prega uma mensagem de paz e amor ao próximo. Parece familiar? Bom, você não é o único que se lembrou de Jesus. Mas essa também é a história de Yus Asaf, curandeiro misterioso que visitou a Caxemira no século 1. E também a lenda de Issa, andarilho que estudou anos com sábios na Índia e no Tibete em busca da iluminação. Ou de Apolônio e de um certo budista. Todos são personagens que viveram no Oriente Médio na época de Cristo e têm biografias repletas de feitos espetaculares e mensagens de sabedoria. São tantas semelhanças que há quem acredite tratar-se todos da mesma pessoa. O que responderia um dos grandes mistérios do cristianismo, a chamada vida secreta de Jesus.
Sim, há algo oculto na biografia do Messias. Ninguém sabe onde ele esteve e o que fez dos 13 aos 29 anos. O Novo Testamento só menciona seu nascimento e uma aparição aos 12 anos, quando ele discute teologia com sábios do Templo de Jerusalém. “Depois disso, há um salto no tempo, e Cristo reaparece já com 30 anos sendo batizado por João, antes de começar sua pregação”, conta o teólogo Joel Antônio Ferreira, professor da Universidade Católica de Goiás.
A ausência de dados não surpreende os estudiosos da Bíblia. “Os evangelhos não têm uma preocupação histórica, pois foram escritos para anunciar uma mensagem religiosa”, justifica o teólogo Pedro Lima Vasconcelos, da PUC de São Paulo. Essa lacuna, no entanto, deu margem a várias especulações, como a de que Jesus passou 17 anos peregrinando pelo mundo. No roteiro, teria visitado a Índia, o Tibete, a China, a Pérsia (atual Irã) e países vizinhos. Alguns defendem que ele chegou até mesmo ao Japão e à Inglaterra. Em cada lugar, o Messias teria convivido com reis, sábios e homens santos de antigas tradições, sempre em busca dos fundamentos e lições de outras religiões e povos.
O pesquisador russo Nicholas Notovich, autor do livro A Vida Desconhecida de Jesus, foi um dos principais defensores dessa teoria. No século 19, ele apresentou manuscritos antigos que narravam a vida de Issa, homem santo que, “ao completar 14 anos, deixou a casa dos pais, em Jerusalém, e partiu com um grupo de mercadores”. Notovich dizia ter encontrado os documentos num mosteiro tibetano e defendia que aquele homem era Jesus. Na opinião dos estudiosos da Bíblia, esse tipo de associação não faz sentido e deve ser encarada com muita cautela. “As religiões da Índia diferem muito das que surgiram no Oriente Médio. Logo, não tem fundamento relacionar Jesus a essas lendas”, diz Vasconcelos. De fato, não existem provas concretas da vida de Jesus, muito menos de todas essas histórias. Mas também não existem provas em contrário.

No rastro do Messias

Conheça alguns dos homens cuja identidade se confunde com a de Jesus
Yus Asaf, o curandeiro
No século 1, o andarilho Yus Asaf (“líder dos curados”, em persa), percorreu o Oriente Médio, realizando milagres e curas semelhantes aos de Jesus. Segundo essa versão, ele não teria morrido na cruz: aos 33 anos, teria seguido para o norte da Índia, onde viveria até os 120 anos. Seu suposto túmulo, em Srinagar, atrai peregrinos até hoje.
Origem: Caxemira.
Fontes: Tahrik-i-Kashmir (“História da Caxemira”) e a escritura hindu Bhavishya Mahapurana.
Quem acredita: seguidores da seita ahmadi, uma corrente do islã, e alguns adeptos do hinduísmo.
Apolônio, Da Capadócia
Lendas e livros antigos contam que Apolônio foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu de uma virgem e partiu jovem para conhecer o mundo. Controlava as leis da natureza, curava doentes e conseguia até evitar guerras. Apesar das coincidências, seu nome era Apolônio, da Capadócia (atual Turquia). Morreu em Éfeso, aos 100 anos. Só faltou ser na cruz.
Origem: Capadócia (atual Turquia).
Fontes: A Vida de Apolônio, livro do século 3.
Quem acreditava: pagãos do Império Romano.
Um botisatva budista
Uma lenda indiana diz que, para salvar Jesus da perseguição do rei Herodes, seus pais foram para o Egito. No caminho, ele teria convivido com budistas em Alexandria. O contato de Jesus com o budismo também está em A Vida de São Issa. Escrito no século 2, o texto fala de um profeta de Jerusalém que estudou num mosteiro do Nepal. Até hoje, budistas consideram Jesus um botisatva, “homem iluminado”, em sânscrito.
Origem: Egito, Índia e Tibete.
Fontes: A Vida de São Issa.
Quem acredita: alguns budistas.
Issa, o profeta
O Alcorão conta que o filho de Maria nasceu num dia de sol, na sombra de uma tamareira. Nesse livro, Jesus é conhecido como Issa, profeta da linhagem iniciada por Abraão e concluída por Maomé. Nessa versão, o suposto Jesus também não morre na cruz. “Não sendo, na realidade, certo que o mataram nem o crucificaram, mas o confundiram com outro”, diz o versículo 157, da 4ª surata.
Origem: Oriente Médio.
Fonte: Alcorão.
Quem acredita: muçulmanos.
 
Fonte:http://super.abril.com.br/religiao/outro-jesus-447677.shtml
 

Os anos ocultos de Jesus

O que ele fez antes dos 30 anos? A Bíblia não conta. Mas a história e a arqueologia têm muito a dizer

Novo Testamento contém 27 livros, 7 956 versículos e 138 020 palavras. E uma única referência à juventude de Jesus. O Evangelho de Lucas nos conta que, aos 12 anos, ele viajou com os pais de Nazaré a Jerusalém para celebrar o Pessach, a Páscoa judaica. Quando José e Maria retornavam a Nazaré, perceberam que Jesus tinha ficado para trás. Procuraram o garoto durante 3 dias e decidiram voltar ao Templo, onde o encontraram discutindo religião com os sacerdotes. "E todos que o ouviam se admiravam com sua inteligência" (Lucas 2:42-49).

Isso é tudo. Jesus só volta a aparecer no relato bíblico já adulto, por volta dos 30 anos, ao ser batizado no rio Jordão por João Batista. É quando o conhecemos realmente. Da infância, as Escrituras falam sobre o nascimento em Belém, a fuga com os pais para o Egito - para escapar de uma sentença de morte impetrada por Herodes, rei dos judeus - e a volta para Nazaré. Da vida adulta, o ajuntamento dos apóstolos e a pregação na Galileia, além do julgamento e da morte em Jerusalém. Mas o que aconteceu com Jesus entre os 12 e os 30 anos? Qual foi sua formação, o que moldou seu pensamento nesses 18 "anos ocultos"? Afinal, o que ele fez antes de profetizar na Galileia?

A notícia para quem deseja reconstruir o Jesus histórico é que novas análises dos Evangelhos, documentos históricos e achados arqueológicos nos dão pistas sobre a sociedade da época. E dessa forma podemos chegar mais perto de conhecer o homem de Nazaré. E entender o que passava em sua cabeça.


O pedreiro cheio de irmãos

Uma coisa é certa. Aos 13 anos, Jesus celebrou o bar mitzvah, ritual que marca a maioridade religiosa do judeu. E é bem provável que ele tenha seguido a profissão de José, seu pai. Carpinteiro? Talvez não. "Em Marcos, o mais antigo dos Evangelhos, Jesus é chamado de tekton, que no grego do século 1 designava um trabalhador do tipo pedreiro, não necessariamente carpinteiro", diz John Dominique Crossan, um dos maiores especialistas sobre o tema. Para o historiador, os autores de Mateus e Lucas, que se basearam em Marcos, parecem ter ficado constrangidos com a baixa formação de Jesus. E deram um jeito de melhorar a coisa. Mateus (13:55) diz que o pai de Jesus é que era tekton. E Lucas omitiu todo o versículo.

As mesmas passagens de Marcos e Mateus informam que Jesus tinha 4 irmãos (Tiago, José, Simão e Judas), além de irmãs (não nomeadas). Mas dá para ir mais longe a partir dessa informação. "Se os nomes dos Evangelhos estão corretos, a família de Jesus era muito orgulhosa da tradição judaica. Seus 4 irmãos tinham nomes de fundadores da nação de Israel", diz a historiadora Paula Fredriksen, da Universidade de Boston. "Seu próprio nome em aramaico, Yeshua, recordava o homem que teria sido o braço direito de Moisés e liderado os israelitas no êxodo do Egito, mais de mil anos antes."

Assim, a família teria pelo menos 9 pessoas, mas nem por isso era pobre. Nazaré ficava a apenas 8 km de Séforis - um grande centro comercial onde o rei Herodes, o Grande, governava a serviço de Roma. Com a morte dele, em 4 a.C., militantes judeus se revoltaram contra a ordem política. Deu errado: o general romano Varus chegou da Síria para reprimir os rebeldes. E seu amigo Gaio completou o serviço, queimando a cidade. "Homens foram mortos, mulheres estupradas e crianças escravizadas", diz Crossan. Mas a destruição de Séforis teve um lado positivo: Herodes Antipas, filho do "o Grande", transformou o lugar num canteiro de obras. Isso trouxe uma certa abundância de empregos para a região. Um pequeno boom econômico. Então o ambiente ao redor da família de Jesus não era de privações. "A reconstrução da cidade deve ter gerado muito trabalho para José", diz Paula Fredriksen.

Jesus nasceu no ano da destruição da cidade, 4 a.C. Ou perto disso. O Evangelho de Mateus diz que Jesus nasceu no tempo de Herodes, o Grande (4 a.C. ou antes). Lucas coloca o nascimento na época do primeiro censo que o Império Romano promoveu na Judeia. E isso aconteceu, segundo as fontes históricas romanas, em 6 a.C. A única certeza, enfim, é que "foi por aí" que Jesus nasceu. E que o ódio contra o que os romanos tinham feito em Séforis permeava o ambiente onde ele viveu. "Não é difícil imaginar que Jesus pensou muito sobre os romanos enquanto crescia", diz Crossan.

Na década de 20 d.C., quando Jesus estava nos seus 20 e poucos anos, o sentimento antirromano cresceu mais ainda. Pôncio Pilatos assumiu o governo da Judéia cometendo o maior pecado que poderia: desdenhar da fé dos judeus no Deus único.

Mas, em vez de se unir contra o romano, os judeus se dividiram em seitas. Os saduceus, por exemplo, eram os mais conservadores. Os fariseus eram abertos a ideias novas, como a ressurreição - quando os justos se ergueriam das tumbas para compartilhar o triunfo final de Deus. Os essênios viviam como se o fim dos tempos já tivesse começado: moravam em comunidades isoladas, que faziam refeições em conjunto seguindo estritas leis de pureza. Já os zelotes defendiam a luta armada contra os romanos.

Em qual dessas seitas Jesus se engajou na juventude? Não há consenso entre os pesquisadores. Para alguns, porém, existem semelhanças entre a dos essênios e o movimento que Jesus fundaria - ambas as comunidades viviam sem bens privados, num regime de pobreza voluntária, e chamavam Deus de "pai". Essa hipótese ganhou força com a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, em 1947. Eles trouxeram detalhes sobre uma comunidade asceta de Qumran, que viveu no século 1 e estaria associada aos essênios. O achado ar-queológico não provou a ligação entre Jesus e essa seita. Até porque os essênios eram sujeitos reclusos, ao passo que Jesus foi pregar entre as massas da Galileia e Jerusalém.

Jesus podia não ser essênio. Mas, para alguns estudiosos, seu mentor foi.


João, o mestre

Dois dos 4 Evangelhos começam a falar de João Batista antes de mencionar Jesus. É em Marcos e João. O homem que batizaria Cristo aparece descrito como um profeta que se vestia como um homem das cavernas ("em pelos de camelo") e que vivia abaixo de qualquer linha de pobreza traçável ("comia gafanhotos e mel silvestre").

Para a historiadora britânica Karen Armstrong, outra grande especialista no tema, isso indica que João pode ter sido um essênio. A vocação "de esquerda" que Jesus mostraria mais tarde, inclusive, pode vir da ligação do mestre João com a "sociedade alternativa" dos essênios. "É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus", ele diria mais tarde.

Os Evangelhos não falam de João como mestre de Jesus. Nada disso. Ele apenas reconhece Jesus como o Messias na primeira vez que o vê. Os textos sagrados também informam que ele usava o batismo como expediente para purificar seus seguidores, que deviam confessar seus pecados e fazer votos de uma vida honesta.

Então Jesus aparece pedindo para ser batizado. Na Bíblia, esse é o primeiro momento em que vemos o Messias após aqueles 18 anos de ausência.

Depois de purificado nas águas do rio Jordão, Jesus parte para sua vida de pregação, curas e milagres. A vida que todos conhecem.

Para quem entende esse relato à luz da fé, isso basta. Mas é pouco para quem tenta montar um panorama da vida de Jesus, um retrato puramente histórico de quem, afinal, foi o homem da Galileia que sairia da vida para entrar na Bíblia como o Deus encarnado. E uma possibilidade é que Jesus tenha sido um discípulo de João Batista. Discípulo e sucessor.

As evidências: tal como João Batista, Jesus via o mundo dividido entre forças do bem e do mal. E anunciava que Deus logo interviria para acabar com o sofrimento e inaugurar uma era de bondade. Em suma: tanto um como o outro eram o que os pesquisadores chamam de "profetas apocalípticos". E se os Evangelhos jogam tanta luz sobre João Batista (Lucas fala inclusive sobre o nascimento do profeta, assim como faz com Jesus), a possibilidade de que a relação deles tenha sido mais profunda é real.

O grande momento de oão Batista na Bíblia, porém, não é o batismo de Jesus. É a sua própria morte. Morte que abriria as portas para o nosso Yeshua, o Jesus da vida real, começar o que começou.


E Yeshua vira Cristo

João Batista podia se vestir com pele de animal e se alimentar de gafanhotos. Mas tinha a influência de um grande líder político. Prova disso é que morreu por ordem direta de Antipas. O Herodes júnior tinha violado o 10º mandamento da lei judaica: "Não cobiçarás a mulher do próximo". Não só estava cobiçando como estava de casamento marcado com a ex-mulher do irmão, Felipe. João condenou a atitude do rei publicamente. E acabou executado.

Mateus deixa claro como Jesus, então já com seus 12 discípulos e em plena pregação, recebeu a notícia: "Ouvindo isto, retirou-se dali para um lugar deserto, apartado; e, sabendo-o o povo, seguiu-o a pé desde as cidades". Logo na sequência, o Cristo emenda o maior de seus milagres. Sentido com a fome da multidão que ia atrás dele, pegou 5 pães e dois peixes (tudo o que os apóstolos tinham) e foi dividindo. Passava os pedaços aos discípulos, e os discípulos à multidão. "E os que comeram foram quase 5 mil homens, além das mulheres e crianças" (Mateus 14:21). Horas depois, no meio da madrugada, outro milagre de primeiro escalão: Jesus apareceria para os apóstolos andando sobre as águas.

Esses episódios, claro, são parte da vida conhecida de Jesus (ou da mitologia cristã, em termos técnicos). Mas deixam claro: a morte de João foi importante a ponto de ter sido seguida de dois dos grandes episódios da saga de Cristo.

O filho do pedreiro assumiria o vácuo religioso deixado pelo profeta. Agora sim: Yeshua caminharia com as próprias pernas. E começaria a virar Jesus Cristo. "Ele não só assumiu o manto de João, mas alterou sua doutrina. A diferença interessante entre João Batista e Jesus Cristo é que Jesus ergueu o manto caído de Batista e continuou seu programa mudando radicalmente sua visão", diz Crossan.

Ele continua: "João dizia que Deus estava chegando. Mas João foi executado e Deus não veio". Ou seja: para o pesquisador, Jesus teria ficado tão chocado ante a não-intervenção divina que mudou sua visão sobre o que o Reino de Deus significava.

"João Batista havia imaginado uma intervenção unilateral de Deus. Jesus imaginou uma cooperação bilateral: as pessoas deveriam agir em combinação com Deus para que o novo reino chegasse", diz o pesquisador. Ou seja: não adiantaria esperar de braços cruzados. O negócio era fazer o Reino dos Céus aqui e agora. Como? Primeiro, extinguindo a violência. Mas e se alguém me der um soco, senhor? "Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra" (Lucas 6:29). Depois, amando ao próximo como a ti mesmo, ajudando ao pior inimigo se for necessário, como fez o bom samaritano da parábola famosa... Em suma, a essência da doutrina cristã.


A natividade
Agora, um aparte: chamar de "anos ocultos" apenas a juventude de Jesus é injustiça. O nascimento também é uma incógnita completa. A começar pela data de nascimento: 25 de dezembro era a data em que os romanos celebravam sua festa de solstício de inverno, a noite mais longa do ano. Não porque gostassem de noites sem fim, mas porque ela marcava o começo do fim do inverno. Praticamente todos os povos comemoram esse acontecimento desde o início da civilização - nossas festas de fim de ano, a semana entre o Natal e o Ano-Novo são um reflexo disso. O dia em que Jesus nasceu não consta na Bíblia - foi uma imposição da Igreja 5 séculos depois, para coincidir o nascimento do Messias com a festa que já acontecia mesmo - com troca de presentes e tudo.

"Na verdade, não sabemos nada histórico sobre Jesus antes de sua vida pública, já que os dois primeiros capítulos de Mateus e Lucas [os que relatam o nascimento] são basicamente parábolas, não história", diz Crossan. De acordo com Mateus, José soube num sonho que Maria daria à luz um menino concebido pelo Espírito Santo. Quando Jesus nasce, magos surgem do Oriente e seguem uma estrela que os conduz a Jerusalém. Lá, eles ficam sabendo que o Cristo nasceu em Belém. Seguindo a estrela, os magos chegam à cidade para adorar o menino e lhe regalam com ouro, incenso e mirra. Mas Herodes fica perturbado com o nascimento e manda soldados matarem todos os bebês de até 2 anos em Belém. Assim, José foge com a família para o Egito e depois vai morar em Nazaré, na Galileia, onde Jesus é criado.

"Não há nenhum relato, em qualquer fonte antiga, sobre o rei Herodes massacrar crianças em Belém, ou em seus arredores, ou em qualquer outro lugar. Nenhum outro autor, bíblico ou não, menciona isso", diz o teólogo americano Bart D. Ehrman no livro Quem Foi Jesus? Quem Jesus Não Foi?

No relato de Lucas, o anjo Gabriel vai à casa de Maria, em Nazaré, e lhe avisa que daria à luz um futuro rei. E que o "Filho de Deus" se chamaria Jesus. Maria era uma virgem prometida a José, e o anjo lhe explicou que o filho seria gerado pelo Espírito Santo. Lucas diz que naquela época, "quando Quirino era governador da Síria", um decreto do imperador Augusto obrigou os súditos a se registrar no primeiro censo do Império. Todo mundo devia retornar à cidade de origem para se alistar. Como os ancestrais de José eram de Belém, ele foi com Maria grávida para lá. Jesus nasceu em Belém pouco depois, e foi envolvido em panos na manjedoura. Lá o menino recebeu a visita de pastores e foi circuncidado aos 8 dias, para depois passar a infância em Nazaré.

"Os problemas históricos em Lucas são ainda maiores", diz Ehrman. "Temos registros do reinado de Augusto, e em nenhum deles há referência a um censo para o qual todos teriam de se registrar retornando ao lar dos ancestrais."

Ok, mas afinal por que Mateus e Lucas fazem Jesus nascer em Belém? Bom, de acordo com uma profecia do livro de Miqueias, do Antigo Testamento, o salvador viria de lá. Por que de lá? Porque era a cidade do rei Davi, o mais lendário dos soberanos de Israel.

Depois que o general Pompeu invadiu a Judeia, em 63 a.C., e fez dela província do Império Romano, os profetas passaram a dizer que um rei da linhagem de Davi inauguraria o "reino de Deus". Chamavam essa figura de "o ungido" - já que Davi e outros reis israelitas haviam sido ungidos com óleo. Os Evangelhos foram escritos em grego, o inglês da época. E em grego "ungido" é christos. O Cristo tinha que nascer em Belém. Yeshua provavelmente era de Nazaré mesmo.

Os Evangelhos, por sinal, são obra de autores desconhecidos. É apenas uma convenção dizer que foram escritos por Marcos (secretário do apóstolo Pedro), Mateus (o coletor de impostos), João (o "discípulo amado") e Lucas (o companheiro de viagem de Paulo). Além disso, os escritores não foram testemunhas oculares. "O autor de Marcos escreveu por volta do ano 70. Mateus e Lucas, de 80. E João, no final dos 90", diz Karen Armstrong. E claro: "Eram cristãos. Eles não estavam imunes a distorcer as histórias à luz de suas crenças", diz Ehrman. Afinal, "evangelho" deriva da palavra grega euangélion, que significa "boas novas". O objetivo dos autores não era escrever a biografia de Jesus, e sim propagar a nova fé. Levando isso em conta, chegamos a outra polêmica: os anos considerados como os mais conhecidos da vida de Jesus também são cheios de episódios misteriosos. Vejamos.


Yeshua sai da vida para entrar na Bíblia

Talvez tenha sido em busca de audiência que Yeshua rumou com os discípulos da Galileia para Jerusalém, por volta do ano 30 d.C. Depois de 3 anos pregando na periferia, já seria hora de atuar no palco principal.

Jerusalém era o pivô do fermento espiritual judaico, e milhares de judeus iam para lá na Páscoa. Os Evangelhos nos dizem que Jesus causou um tumulto no local, destruindo as banquinhas de câmbio (que trocavam moedas estrangeiras dos romeiros por dinheiro local cobrando uma comissão), já que seria uma ofensa praticar o comércio em pleno Templo de Jerusalém, o lugar mais sagrado da Terra para os judeus. Por perturbar a ordem pública, ele foi condenado à cruz. Parece historicamente sólido, mas o episódio central do Novo Testamento também é fonte de reinterpretações.

No julgamento, por exemplo, a multidão teria pedido que Barrabás, um assassino, fosse solto em vez de Jesus - já que era "costume" da Páscoa. Esse costume, porém, não é mencionado em nenhum lugar, exceto nos Evangelhos. Além disso, Jesus pode não ter sido exatamente crucificado, mas "arvorificado". É a teoria (controversa, é verdade) do arqueólogo Joe Zias, da Universidade Hebraica de Jerusalém. Suas pesquisas indicam que as vítimas dos romanos eram mais comumente crucificadas em árvores, pregando uma tábua de madeira no tronco para prender os braços do condenado. Seja como for, não há por que duvidar de que ele tenha sido executado. Roma usava e abusava do expediente para tentar manter o controle das regiões que conquistava. Segundo Flávio Josefo, historiador judeu do século 1, numa só ocasião 2 mil judeus foram executados

A história de Jesus não acaba aí, claro. "Alguns discípulos estavam convencidos de que ele ressuscitara. E que sua ressurreição anunciava os últimos dias, quando os justos se reergueriam das tumbas", diz Armstrong. Para esses judeus cristãos, Jesus logo retornaria para inaugurar o novo reino. O líder do grupo era Tiago, irmão de Jesus, que tinha boas relações com fariseus e essênios. E o movimento se expandiu. Quando Tiago morreu, em 62, Jerusalém vivia o auge da crise política. Em 66, romanos perseguiram os judeus com medo de uma insurgência. Os zelotes se rebelaram e conseguiram manter as tropas do Império afastadas por 4 anos. Com medo de que a rebelião judaica se espalhasse, Roma esmagou os revoltosos. Em 70, o imperador Vespasiano sitiou Jerusalém, arrasou o Templo e deixou milhares de mortos.

"Não temos ideia de como seria o cristianismo se os romanos não tivessem destruído o Templo", diz Armstrong. "Sua perda reverbera ao longo dos livros que formam o Novo Testamento. Eles foram escritos em resposta à tragédia."

Para os pesquisadores, então, os textos sagrados refletem a realidade da Judeia do final do século 1 - e não a do início, a que Jesus viveu de fato. Por exemplo: Barrabás personificaria os sicários, judeus que saíam armados de punhais para matar romanos na calada da noite, como uma forma de vingança pela destruição do Templo. E que por isso mesmo eram assassinos amados pela população.

Quer dizer: Barrabás seria um personagem típico da década de 70 d.C., inserido no episódio da morte de Jesus, fato que aconteceu na década de 30 d.C, num momento em que o ódio aos romanos e o louvor a quem se dispusesse a matá-los não eram tão violentos.

Até a época em que os Evangelhos foram escritos, o movimento de Jesus era apenas um entre as várias seitas judaicas. Os primeiros cristãos se diziam "o verdadeiro Israel" e não tinham intenção de romper com a corrente principal do judaísmo. Mas tudo mudou com a destruição do Templo.

Ela intensificou a rivalidade entre as facções judaicas. "Em sua ânsia por alcançar o mundo gentio (o dos não-judeus), os autores dos Evangelhos estavam dispostos a absolver os romanos da execução de Jesus e declarar, com estridência crescente, que os judeus deviam carregar a culpa", diz Armstrong. João, o Evangelho mais virulento, declara que os judeus são "filhos do Diabo" (João 8:44). Até o autor de Lucas, que tinha uma visão mais positiva do judaísmo, deixou claro que havia um bom Israel (os seguidores de Jesus) e um Israel mau - os fariseus.

A rixa com os fariseus tem lógica, já que eram competidores diretos dos judeus cristãos. "Num extremo do judaísmo estavam os saduceus, a ala mais conservadora. No outro, os essênios, a mais radical. Já os fariseus e os judeus cristãos estavam no meio. Eles lutavam pela mesma coisa: a liderança do povo, que estava entre as duas pontas", diz Crossan.

Não é surpresa, aliás, que os livros do Novo Testamento contenham tantas contradições entre si. "Quando os editores finais do Novo Testamento juntaram esses textos, no início da Idade Média, não se incomodaram com as discrepâncias. Jesus havia se tornado um fenômeno grande demais nas mentes dos cristãos para ser atado a uma única definição", diz Armstrong. Os Evangelhos atribuídos a Marcos, Lucas, Mateus e João seriam finalmente selecionados para o cânon da Igreja. Dezenas de outros evangelhos ficaram de fora.

Só no século 2, quase 100 anos após a morte de Jesus, começam a aparecer relatos sobre ele no centro do Império. Um deles é uma carta do político romano Plínio ao imperador Trajano. Plínio cita pessoas conhecidas como "cristãs" que veneravam "Cristo como Deus". Outra fonte é o historiador romano Tácito, que menciona os "cristãos (...), conhecidos assim por causa de Cristo (...), executado pelo procurador Pôncio Pilatos". Suetônio, que escreveu pouco depois de Tácito, informa sobre uma perseguição de cristãos, "gente que havia abraçado uma nova e perniciosa superstição". Uma "superstição" cuja mensagem convenceria cada vez mais gente, a ponto de, no século 4, o imperador romano em pessoa (Constantino, no caso) converter-se a ela. E o resto é história. Uma história que chega ao seu segundo milênio. Com 2 bilhões de seguidores.


Lost Years
Antes dos 30, Jesus provavelmente teve a mesma formação religiosa dos judeus de sua época. Ou seja: seguia outro Jesus. Outro profeta.


16 anos

O jovem Yeshua (Jesus, em aramaico) tinha 4 irmãos homens e pelo menos duas irmãs mulheres. E cresceu na cidade onde nasceu: Nazaré.


20 anos

Ele pode não ter sido carpinteiro, mas pedreiro. O engano de 2 mil anos seria culpa de um erro de tradução.


28 anos

Na Bíblia, o profeta João apenas batiza Cristo. O mais provável, porém, é que ele tenha sido o grande mentor do jovem Yeshua.


33 anos

Os romanos crucificavam em massa. E também usavam árvores como base. Esse pode ter sido o cenário da morte de Jesus.

Para saber mais

Quem Jesus Foi? Quem Jesus Não Foi?
Bart D. Ehrman, Ediouro, 2009

A Origem do Cristianismo
Karl Kautsky, Civilização Brasileira, 2010


Fonte:http://super.abril.com.br/religiao/anos-ocultos-jesus-634671.shtml

A doutrina do deserto

Eles respeitavam a vida acima de tudo, escreveram os mais antigos textos bíblicos e influenciaram o cristianismo. Com vocês, os essênios

Em 1923, o húngaro Edmond Szekely obteve permissão para pesquisar os arquivos secretos do Vaticano. Estava à procura de livros que teriam influenciado São Francisco de Assis. Curioso e encantado, vagou pelos mais de 40 quilômetros de estantes com pergaminhos e papiros milenares. Viu evangelhos nunca publicados e manuscritos originais de muitos santos e apóstolos, condenados a permanecer escondidos para sempre. De todas essas raridades, uma obra em especial lhe chamou a atenção. Era o Evangelho Essênio da Paz. O livro teria sido escrito pelo apóstolo João e narrava passagens desconhecidas da vida de Jesus Cristo, apresentado ali como o principal líder de uma seita judaica até então pouco comentada – os essênios. Szekely não perdeu tempo. Traduziu o texto e o publicou em quatro volumes. Sentindo-se traída pelo pesquisador, a Igreja o excomungou.
Não foi uma punição tão grave. Considere o que aconteceu com o reverendo inglês Gideon Ouseley. Em 1880, ele achou um manuscrito chamado O Evangelho dos Doze Santos em um monastério budista na Índia. O texto em aramaico – a língua que Jesus falava – teria sido levado para o Oriente por essênios refugiados. Ouseley ficou eufórico e saiu espalhando que tinha descoberto o verdadeiro Novo Testamento. Afirmava que a Bíblia estava incorreta, pois Cristo era um essênio que defendia a reencarnação e o vegetarianismo. Se hoje essa tese soa estranha, dizer isso na Inglaterra vitoriana do século XIX era blasfêmia da pior espécie. Resultado: os conservadores atearam fogo na casa de Ouseley e o original foi destruído.
O mistério que envolve esses dois textos e o tom místico que os descobridores deram aos seus achados acabaram manchando seu crédito diante dos historiadores. Além do mais, teorias exóticas sobre Jesus é o que não falta. Em 1970, o pesquisador inglês John Allegro, que já havia estudado os essênios, tentou provar que Jesus nunca havia existido e que teria sido uma alucinação coletiva causada pela ingestão de cogumelos. Por motivos óbvios, essa teoria não foi muito bem aceita pelos seus colegas cientistas. Segundo eles, Allegro entendia mais de cogumelos do que de Cristo.
Para os historiadores, os essênios seriam até hoje uma nota de rodapé na História se, em 1947, dois pastores beduínos não tivessem por acidente levado a uma das maiores descobertas arqueológicas do século. Escondidos em cavernas próximas ao Mar Morto, em Israel, 813 manuscritos redigidos pelos essênios entre 225 a.C. e o ano 68 da nossa era guardavam as mais antigas cópias do Antigo Testamento, calendários e textos da Bíblia. Perto das cavernas, em Qumran, estavam as ruínas de um monastério essênio e um cemitério com cerca de 1 200 esqueletos, quase todos masculinos.
O achado deu início a um longo e árduo esforço de tradução dos manuscritos por teólogos e cientistas de várias universidades no mundo. Milhares deles estavam em pedaços minúsculos, menores do que uma unha. “Hoje, 90% dos textos já foram transcritos”, diz o teólogo Geza Vermes, da Universidade de Oxford, que pesquisa os manuscritos. O que já é suficiente para moldar uma imagem mais precisa da história, da doutrina, da crença e dos hábitos essênios, que ficaram séculos a fio esquecidos nas ruínas daquele monastério.
O surgimento da doutrina essênia aconteceu em tempos conturbados. Os judeus viveram sob dominação de diversos povos estrangeiros desde 587 a.C., quando Jerusalém foi devastada pelos babilônios, habitantes da atual região do Iraque. Por volta do século II a.C., o domínio era exercido pelos selêucidas, um povo grego que habitava a Síria. A cultura helenista proliferava e a tradição hebraica sofria fortes ameaças. Para recuperar o judaísmo, os israelitas acreditavam na vinda do Messias que chegaria ao final dos tempos para exterminar os infiéis e salvar os seguidores da Bíblia. A chegada do Salvador poderia se dar a qualquer instante.
Os mais ortodoxos seguiam tão à risca os preceitos religiosos e buscavam a ascese e a pureza com tal fervor que ficavam chocados com os hábitos mundanos dos gregos e a presença de leprosos, cegos, surdos e cachorros passeando pela cidade e pelos templos. Entre eles estavam os essênios. Um dia boa parte deles, liderados por um sacerdote, partiu para o Deserto da Judéia (atual Israel) para orar, meditar e estudar as leis sagradas. Longe, bem longe, de tudo o que eles consideravam impuro. Surgia assim o monastério de Qumran, uma das primeiras comunidades monásticas do Ocidente.
A região escolhida para a construção do monastério é a de menor altitude no planeta – 400 metros abaixo do nível do mar. As chuvas são raras e o mar é tão salgado que é impossível mergulhar nele, pois a enorme densidade da água mantém o banhista na superfície. Para prosperar, os bens individuais e as tarefas foram divididos entre toda a comunidade e regras de disciplina e de hierarquia foram instituídas. A presença de mulheres em Qumran, por exemplo, era proibida. Transgressões eram duramente punidas. A interpretação das leis e profecias cabia ao mestre da justiça, o mesmo sacerdote que teria guiado os essênios até Qumran. Ele era respeitado e cultuado por todos e logo virou uma entidade mítica. O guardião, por sua vez, presidia as refeições e decidia as questões a respeito da doutrina, justiça e pureza. Essa figura inspirou a formação da palavra grega “epis copus” (aquele que olha de cima), que foi a origem de “bispo”.
É possível conhecer o dia-a-dia dos essênios a partir do legado do historiador judeu Flávio Josefo (37-100). Aos 16 anos, Josefo recebeu lições de um mestre essênio, com quem viveu durante três anos. Os membros da seita acordavam antes do nascer do Sol. Permaneciam em silêncio e faziam suas preces até o momento em que um mestre dividia as tarefas entre eles de acordo com a aptidão de cada um. Trabalhavam durante 5 horas em atividades como o cultivo de vegetais ou o estudo das Escrituras. Terminadas as tarefas, banhavam-se em água fria e vestiam túnicas brancas. Comiam uma refeição em absoluto silêncio, só quebrado pelas orações recitadas pelo sacerdote no início e no fim. Retiravam então a túnica branca, considerada sagrada, e retornavam ao trabalho até o pôr-do-sol. Tomavam outro banho e jantavam com a mesma cerimônia.
Os essênios tinham com o solo uma relação de devoção. Josefo conta que um dos rituais comuns deles consistia em cavar um buraco de cerca de 30 centímetros de profundidade em um lugar isolado dentro do qual se enterravam para relaxar e meditar.
Diferentemente dos demais judeus, a comunidade usava um calendário solar de 364 dias, inspirado no egípcio. O primeiro dia do ano e de cada mês caía sempre em uma quarta-feira, porque, de acordo com o Gênesis, o Sol e a Lua foram criados no quarto dia. O calendário diferente trouxe vários problemas para os essênios. Outros judeus poderiam atacar o monastério no shabbath – o dia sagrado reservado ao descanso, no qual era proibido qualquer esforço, inclusive o de se defender.
A correta observação das regras garantiria a salvação dos essênios quando chegasse o apocalipse, que seria a vitória dos puros “filhos da luz” contra os “filhos das trevas”. No mundo essênio, aliás, tudo era dividido segundo uma visão maniqueísta que tornava possível até mesmo determinar quantas porções de luz e de escuridão cada um possuía. Um sectário de dedos rechonchudos, coxas grossas e cheias de pêlos teria oito porções na casa das trevas para uma de claridade. No mesmo manuscrito, um outro membro obteve um placar mais favorável. Por ter olhos negros e brilhantes, voz suave, dentes alinhados, dedos longos e canelas lisas seu espírito foi condecorado com oito partes de luz para uma de trevas. Para os essênios, a beleza do corpo também era sinal de pureza espiritual.
Graças a essa organização toda, Qumran produzia tudo de que precisava. A dieta era vegetariana. Os essênios tinham um enorme respeito pela natureza. Nenhum homem poderia sujar-se comendo qualquer criatura viva. A regra permitia uma única exceção. Eles podiam comer peixe, desde que fosse aberto vivo e tivesse seu sangue retirado. As refeições eram frugais, com legumes, azeitonas, figos, tâmaras e, principalmente, um tipo muito rústico de pão, que quase não levava fermento. Eles possuíam pomares e hortos irrigados pela água da chuva, que era recolhida em enormes cisternas e servia como bebida. Além dela, as bebidas essênias se resumiam ao suco de frutas e “vinho novo”, um extrato de uva levemente fermentado. No shabbath, os sectários deveriam passar o dia inteiro em jejum. Os hábitos alimentares frugais e a vida metódica dos essênios garantiam-lhes uma vida saudável. Segundo Josefo, muitos deles teriam atingido idade extraordinariamente avançada.
A água também era canalizada para os banhos rituais, que eles tomavam duas vezes ao dia para se redimir dos pecados e das impurezas do corpo. O ritual consistia em relatar todas as faltas e então submergir. “Essa prática influenciou o batismo e a confissão dos católicos”, diz a historiadora Ruth Lespel, da Universidade de São Paulo. Outro ponto em comum entre os essênios e o catolicismo seria a figura de São João Batista, o profeta que batizou Jesus Cristo. O santo promovia batismos no Rio Jordão numa região próxima a Qumran. Sua postura messiânica era muito próxima à dos essênios. Há quem acredite que, quando foi batizado, Jesus teria visitado o monastério e sido influenciado por sua doutrina.
Há outras relações entre essênios e cristãos. “Existem passagens dos Manuscritos do Mar Morto, aqueles encontrados em 1947 nas cavernas de Qumran, que soam como as do evangelho cristão”, afirma James Vanderkam, da Universidade de Notre Dame, Estados Unidos. Traços da doutrina dos primeiros seguidores de Jesus – como o elogio de uma vida humilde, a proibição do divórcio e a invocação a Deus como um pai – têm ressonância na fé de Qumran. “É possível que essênios e cristãos tenham entrado em contato”, diz o cônego Celso Pedro da Silva, do Mosteiro da Luz, em São Paulo.
Quanto a Jesus Cristo, apesar das descobertas e polêmicas levantadas por Ouseley e Szekely, não há nos manuscritos encontrados nas cavernas do Mar Morto uma única menção a ele. É por isso que a maioria dos pesquisadores duvida da teoria de que Jesus tenha se aproximado dos essênios. “Não existe nenhuma evidência concreta disso”, diz o historiador Nachman Falbel, da USP. Para o exegeta Valmor da Silva, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Jesus pode ter recebido influência das mais diversas correntes do judaísmo, inclusive deles. “Mas não dá para garantir que ele tenha freqüentado uma de suas comunidades.”
Afirmar que Jesus se alimentava apenas de vegetais é ainda mais complicado. “Eu duvido muito que Cristo tenha sido vegetariano, pois ele celebrou a páscoa judaica, que envolve alimentos como ovo, patas de cordeiro e frango”, diz Vanderkam. Fernando Travi, líder da pequena igreja essênia do Brasil, tem um ponto de vista oposto ao de Vanderkam. “Cristo pregava o amor a todos os seres vivos e não matava animais para aliviar a sua fome”, afirma. Assim como ele, os seguidores de Szekely e Ouseley duvidam da veracidade das passagens do Novo Testamento em que Jesus se alimenta de carne. Eles acreditam que essas histórias não passam de invenções criadas pelo apóstolo Paulo, já na segunda metade do século I. A doutrina do vegetarianismo não seria bem recebida pelos judeus, acostumados a fazer sacrifícios e a comer carne, e Paulo teria modificado os evangelhos para tornar o cristianismo mais popular. Um exemplo dessas alterações estaria na passagem do Novo Testamento em que Jesus multiplica pães e peixes para alimentar uma multidão. O Evangelho dos Doze Santos, encontrado por Ouseley traz uma outra versão desse milagre, na qual os peixes são substituídos por uvas.
No ano 68 o monastério de Qumran foi aniquilado numa devastadora investida do exército romano que arrasou a Judéia e destruiu Jerusalém. O ataque era dirigido principalmente aos judeus zelotes, que se insurgiram contra o domínio romano. Qumran, que não era nenhuma fortaleza, foi presa fácil para as legiões do César. Mas nem todos os essênios morreram aí.
Alguns fugiram para Massada onde, aí sim, no ano 73, descobriram o que é um final trágico. O esconderijo, uma fortaleza zelote ao sul de Qumran, localizada no alto de uma colina, parecia impenetrável. Mas 15 000 romanos fizeram um cerco que durou dois anos e metodicamente construíram uma rampa de terra e areia para alcançar o topo da fortaleza. Quando os soldados finalmente invadiram Massada tiveram uma surpresa: todos os 1 000 rebeldes estavam mortos. Em um sorteio, os zelotes haviam escolhido um grupo de soldados para assassinar todos os habitantes da fortaleza e, em seguida, cometer suicídio. Eles preferiram morrer entre os judeus a se tornar escravos dos romanos. Sobraram para contar a história apenas duas mulheres e cinco crianças, que haviam se escondido nos reservatórios de água. O episódio foi relatado por Josefo e provou ser verdadeiro em 1965, quando arqueólogos pesquisaram a região. Eles acharam as marcas dos oito acampamentos romanos e pedaços de cerâmica com inscrições dos nomes dos zelotes, utilizados no dramático sorteio.
Segundo Josefo, os essênios existiam em grande número em diversas cidades da Judéia. Mas algumas variações da seita podem ter ocupado regiões ainda mais distantes. Uma comunidade egípcia do século I, os terapeutas, possuía um modo de vida semelhante ao da seita de Qumran e a mesma divisão entre luz e trevas. Também é possível que ebionitas e nazarenos, duas das primeiras seitas cristãs, sejam descendentes dos essênios. Há quem acredite que os nazarenos formaram uma grande comunidade em Monte Carmel, no norte da Israel atual, que seguia os ensinamentos de Qumran, mas com algumas diferenças. As regras seriam muito próximas daquelas encontradas nos escritos de Szekely e Ouseley. Ao contrário de Qumram, eles não praticavam o celibato e até mesmo formavam famílias. Fanáticos pelo princípio de amar todos os seres vivos, eram muito mais rigorosos em relação ao vegetarianismo: não comiam peixes nem matavam os vegetais para comer (comiam folhas de alface, por exemplo, sem arrancar o pé!).
“Eles viviam em tendas, que mudavam de lugar freqüentemente, pois construções permanentes matariam a relva”, afirma Fernando Travi. Ele acredita que Jesus, apesar de ter passado por Qumran, viveu muito mais tempo em Monte Carmel. A região em que teria existido essa comunidade está próxima ao local em que Jesus nasceu e realizou muitos de seus milagres. Afirma também que Cristo não era conhecido como “Jesus de Nazaré”, mas sim como “Jesus, o Nazareno”.
Algumas dessas comunidades essênias existem, de certa forma, até hoje. Na região sul do Iraque e do Irã, cerca de 38 000 pessoas, os mandeans, mantêm uma tradição muito semelhante à doutrina essênia. Eles afirmam ser seguidores de João Batista e praticam o batismo. Sua origem, no entanto, ainda não é de todo compreendida.
No Ocidente, o essenismo surgiu com a divulgação dos escritos de Szekely e Ouseley. Na sua época, Szekely quase abandonou seus planos de difundir a doutrina quando a tradução rigorosa e detalhada que fez do segundo volume do Evangelho Essênio da Paz não contou com a aprovação de um amigo seu, o escritor Aldous Huxley, autor de Admirável Mundo Novo. “Isto está muito, muito ruim”, disse-lhe Huxley, “é até pior do que o mais chato dos tratados enfadonhos dos escolásticos, que ninguém lê hoje em dia.” Szekely ficou sem fala. Huxley continuou: “Faça-a literária, legível e atraente para os leitores do século XX. Tenho certeza de que os essênios não falavam uns com os outros em notas de pé de página”. A crítica abalou Szekely e ele pôs de lado o trabalho durante muito tempo. Mas, anos mais tarde, seguiu o conselho do amigo e reescreveu o manuscrito inteiro em linguagem contemporânea, mais coloquial. Foi um sucesso. O livro, publicado em 1928, já foi traduzido para dezenas de línguas e vendeu milhões de exemplares em todo o mundo. Com o respaldo editorial, Szekely construiu em 1940 um spa no México onde praticava tratamentos com base nas práticas essênias. Cerca de 350 000 pessoas já se hospedaram no chamado Rancho La Puerta nos seus sessenta anos de existência. Até hoje, muitas pessoas vão ao lugar em busca de um estilo de vida baseado nos ensinamentos de Szekely, que inclui exercícios, meditação e, principalmente, dieta vegetariana.
A alimentação possui um papel central na doutrina encontrada nos evangelhos de Szekely e Ouseley. Ao afirmarem que Jesus era frugívero, ou seja, que ingeria apenas alimentos que não significavam a morte de nenhum ser vivo, como folhas e frutos, eles pregam que as refeições devem ser um momento de compaixão e comunhão com Deus. O contato com a natureza é essencial. Tanto que os novos essênios (veja o quadro nesta página) possuem uma planta em todos os cômodos de sua casa.
Os essênios permanecem como um assunto vivo. Os pergaminhos e evangelhos que eles deixaram são exaustivamente estudados por cientistas e religiosos do mundo inteiro. Seus ensinamentos recrutam milhares de fiéis e, qualquer que seja a relação que mantiveram com Cristo, deixaram, sem dúvida, sua influência impressa no coração e na mente do cristianismo.

Para saber mais
Na livraria: Os Manuscritos do Mar Morto, de Geza Vermes, Editora Mercuryo, São Paulo, 1997.
Os Homens de Qumran, de Florentino Garcia Martínez e Julio Trebolle Barrera, Editora Vozes, Petrópolis, 1996.
O Evangelho Essênio da Paz, de Edmond Szekely, Editora Pensamento, São Paulo, 1997.

Na Internet:
www.essene.org

rkenski@abril.com.br e duda.teixeira@ig.com.br

Filosofia enterrada na areia

Um pouco antes de um ataque romano destruir o monastério de Qumran, os essênios esconderam seus manuscritos em potes de cerâmica e os enterraram em cavernas

Refúgio de eremitas

Em Qumran, cerca de 200 monges essênios viviam sem mulheres, dedicados ao estudo das Escrituras
Banhos
Apesar da falta d’água no deserto, os essênios se banhavam duas vezes ao dia, sempre antes das refeições. Assim acreditavam que purificavam o corpo e a alma

Cisternas
A água da chuva era cuidadosamente armazenada nas cisternas

Escritórios
Aqui foram redigidos centenas de manuscritos

Bons modos à mesa

A refeição essênia era ultra-ritualizada. Gestos incorretos eram punidos com a exclusão da "pureza" , privando o infrator de coisas "puras" como comida, pratos, vestes e rituais

GESTOS
Gesticular com a mão esquerda dava dez dias de exclusão

RISO
Rir tolamente também era condenado. Quem fizesse isso durante uma reunião pegava trinta dias

TRANSPARÊNCIA
Ao esconder parte de suas posses, o infrator ficava excluído da "pureza" por um ano e tinha sua cota de alimentos reduzida em um quarto

A filosofia essênia

Flávio Josefo, historiador judeu do século I, maior referência sobre os essênios até a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto
Szekely pesquisou o pensamento dos essênios durante toda a vida. Uma de suas principais obras é a tradução de um manuscrito encontrado em 1785 pelo historiador francês Constantine Volney em viagens pelo Egito e pela Síria. É um diálogo entre Josefo e o mestre essênio Banus a respeito das leis da natureza. Eis alguns trechos:
Bem – Tudo aquilo que preserva ou produz coisas para o mundo, como “o cultivo dos campos, a fecundidade de uma mulher e a sabedoria de um professor”.
Mal – O que causa a morte, como a matança de animais. Por esse motivo, o sacrifício de bichos, mesmo que para a alimentação, é condenável.
Justiça – O homem deve ser justo porque na lei da natureza as penalidades são proporcionais às infrações. Deve ser pacífico, tolerante e caridoso com todos, “para ensinar aos homens como se tornarem melhores e mais felizes”.
Temperança – Sobriedade e moderação das paixões são virtudes pois os vícios trazem muitos prejuízos à saúde.
Coragem – Ela é essencial para “rejeitar a opressão, defender a vida e a liberdade”.
Higiene – Uma outra virtude essencial dos essênios é a limpeza, “para renovar o ar, refrescar o sangue e abrir a mente à alegria”.
Perdão – No caso de as leis não serem cumpridas, a penitência é simples. Banus afirma que, para se obter perdão, deve-se "fazer um bem proporcional ao mal causado".

Os essênios, hoje

Em 1984, o teólogo e filósofo americano Abba Nazariah fundou a Igreja Essênia de Cristo na cidade de Creswell, no Estado do Oregon, Estados Unidos. Tudo começou em 1966, quando tinha apenas 8 anos de idade. Naquele ano, Abba, que então se chamava David Owen, teria recebido a visita de Jesus Cristo, que, em carne e osso, teria lhe passado a missão de preparar a sua segunda vinda à Terra. Mais tarde, com 17 anos, Owen teria encontrado um egípcio de nome Zadok pedindo carona numa estrada da Califórnia, sentado na posição de lótus – a mesma do Buda. Ele afirmava ser um essênio e acabou ajudando Owen a formar a nova igreja.
Desde então, Abba (o nome significa "pai" em aramaico) tem professado sua teoria e recrutado muitos seguidores. Seus adeptos vivem hoje de acordo com os ensinamentos contidos nas obras de Szekely e Ouseley. Diferentemente dos antigos habitantes da Judéia, os fiéis de hoje não habitam monastérios, mas, assim como os que os precederam, estudam com rigor as escrituras sagradas e reservam o shabbath ao descanso e às orações.
Os novos essênios são despojados. Vestem-se de branco, usam barba longa e cabelos que em alguns casos tocam o chão. Pregam uma vida saudável que passa por uma dieta absolutamente vegetariana e por exercícios espirituais. Fazem relaxamentos, meditações e preces. O reverendo Abba Nazariah foi treinado em várias técnicas de ioga, com especial ênfase no que considera a mais holística e compreensível de todas, a ioga essênia – uma união de dezesseis modalidades da prática indiana. "A saúde depende do amor por todos os seres. Inclusive pelos animais", diz o líder dos essênios americanos.
Segundo a Igreja Essênia de Cristo, depois de dez anos de constante aperfeiçoamento, os fiéis se tornam aptos a receber a visita de Jesus. Eles também acreditam em reencarnação. Para o psicólogo paulista Fernando Travi, líder da igreja essênia no Brasil, "todas as pessoas iniciadas estão aptas a conhecer suas vidas passadas".
As atividades no Brasil são mais modestas. Elas se resumem a reuniões semanais para discutir a doutrina essênia e formas de melhorar a saúde de acordo com os evangelhos de Ouseley e Szekely. "Os essênios ensinam a nos relacionarmos melhor com a natureza e com o Cosmo", afirma Travi.

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