'O Urso': por
que a série de sucesso não admira os chefs abusivos
Por enquanto, um restaurante como o da
produção só parece ser possível na televisão
Por
Aaron Timms
, Em The New
York Times
16/07/2024 10h50 Atualizado há uma
semana
Nesse ambiente, em 2022, surgiu "O Urso", série que parecia assada na brasa dos piores excessos do mundo gastronômico e determinada a buscar uma saída do inferno. Ao longo das duas primeiras temporadas (a terceira foi lançada em 27 de junho), a série mostra Carmen Berzatto, conhecido por todos como Carmy, chef renomado que retorna a Chicago depois que seu irmão se suicida e deixa para ele o restaurante da família. "O Urso" é, ao mesmo tempo, o ponto culminante de duas décadas de veneração aos chefs e um estudo de caso: uma versão melhorada dessa veneração, um apelo para que não se abandone completamente a religião da comida, mas que essa religião passe por uma reforma. E que, ao fazê-la, se crie uma cultura diferente e realmente digna de ser venerada. No mundo real das cozinhas profissionais — com suas margens financeiras estreitas, condições de trabalho estressantes e abusos por parte de hierarquias arraigadas —, "O Urso" talvez seja uma expressão frágil das mudanças que são tão necessárias ao setor. Mas a fantasia televisiva que promove uma cultura de restaurante melhor e mais moral, com chefs melhores e mais morais, é o que torna a série um entretenimento tão inebriante.
Carmy exibe os piores e os melhores elementos do arquétipo do chef-gênio torturado. Durante séculos, a glória da arte desculpou os pecados dos artistas; as pessoas apreciaram com alegria o trabalho de Céline, Picasso, Beethoven e muitos outros, apesar da monstruosidade da personalidade deles. Nossa cultura começou a venerar chefs que exibiam esse tipo de insensibilidade criativa: David Chang, Marco Pierre White, Mario Batali e até Anthony Bourdain. Todos eram, cada um à sua maneira, avatares do mundo da cozinha, obsceno e abusivo, dominado por homens. Seus relatos da vida culinária glorificavam a noção de que o conflito é endêmico e remete à invenção da própria gastronomia.
Tínhamos a tendência de perdoar ou pelo menos ignorar essas características. As viagens de Anthony Bourdain ao país das maravilhas da culinária global ou o espetáculo de Guy Fieri correndo de um restaurante a outro em seu conversível durante um inextinguível e ensolarado verão americano criaram uma sensação generalizada de excitação em torno da comida e todas as suas possibilidades. Na verdade, as coisas nos EUA pareciam estar melhorando como em nenhum outro lugar.
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Mas, nos últimos anos, houve uma mudança profunda e importante nas atitudes públicas. "O Urso" talvez seja mais apreciado como uma espécie de metabolização em tempo real da tensão existente entre temperamento e criação. A série nos apresenta um gênio torturado, mas nos ajuda a entender por que é torturado e enfatiza — o que é mais importante para a mensagem moral da narrativa — que deseja melhorar. No fim das contas, a série se defronta com a seguinte questão: nosso caso de amor com a cultura dos restaurantes pode ser redimido?
As lutas emocionais que se sobrepõem no personagem Carmy estão no centro da ação: o esforço para manter o restaurante funcionando; o empenho para honrar a memória do irmão, um viciado que se tornou emocionalmente distante e destrutivo; a peleja para ultrapassar os limites da invenção culinária, para manter padrões elevados, para fazer boa comida, para ser um bom patrão, para ser uma boa pessoa. Entre os pontos de referência emocionais mais poderosos está um flashback que nos leva à época em que Carmy trabalhava como chef de cozinha em um restaurante sofisticado em Nova York. Interpretado com uma inclinação suplicante por Jeremy Allen White, Carmy se esforça para ficar em dia com os pedidos durante um serviço, quando o chefe do restaurante se aproxima e lhe sussurra ao ouvido uma série de insultos desmoralizantes: "Você é péssimo nisso. Você não é bom nisso. Ande mais rápido", e ainda: "Você não tem talento" e "Você deveria estar morto".
Em certo sentido, Carmy concorda. Mas a série pede que mantenhamos a fé nele e na busca à qual dedicou a vida. A espinha dorsal da narrativa é seu esforço para transformar o amado restaurante barato de seu irmão em um neobistrô inventivo, profissional e elevado — o tipo de restaurante onde o cardápio inclui vinhos pouco conhecidos e saborosos cannoli, o serviço exala autoridade culinária casual e vários dos membros da equipe se referem uns aos outros como "chef". Se a primeira temporada nos jogou de cabeça no caos de um restaurante à beira da destruição e do renascimento e a segunda temporada nos deu um vislumbre da história e das motivações de cada personagem, a terceira temporada promete um tipo diferente de progresso e até mesmo uma sensação de resolução emocional. O poder da série reside em lidar com os dilemas mais importantes dessa indústria — por exemplo, se algo melhor, mais saudável e mais estável pode emergir da cultura da cozinha moderna e se é possível ser artístico, original e esteticamente radical e produzir um trabalho interessante —, mantendo, ao mesmo tempo, o equilíbrio emocional.
Durante todo esse tempo, "O Urso" entendeu e retratou o negócio dos restaurantes em toda a sua feiura. Mas não nos pede que deixemos de adorar os chefs. Simplesmente nos mostra que é possível ter chefs melhores, chefs mais simpáticos, chefs que dominam seus gatilhos emocionais e pontos cegos — que ganhem estrelas do "Guia Michelin", sim, mas que também admitam seus erros e tenham maturidade para pedir desculpas.
Por enquanto, um restaurante como o de "O Urso" parece ser possível só na TV. No entanto, à medida que a série amadurece, pode nos levar além das narrativas simplistas do bem e do mal, do gênio e da tirania, da inspiração e da devastação que marcaram o primeiro estágio de nossa obsessão coletiva por comida, que há muito tempo se tornou uma questão cultural, além de nutricional. Os chefs já eram bons anti-heróis; agora talvez possam ser heróis mais dignos.
* Aaron Timms é crítico da área cultural e está trabalhando em um livro sobre a cultura alimentar moderna
Fonte:https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/07/16/o-urso-por-que-a-serie-de-sucesso-nao-admira-os-chefs-abusivos.ghtml
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