Os desafios e preconceitos enfrentados por adultos autistas
Atraso no diagnóstico e falta de conhecimento da sociedade fazem com que pessoas com Transtorno do Espectro Autista tenham dificuldade em se inserir no mercado de trabalho e conquistar uma vida independente
A leitura que o historiador Gabriel Cardoso Pereira Gama, hoje com 35 anos, fez de uma reportagem sobre síndrome de Asperger foi pontuada por perguntas a Laura Cardoso Pereira, sua mãe, que o acompanhava. “Mãe, é por isso que [na escola primária] meus colegas tiravam meu lanche e atiravam no chão?”, ele queria saber. Foi assim, com 24 anos, em 2009, que ele entendeu por que se sentia tão diferente de outros garotos de sua idade. Gabriel havia sido diagnosticado com síndrome de Asperger, desde 2013 incluída no Transtorno do Espectro Autista (TEA).
O diagnóstico veio como um alívio — tanto para Gabriel quanto para sua mãe. “Isso respondeu por que faço e sei coisas que outras pessoas não fazem nem sabem”, diz ele. Para Laura, foi uma explicação para o que até então ninguém compreendia ao certo: a inteligência acima da média de Gabriel, que aprendeu a ler sozinho aos 3 anos e aos 5 decorou todas as capitais do mundo; a falta de adaptação na escola; a dificuldade para fazer amigos; as peculiaridades com a alimentação — Gabriel parou de comer com 1 ano e meio e até os 5 anos não ingeria alimentos sólidos (hoje faz questão de manter uma alimentação regrada e sem “junk food”). “Sofria muito vendo ele ser discriminado, não tendo amigos. É muito triste ver uma solidão assim. Ele parecia querido pela pessoas e se sentia querido, mas passava os fins de semana sozinho”, conta a artista plástica.
Não foi fácil finalmente ter essa resposta. Todos percebiam que Gabriel tinha um comportamento diferente das outras crianças, mas ninguém sabia ao certo dizer o quê. Foram anos indo de um lado para o outro, em busca de psicoterapia para entender por que o bebê não comia, neurologista e ortopedista para descobrir se havia algo errado na parte motora (ele demorou a caminhar), escolas que o aceitassem e incluíssem nas turmas. “Um médico nos disse que era um problema emocional e que o Gabriel iria dar trabalho, sugeriu que a gente se mudasse para os EUA para buscar um especialista se quiséssemos ter sossego”, lembra Laura.
Embora tenha sido descrito pela primeira vez em 1943 pelo psiquiatra Leo Kanner, naquela época, ainda havia pouca informação sobre o TEA. Na obra “Distúrbios Autísticos do Contato Afetivo”, Kammer descreveu 11 casos de crianças com o que chamou de “um isolamento extremo desde o início da vida e um desejo obsessivo pela preservação da mesmices”. Em 1952, na primeira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM-1), uma das principais referências para pesquisadores e clínicos da área, os sintomas do transtorno foram classificados como um subgrupo da esquizofrenia infantil. Foi só na terceira edição do DSM, em 1980, que o autismo foi reconhecido como uma condição específica, graças à classificação do psiquiatra Michael Rutter como um distúrbio cognitivo.
O diagnóstico
Em 2007, mesmo ano em que a Organização das Nações Unidas instituiu 2 de abril como o Dia Mundial da Conscientização do Autismo, Laura foi visitar a irmã em Portugal. Lá, uma amiga contou a elas sobre o pai, que tinha síndrome de Asperger. “Minha irmã me olhou e disse ‘nossa, Laura, parece o Gabriel’”, lembra. Naquela noite, ela pesquisou tudo o que pode sobre a síndrome na internet. “Quando li aquilo, comecei a chorar.”
De volta ao Brasil, procurou uma psiquiatra especializada em Asperger, que a encaminhou para uma psicóloga comportamental, até finalmente chegarem a outra psicóloga que passou a acompanhar Gabriel. Depois de quase dois anos, quando ele terminou a faculdade, decidiram que era hora de contar a ele sobre sua condição.
Apesar de trazer respostas para o que então não compreendiam direito, na prática pouco mudou na rotina de Gabriel: ele cursa pós-graduação (durante sete anos, foi checador em uma das principais revistas semanais do país), adora dançar e cantar no karaokê, tem amigos queridos e coleciona história das viagens que faz orgulhosamente sozinho (quer dizer, poderia ser melhor se tivesse uma namorada, como tanto faz questão de ressaltar). “[O autismo] aparece na dificuldade de socializar e no comportamento meio infantil às vezes”, diz Laura. Podem ser desde reações consideradas inapropriadas para um homem de 35 anos a uma falta de malícia ou aversão a mudanças na rotina.
Um espectro com vários tons
O caso de Gabriel é bem mais comum do que somos levados a crer. Embora a Organização Mundial da Saúde estime que 1% da população mundial esteja no espectro autista e só no Brasil existam 2 milhões de pessoas com TEA, é impossível reduzi-las a um diagnóstico só. Cada uma tem comportamentos diferentes, com intensidades que variam. Como o nome sugere, o transtorno do espectro autista é mesmo um espectro: o grau varia de casos leves, com comprometimentos sutis na socialização, até os mais graves, com ausência total de contato interpessoal e deficiência mental significativa.
“O autismo é como um degradê de cores do claro ao escuro, com vários tons”, explica o neurologista Marco Antônio Arruda, da Academia Brasileira de Neurologia, que acumula 30 anos de experiência na área. Por mais verossímeis que sejam as interpretações como a de Raymond Babbitt no filme Rain Man, um autista com incríveis habilidades de contagem, que rendeu a Dustin Hoffman o Oscar de melhor ator em 1989, elas não são representativas da realidade. “Quando falamos em autismo, em geral as pessoas têm o estereótipo visto em filmes, mas esses casos em geral são os mais graves, a parte mais 'escura' do espectro, e por sorte são os mais raros.”
Fora do universo da ficção, o transtorno é mais parecido com o que a ativista sueca Greta Thunberg, de 16 anos, descreveu em um post em suas redes sociais: “Eu tenho Asperger e isso significa que, às vezes, eu sou um pouquinho diferente da norma.” A síndrome de Asperger, cujo termo foi cunhado em 1981 pela psiquiatra inglesa Lorna Wing, em referência aos estudos do psiquiatra austríaco Hans Asperger, está no lado mais "claro" do espectro — aliás, só se tornou parte dele em 2013, na quinta edição do DSM. “Por ser mais sutil, é mais difícil de dar o diagnóstico, e não é incomum que ele venha aos 16, 17 anos, ou em uma idade em que o cérebro social é mais exigido”, explica Arruda.
Também não é incomum que adultos com autismo busquem os serviços de saúde pela primeira vez por outros sintomas que podem surgir em decorrência das dificuldades de socialização do transtorno. Segundo a neuropsicóloga Joana Portolese, do Instituto PENSI, entre 37% e 46% dos adultos que recebem o diagnóstico de TEA relatam sintomas de ansiedade ou depressão moderada ou grave. A especialista ressalta, porém, que o diagnóstico tardio não necessariamente significa que o transtorno tem um grau mais leve: pode se tratar ainda de uma consequência da lenta evolução dos estudos e conhecimentos sobre autismo.
Consequência sem causas
Essa evolução possibilitou, principalmente, a identificação dos sintomas logo na infância. Possíveis sinais de autismo são atraso na fala, dificuldade para fixar o olhar, falta de interesse por outras crianças, agressividade, sensibilidade a sons, seletividade alimentar, apego a padrões, comportamento repetitivos como movimento do tronco para frente e para trás. No entanto, eles devem aparecer em conjunto. “Só um sintoma do cérebro social ou sensorial não dá o diagnóstico de autismo”, diz Arruda.
Ainda que não exista cura para o transtorno, o prognóstico é bom. “O autismo não traz prejuízo físico, nem menor longevidade e só melhora com o tempo” diz o neurologista. “É possível melhorar muito e ficar próximo à normalidade, o que faz diferença é o diagnóstico precoce.” Com ele, é possível dar início ao tratamento, que inclui terapia comportamental para ajudar na socialização ou até medicamentos para lidar com problemas que podem fazer parte do quadro, como ansiedade e depressão.
O próximo passo da ciência agora é entender melhor o que causa o TEA. “Não conhecemos ainda todos os mecanismos envolvidos, mas sabemos que é uma soma de fatores genéticos e epigenéticos”, diz Arruda. A hipótese mais aceita é de que se trata de um quadro poligênico, com vários genes envolvidos que, caso se expressem, provocam as alterações neurológicas. O que determina ou não a expressão dos genes são principalmente fatores como nascimento prematuro, baixo peso ao nascer e contaminação ambiental, como poluição. E, mesmo assim, isso nem sempre é válido para todos os casos. “Todo o quebra-cabeça genético e neuroquímico ainda não foi desvendado”, conclui o neurologista.
Adaptação para quem?
Existem hoje no Brasil legislações específicas voltadas para pessoas com TEA. É o caso da Lei Berenice Piana, de 2012, que garante acesso a diagnóstico e tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), educação, trabalho e serviços que proporcionem a igualdade de oportunidades. Também é o caso do Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2015, que aumenta a proteção aos autistas.
Na prática, entretanto, há muito o que melhorar. “Faltam serviços especializados e conhecimentos, existem ainda muitos preconceitos [em relação a pessoas com autismo]”, diz Portolese. Especialmente em adultos, as consequências disso são barreiras maiores para fazer a transição para a maturidade e alcançar a independência. “Uma coisa é ter autonomia, outra é independência”, explica a especialista.
Isso fica visível, por exemplo, na dificuldade de inclusão no mercado de trabalho. Uma pesquisa feita pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, mostra que 53% dos jovens autistas que fazem 18 anos ficam desempregados, contra 26% dos que não têm o transtorno. Os números de Portolese corroboram a informação: somente 20% de pessoas com TEA conseguem independência, ingressando em universidades e empregos. E mesmo para os que chegam lá, a permanência não é fácil. “O ambiente social pode se tornar uma batalha e contribuir para que acabem abandonando o trabalho”, explica o professor Matthew Smith, que coordenou a pesquisa norte-americana.
Além de associações e entidades voltadas para combater os estigmas e melhorar a inclusão social de pessoas com TEA, alguns movimentos têm ganhado força nos anos recentes. Um deles é o da neurodiversidade, que propõe que condições como o TEA não são anormalidades, e sim diferenças neurológicas a serem reconhecidas e respeitadas. Encabeçado pela socióloga Judy Singer, surgiu no fim dos anos 1990 e ganhou força nas mãos da ativista Greta Thunberg. Na mesma declaração nas redes sociais em que falou sobre ter Asperger, disse: “dadas as circunstâncias, ser diferente é um superpoder.”
Ainda que seja criticado por especialistas da área e até entidades de apoio a pessoas com TEA — que afirmam que o transtorno não pode ser encarado como simples diferenças neurológicas devido às consequências que pode trazer para o desenvolvimento ou que a neurodiversidade acaba excluindo quem sofre de casos mais graves de autismo —, o movimento chama a atenção para a necessidade de preparo também por parte da sociedade. Afinal, de nada adianta só exigir que uma pessoa como Gabriel se prepare e se adapte a padrões sociais, se a qualquer deslize ela pode ser vítima de bullying.
Fonte:https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2020/04/os-desafios-e-preconceitos-enfrentados-por-adultos-autistas.html
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