Abertura do texto na Bodisatva 13, da qual foi transcrito:
“As capas desta revista, a partir da Bodisatva 12, representam os dozes elos da originação interdependente, que formam a Roda da Vida. Os comentários que se seguem são trechos da palestra de Lama Padma Samten durante o retiro na Fundação Peirópolis, em 28 de agosto de 2000.”
Depois de atingir a liberação completa, o Buda passou a examinar a Roda da Vida. Como se dá o processo e como é possível a liberação? Ele procurou saber como surge a experiência da Roda da Vida. Ele percebeu, diz a história, que essa experiência é montada através de 12 etapas sucessivas e causais, cada qual servindo de substrato para a próxima. Ele examinou como todas essas etapas são montadas e como podem ser desmontadas, como suas experiências podem ser revertidas. Indo do primeiro ao décimo segundo elo e do décimo segundo ao primeiro, ele percebeu que nós montamos andando em uma direção e desmontamos andando na direção oposta. Assim é o ensinamento da Roda da Vida.
Todos os seres nascem e vivem um tempo, durante o qual suas capacidades se expandem, estabilizam e diminuem. Durante a vida, sentimo-nos como equilibristas em um circo, com muitos pratos girando. De vez em quando cai um, mas conseguimos desenvolver bem essa habilidade. Quando o prato de uma ponta está quase caindo, corremos, o endireitamos e voltamos para os outros pratos. Com o tempo, percebemos que podemos equilibrar mais e mais pratos. Mais tarde, começamos a reduzir o número, até que só conseguimos equilibrar um só prato, que representa nosso corpo. Finalmente, nem esse conseguimos mais girar. Morremos, estamos liberados dos pratos. Depois tudo recomeça. Isso é a Roda da Vida.
Imersos nesse processo, não conseguimos determinar como tudo começou. Também não entendemos em que direção isso vai. Não queremos que tudo se repita, mas tudo segue girando, independente de nossa vontade. No sentido budista, isso é chamado de experiência da Roda da Vida. Existe uma grande diferença entre dizer que estamos presos na Roda da Vida ou que estamos na experiência da Roda da Vida. Por quê? A realidade verdadeira é a natureza ilimitada. No entanto, dentro dessa natureza ilimitada, podemos ter a experiência da Roda da Vida. Depois percebemos que a categoria limitada também é ilimitada.
Os ensinamentos da Roda da Vida podem ser assim compreendidos:
1) Por estarmos presos na ignorância, brotam dentro de nós as marcas mentais; 2) Com o surgimento das marcas mentais, surge naturalmente nossa identidade; 3) Quando surge nossa identidade, tentamos perpetuar alguma coisa; 4) Por querer perpetuar algo, manifestamos o nosso corpo; 5) Surgindo nosso corpo, fazemos o contato; 6) A partir do contato, temos sensações; 7) Quando surgem sensações, tentamos sustentar as agradáveis e afastar as desagradáveis; 8) Obtemos sucesso e isso estabelece nossa visão de mundo, a nossa visão de identidade; 9) A partir daí, nossas prioridades estão estabelecidas; 10) Com as prioridades, surgem as urgências; 11) As defesas operam, mas a impermanência não pode ser evitada, e, num dado momento, tudo desaba; 12) Quando tudo desaba, seja qual for o estrago, as sementes cármicas são preservadas.
Então, reorganizamos e remontamos tudo, a partir da experiência anterior e do impulso da semente cármica. E tudo vai girando. Nós saltamos para uma outra posição dentro da roda e vamos seguindo.
Quando chega a desgraça final, nós saltamos para um outro ponto e assim vamos girando a roda. Esta explicação causal é uma das formas de usufruirmos o ensinamento sobre os 12 elos. O Buda deu várias vezes o ensinamento dessa maneira. Mas ele ensinou também como reverter esse processo.
1) Por estarmos presos na ignorância, brotam dentro de nós as marcas mentais; 2) Com o surgimento das marcas mentais, surge naturalmente nossa identidade; 3) Quando surge nossa identidade, tentamos perpetuar alguma coisa; 4) Por querer perpetuar algo, manifestamos o nosso corpo; 5) Surgindo nosso corpo, fazemos o contato; 6) A partir do contato, temos sensações; 7) Quando surgem sensações, tentamos sustentar as agradáveis e afastar as desagradáveis; 8) Obtemos sucesso e isso estabelece nossa visão de mundo, a nossa visão de identidade; 9) A partir daí, nossas prioridades estão estabelecidas; 10) Com as prioridades, surgem as urgências; 11) As defesas operam, mas a impermanência não pode ser evitada, e, num dado momento, tudo desaba; 12) Quando tudo desaba, seja qual for o estrago, as sementes cármicas são preservadas.
Primeiro elo: Avidia, ignorância (Tib. Ma-rigpa)
O primeiro dos 12 elos, Avidia (Vidya: sabedoria, visão, lucidez; Avidia: perda da visão) é simbolizado por um cego.
Em tibetano, Rigpa é uma palavra importante, usada no sentido de uma lucidez não separativa e transcendente. Avidia significa Ma-rigpa (negação, impossibilidade de Rigpa). Quando Avidia cria o objeto, junto com a criação do objeto surge a noção de separatividade. De modo geral, todas as Rodas da Vida simbolizam Avidia por meio de um cego, um cego com sua bengala. Por que cego?
Imaginem uma esfera, como se fosse uma pérola, transparente, flutuando, mágica. No momento em que eu crio a esfera, ela ganha vida própria e ela ganha uma separatividade em relação a mim. Ela ganha vida própria porque vocês passam a vê-la também, logo, ainda que ela tenha surgido na minha mente, inseparável de mim, eu a vejo separada. Se eu perguntar onde a esfera está, vocês vão responder: “Está ali, na sua frente, flutuando”. Eu já não a vejo ligada a mim e vocês também não a veem ligada a vocês, mas vocês a estão da mesma forma sustentando.
Com isso, nós fazemos surgir um objeto etéreo. Um ponto muito importante do ensinamento é perceber que criamos com a nossa mente um objeto, esse objeto só vive na nossa mente e, mesmo assim, parece separado dela. Nós não só criamos o objeto, mas também a separatividade do objeto em relação a nós.
Este é um segredo secretíssimo de Avidia. Quando olhamos o Buda pintado em um tecido, nós vemos o Buda pintado num pano, mas, na verdade, ele é inseparável de nós. Se virarmos o pano de cabeça para baixo, pode ser que não reconheçamos mais o Buda. Para onde ele foi? Ele não estava no pano? A imagem não está ali. A imagem, para surgir, necessita de uma dimensão interna, mas quando vemos a dimensão interna operando, essa mesma dimensão interna produz a experiência de imagem naquele lugar. Dessa forma, a separatividade é construída. Precisamos urgentemente contemplar cuidadosamente essa inseparatividade.
Qual é a utilidade disso? Nós ganhamos liberdades. Quando olhamos uns aos outros, também vemos os outros separados, vemos os outros com qualidades. A situação é muito semelhante ao que fazemos com relação ao pano. Isso é Avidia.
Segundo elo: Samskara – Marcas de hábito
No segundo elo, nós temos as estruturas surgindo. Chamamos essas estruturas de Samskara (Skara: cicatriz; Samskara = conjunto de cicatrizes – marcas por hábito). Como vemos o Samskara? As estruturas internas começam a surgir a partir da Avidia, a partir da criação. Nós geramos as estruturas a partir da delusão.
O reconhecimento de Avidia é uma estrutura que geramos para ver liberdades. Usamos o poder da mente para reconhecer essa operação. Olhando e elucidando essas estruturas, que foram criadas e nos aprisionavam, criamos a liberdade correspondente.
O símbolo utilizado na Roda da Vida para essa estrutura é um potista trabalhando com barro. Ele está na capa desta edição [a Bodisatva n. 13]. Analisem: o potista começa com uma bolota de barro, um torno e vai girando aquilo. No final de seu trabalho, ele continua com a bolota de barro, não há outra coisa, senão bolota de barro. Ele já está vendo um pote ali. Quando ele for descrever a diferença entre bolota de barro e bolota de barro, ele terá de falar na forma. Essa forma é um aspecto sutil que ele vê na bolota. Ele não vai poder explicar aquela forma na microestrutura do barro. Ele só vai poder ver aquela forma a partir de um processo de delusão que opera na própria bolota. Sob esse aspecto, até a teoria do surgimento do homem a partir do barro é interessante.
Vamos colocar outro exemplo: imaginem que uma pessoa começa a trabalhar com a bolota de barro e gera um pote. Mas ela não gostou dele e o desfaz e faz um outro. Ainda não satisfeita, ela desfaz e refaz várias vezes, até surgir o pote que tinha em mente, como ela gosta, que espelha a natureza como ela vê. De onde surge essa aparência de barro? Ela surge de um aspecto inseparável dela mesma, que olha para o barro e vê o pote. Agora, porém, ela tem uma estrutura. Isto é a delusão operando.
A seguir, ela pega o barro e o coloca sobre a mesa para secar. Faz isso com três ou quatro bolotas. De repente, as crianças vêm brincar ao redor. Nesse momento, surge sua identidade. Isto acontece porque ela se descobre apegada à estrutura. Ela não quer que aquilo caia no chão. É um processo em relação ao qual ela vê uma estrutura de defesa quando olha dentro de si. Ao encontrar sua estrutura de defesa ela diz, “eu-isso”, ela pode falar dela mesma.
Os três animais
No budismo, a nossa identidade está representada por três animais, o javali, a cobra e o galo. Nós agimos dentro das estruturas, que são representadas pelo javali. Mas só vamos localizar essas estruturas quando as virmos reagir. Elas não vão aparecer por si mesmas. Se alguém nos perguntar se temos alguma fixação, podemos até responder “Não, acho que não, nenhuma…”. Se olharmos para dentro, não as vemos. As estruturas só aparecem quando alguém nos faz alguma coisa e reagimos. Neste momento, o javali vai se revelar na cobra ou no galo. O galo é a atividade incessante. É a nossa atividade de proteção através da nossa ação incessante, contínua. Por exemplo, se quisermos ver se somos boas donas de casa, não precisamos nos perguntar. Basta olhar para a casa e ver se o galo começa a atuar ou não. Podemos até pensar que somos uma boa dona de casa – uma pessoa pode gerar a opinião que quiser sobre si mesma. No momento em que perguntamos a outra pessoa, ela vai ver, por exemplo, um quadro torto na parede, lixo no canto, louça para lavar, etc., e provavelmente vai responder: “É… mais ou menos…”. Por que o outro responde assim? Porque o galo revela. Talvez a pessoa até pergunte: “Isso não te deixa um pouco nervosa, essa bagunça toda?”. Se nós respondermos “Não, até que não…”, neste caso nem o galo, nem a cobra estão atuando sobre nós.
Samskara são as marcas com as quais estamos operando. Eventualmente, podemos gerar consciência sobre essas marcas. Não é necessário que tenhamos consciência sobre elas, elas atuam, com ou sem consciência. Por esse motivo, não é necessário que tenhamos consciência sobre uma identidade para que ela possa operar. Vendo desta forma, livrar-se ou não da identidade não tem grande significado. Lutar contra a identidade não é o ponto. O ponto é gerar uma liberdade. Nós estamos buscando a compreensão da liberdade desse processo. Como vemos que essa liberdade fica restrita por Avidia, manifestando-se como marcas, sabemos que ela está oculta. A prisão está oculta. Olhando assim, descobrimos que o processo discursivo não vai nos trazer a liberdade. Que de nada adianta colocar-se discursivamente num ponto de aversão. Pode ser que a pessoa gere uma uma função coerente por causa de suas marcas. Isso corresponde ao terceiro elo.
O terceiro elo, Vijnana, será representado na capa e será comentado na próxima edição.
A Roda da Vida |
A roda da vida numa das paredes do templo do CEBB em Viamão (foto) |
Seguem minhas anotações do que Lama Padma Samten ensinou durante o retiro de inverno 2014, no CEBB Viamão, RS.
Atualização em 2018: explicação completa da Roda da Vida por Jetsunma Tenzim Palmo.
Do centro da imagem para fora:
3 animais: (mais detalhes abaixo)
- Javali - ignorância - que gera:
- Galo - desejo/apego - que gera (quando ameaçado):
- Cobra - raiva
6 reinos:
- Reino dos Deuses - Ideal do samsara. Viver como reis e imperadores. Tudo de bom (topo na imagem). Para o budismo, aqui ficam Brahma, Vishnu e Shiva (deuses que, respectivamente, mantém e dissolvem ilusões do samsara) e o jardim do éden cristão. Emoção principal: orgulho.
- Reino dos Semideuses - Invejam os Deuses. Disputa. Tentam sempre alcançar o que os Deuses possuem. No mundo, tecnologia, ciência etc. Perseverar dentro do samsara. Olho do bom senso e da causalidade aprendido no mundo.
- Reino dos Infernos - Muitas variações de raiva, dor e tortura (abaixo na imagem).
- Reino dos Seres Famintos - Carência. Aspirações impossíveis de realizar. No nosso mundo (samsara), crescente limitação de recursos. Em expansão, com os problemas ecológicos.
- Reino dos Animais - O reino animal. Preguiça. Impossibilidade de sair de avidya. No nosso mundo, em diminuição, com os problemas ecológicos.
- Reino Humano - O mais favorável porque nele há os ensinamentos e a chance de iluminação. É muito pequeno. "Somos cegos porque vemos." (Buda) Notar a raridade de um Buda surgir aqui. E de o Darma nos tocar. Buda Sakyamuni é o quarto buda histórico. O próximo é Maytrea. Reino caracterizado pelo planejamento por etapas para obter resultados, mas limitado pela impermanência, falta de controle e sofrimento. Falta de sentido.
12 elos (compreensão importante para Prajna):
Se você já está mais avançado nos estudos, veja nesse post o resumo que fiz de todos os doze elos da originação dependente
Imagens fora da roda: Simbolizam a perda de tempo de pessoas no samsara que não aproveitam a vida humana preciosa para praticar (jogando videogame ou dançando).
P.S.: Palestra maravilhosa da Jeanne Pilli sobre A Roda da Vida no CEBB Fortaleza, em 08/10/2015.
Contemplando o desenho do centro da roda da vida de Tiffani Gyatso
A Roda da Vida - Lama Padma Samten
Classicamente, o javali (ou porco) simboliza a ignorância, visão de vida baixa, curta e autocentrada. A partir de seu rabo surge o galo (desejo e apego), simbolizando nosso esforço cotidiano de manter o que desejamos e nos afastar do que não desejamos (por isso, o galo, que é um animal que está sempre ciscando, buscando algo, em movimento movido pelo desejo). O Lama Padma Samten fala que o galo tem tudo a ver com a figura do equilibrista de pratos que somos, tentando manter girando sem cair o prato do emprego, o prato do relacionamento, o prato da família, etc. A partir do rabo do galo surge a cobra (raiva), que brota quando algo atrapalha nossos desejos, nossas fixações, nossos apegos. Quando algum prato cai e quebra. E a partir daí, o ciclo eterno se reinicia, gerando um novo javali (o Lama brinca que seria um javali 2.0) que agora vai tentar evitar a quebra de outros pratos. A simbologia do animal comendo o próprio rabo lembra a imagem grega do Oroboros, representando algo eterno.
Na representação dos três animais, podemos notar com um olhar mais apurado algumas criações notáveis da artista, como o galo com penas de pavão em seu rabo, como que simbolizando um orgulho nosso pelos pratos conquistados. O Buda (presente em todas as partes da roda da vida) está acima desse ciclo, fora dessa confusão tão nossa, com o rosto plácido, uma luz na mão esquerda (talvez representando lucidez) e a mão direita apontando a flor de lótus que nasceu onde ele pisou (no nascimento do Buda Sakyamuni, Sidarta Gautama, diz-se que onde ele pisava nasciam flores de lótus).
A saída, então, do ciclo, seria a flor de lótus, que o Buda aponta, o que me lembrou o mantra da compaixão, "do lodo nasce o lótus" (OM MANI PADME HUM). Ou seja, por mais que aparentemos estar preso nesse ciclo, por mais que estejamos atolados no lodo, Buda nos aponta a saída em Bodicita, na compaixão, na ampliação da visão autocentrada e dual do javali em qualquer uma de suas versões.
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