Estudo revela
como cegos conseguem 'ver' sons e sensações com o cérebro
Neurocientistas brasileiros mostraram
como neurônios ligados a sentidos de audição e tato colonizam área cerebral
normalmente destinada à visão
Por Rafael Garcia —
São Paulo
26/01/2023 04h30 Atualizado há 3 dias
Um grupo de neurocientistas brasileiros jogou luz sobre uma questão que há tempos mobiliza esse campo de pesquisa: como pessoas cegas de nascença ganham capacidade extra para audição, tato e outros sentidos, se não existe espaço extra no cérebro para processar esses sinais? No novo trabalho, o grupo liderado por Fernanda Tovar-Moll, presidente do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), no Rio, rastreou a origem dessa habilidade ao desenvolvimento do tálamo, uma estrutura cerebral que no passado já foi considerada mais "primitiva" que outras.
É comum que, em algumas pessoas sem visão desde o nascimento, a capacidade de identificar detalhes em sons, texturas ou odores seja mais aguçada. Não está totalmente claro ainda, porém, como essas habilidades são construídas na estrutura física do organismo, pois o cérebro aloca áreas específicas do córtex, uma região "nobre" do órgão onde são processadas informações mais complexas.
Estudos recentes mostraram que nas pessoas cegas, o córtex occipital (área cortical que processa a visão, na parte de trás da cabeça), acaba sendo "colonizado" por neurônios de outras regiões, como o córtex motor, que processa o tato. Cientistas não sabiam como isso ocorria, porém, porque as conexões necessárias para isso não existem em indivíduos adultos, que tipicamente não possuem as mesmas habilidades auditivas e tácteis dos cegos de nascença quando perdem a visão.
— Um estudo clássico do início dos anos 2000 mostra que quando os cegos de nascença leem em braile, eles ativam o córtex visual, quando na verdade eles estão fazendo funções relacionadas ao tato — explica Tovar-Moll. — Mas qual seria a explicação anatômica para entender como esses sentidos 'conversam entre si' nas pessoas com deficiência visual?
Esse fenômeno, batizado com o termo técnico de "plasticidade transmodal", é um reflexo da capacidade do cérebro de se moldar e se adaptar a novas circunstâncias. No caso estudado, ela foi uma resposta à falta de estímulos visuais durante o desenvolvimento, algo essencial para maturar a visão.
Para investigar a questão, o grupo da pesquisadora no IDOR empregou uma tecnologia nova de ressonância magnética, mais precisa que a de exames clínicos tradicionais. Com uma máquina de campo magnético mais potente que as outras, e uma técnica de análise de imagem mais sofisticada, os cientistas foram investigar as principais suspeitas de envolvimento no processo: as conexões neurais do tálamo.
— A gente levantou a hipótese que as conexões poderiam estar sendo misturadas no tálamo, porque ele é uma região onde existe uma espécie de 'pit stop' do cérebro — explica. — O córtex visual fica distante do córtex temporal e do córtex motor, mas dentro do tálamo os 'núcleos talâmicos', que se conectam com essas partes do córtex, são muito mais próximos entre si.
Para entender as diferenças de estrutura cerebral, Tovar-Moll mapeou na ressonância magnética os cérebros de dez pessoas com cegueira de nascença e de outras dez capazes de enxergar, para efeito de comparação.
Ao mapear as conexões de neurônios do tálamo com neurônios do córtex em espaço menor e mais emaranhado de células, Tovar-Moll e seus coautores conseguiram evidências de que são os estímulos do tálamo que guiam a remodelação de áreas superiores do cérebro. O trabalho foi descrito em artigo dos cientistas no periódico "Human Brain Mapping".
Ciência básica
A pesquisa não gerou nenhum benefício clínico direto, ainda, mas os cientistas afirmam que ao melhorar a compreensão de mecanismos básicos do sistema nervoso, outros estudos estão agora em posição melhor para buscar aplicações do conhecimento gerado.
— Quando a gente trabalha com populações que têm alguma doença ou alguma forma de deficiência, elas compreendem que pesquisa básica também tem que avançar para poder ajudá-las — diz Erika Rodrigues, neurocientista que participou do trabalho — A gente tem mais dificuldade, por incrível que pareça, de conseguir voluntários saudáveis para os protocolos de pesquisa.
É comum que voluntários se interessem em participar das pesquisas em busca de autoconhecimento, algo que os ajuda a lidar com suas diferenças, conta Tovar-Moll.
— Uma vez eu estava apresentando numa palestra o resultado de um trabalho sobre plasticidade cerebral. No final, veio uma pessoa da plateia com uma cópia do estudo na mão e me disse: 'Lendo do seu artigo hoje, eu entendo como eu me comporto'.
Fonte:https://oglobo.globo.com/saude/ciencia/noticia/2023/01/estudo-revela-como-cegos-conseguem-ver-sons-e-sensacoes-com-o-cerebro.ghtml
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