É DOENÇA A tomografia não é capaz de diagnosticar a depressão de um indivíduo. Mas a reunião de 100 exames de pessoas saudáveis, comparada à reunião de 100 outros de pessoas deprimidas, mostra uma clara diferença na atividade cerebral. O metabolismo fica reduzido (imagens acima), levando a sintomas físicos e mentais (Foto: Getty Images)
Como a tecnologia pode ajudar a cuidar da saúde mental em tempos de pandemia
A covid-19 lançou a humanidade em um estado de angústia, ansiedade e depressão. Ao mesmo tempo, acelerou o uso de ferramentas, como a inteligência artificial, capazes de ajudar na detecção precoce dos distúrbios psiquiátricos
Ninguém conheceu trabalho remoto de forma tão extrema quanto o médico russo Valeri Polyakov. Interessado em saber como o corpo humano reage a longos períodos num ambiente de microgravidade — algo necessário para viagens a Marte — tornou-se, ele mesmo, parte da resposta.
Entre janeiro de 1994 e março de 1995, morou e trabalhou na estação espacial MIR — dividindo a cápsula, pouco maior que um micro-ônibus, com dois hóspedes de permanência mais breve. Valeri realizou experimentos científicos, fez musculação, consertou defeitos imprevistos, almoçou e jantou comida de gosto ruim, cortou cabelo, leu livros, fez desenhos, aproveitou o silêncio e viu o pôr do sol pela janela — algo que acontece 16 vezes a cada 24 horas, quando se está numa órbita 300 quilômetros distante da Terra, à velocidade média de 27.700 km/h.
Depois de 437 dias, ele voltou. Ao sair da nave espacial, dispensou a cadeira de rodas que lhe foi oferecida. Saiu caminhando. Em vez de ajuda, aceitou um cigarro e uma dose de bebida destilada, para comemorar a façanha e aplacar o frio que fazia no lugar de pouso, o Cazaquistão.
O corpo de Valeri resistiu muito bem a um ano de isolamento. A mente, nem tanto. O astronauta fez 29 testes cognitivos durante a viagem e continuou sendo monitorado seis meses depois. Nos primeiros 20 dias no espaço e nas duas semanas após o retorno, ele parecia perdido, diz um estudo publicado na revista científica Ergonomics. Apesar de manter o desempenho intelectual, sentiu-se sobrecarregado.
Valeri é um herói com medalhas no peito, e, antes de trabalhar no espaço, se preparou durante 16 anos na agência espacial russa. Nós não tivemos a mesma sorte diante do novo coronavírus. Poucos meses após a China anunciar o primeiro caso, em 31 de dezembro de 2019, nosso mundo saiu de órbita.
Para conter o ritmo de avanço da covid-19, 4,5 bilhões de trabalhadores tiveram de entrar em quarentena, fisicamente afastados dos parentes, amigos e colegas. Em casa, alguns lutam contra o desânimo de terem pouca ou nenhuma utilidade longe da empresa.
Outros, ao contrário, lutam contra a sobrecarga. Precisam atingir metas traçadas para o escritório (um lugar otimizado, ao longo de décadas, para o desempenho profissional), agora em condições improvisadas, como trabalhar por oito horas na mesa de jantar e transformar o corredor em cenário para telerreuniões profissionais.
Precisam dividir o computador e a atenção com filhos, que, sem escola, estudam e brincam entre quatro paredes. Precisam conviver 24 horas por dia com um cônjuge — algo que muitos até juraram fazer, diante de um padre, mas sem pensar em circunstâncias como a atual.
Precisam cozinhar, lavar louça, lavar roupa, lavar banheiro, varrer o chão, cortar unhas, talvez cabelos. Afinal, a especialização, que proporcionou ganhos de eficiência à sociedade desde a Revolução Industrial, recuou vários passos com o isolamento social. Quem dera fosse só isso.
O confinamento é apenas uma face de uma pandemia que ameaça a nossa vida. A covid-19 acaba por trazer, para a realidade, um artifício que os diretores de filmes de terror aprenderam há muito tempo: uma ameaça torna-se mais assustadora quando é invisível. O vírus está no ar, está no outro, talvez esteja em nós mesmos. Pode não trazer sintomas, pode matar em poucos dias. A própria morte tornou-se invisível. No hospital, o doente tem visitas restritas. Morto, é enterrado em um caixão lacrado.
“Além de tudo, o coronavírus impede rituais de passagem profundamente estabelecidos em nossa sociedade. A morte sem a devida cerimônia de despedida pode ficar em suspense por anos, com a sensação de que a pessoa sofreu um sequestro e pode voltar a qualquer momento”, diz Omar Ribeiro Thomaz, doutor em Antropologia e professor da Unicamp.
A ameaça à saúde trazida pelo coronavírus vem acompanhada da ameaça à saúde financeira. A quarentena, imposta no mundo inteiro para achatar a curva de novos casos, atingiu duramente a atividade econômica. “Nossas previsões indicam uma profunda recessão, com uma contração de 5% para a economia global”, afirma David Malpass, presidente do Banco Mundial. “Mais de 60 milhões de pessoas serão empurradas para a pobreza extrema.”
Em março, o Google perguntou a trabalhadores brasileiros: “O que mudou na sua vida?”. “Tudo” foi a principal resposta entre desempregados e autônomos, não importa a condição financeira, e a terceira mais citada por assalariados e empregadores de baixa renda. Na nuvem de palavras formada pelas entrevistas, destacam-se “saudades”, “ansiedade”, “falta de paciência”, “medo” e “preocupação”. O confinamento, a mudança de rotina, a ameaça à saúde e a ameaça à saúde financeira podem ser psicologicamente devastadores.
É normal sentir medo e ansiedade, diante de uma tragédia como a pandemia de coronavírus. Estranho seria não sentir. O medo é um dos responsáveis pela sobrevivência da raça humana, ao proteger de riscos e fazer fugir de perigos. A ansiedade faz o coração pular, no esforço vão de antecipar um acontecimento.
A angústia aperta o peito diante da impotência, da pressão externa. “Medo, ansiedade e angústia não são doenças, são sentimentos humanos”, diz Wagner Gattaz, professor e presidente do conselho diretor do Instituto de Psiquiatria da USP, além de fundador e diretor da Gattaz Health & Results. “O problema é ir além. É doentio quando essas sensações nos paralisam, nos impedem de tocar a vida.”
É o caso das crises de pânico: a pessoa começa a sentir palpitações, dificuldade para respirar, calafrios, suor, tonturas e embaçamento da visão, sem conexão com uma ameaça externa. É o caso da depressão: uma redução do metabolismo cerebral, com sintomas físicos (como cansaço e dores musculares) e mentais (como esquecimentos e insônia).
“Mais do que tristeza, a depressão deixa a pessoa anestesiada por dentro. Traz a incapacidade de sentir prazer, até mesmo de chorar”, diz Wagner. A depressão é um problema silencioso. Segundo a OMS, trata-se da doença mais subdiagnosticada do planeta. Mais de 350 milhões de pessoas sofrem de quadros depressivos, mas 47% nem se dão conta. Cerca de 15% da população mundial tem predisposição, mas muitos jamais manifestaram sintomas. Diante de um grande trauma, pode acontecer uma crise.
Ainda não é possível calcular o estrago causado pela pandemia de coronavírus na saúde mental — mas é certo que tem gente demais indo além da simples tristeza. Em um estudo da Sociedade Chinesa de Psicologia, com 18 mil voluntários, 42,6% apresentaram sintomas de ansiedade relacionada ao coronavírus.
Um levantamento feito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em parceria com a Universidade Yale, com 1.460 pessoas de todo o Brasil, mostrou um aumento de 90% nos casos de depressão entre os meses de março e abril do ano passado. “O impacto da pandemia na saúde mental das pessoas já é extremamente preocupante.
Mesmo quando a doença está sob controle, a dor, a ansiedade e a depressão continuam a afetar as pessoas e as comunidades”, afirma Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS. A análise de práticas de isolamento social em epidemias anteriores, como de Sars (2003), na China e no Canadá, e de ebola (2014), no oeste da África, ensina que o trauma afeta um número maior de pessoas do que a própria doença original.
Um artigo publicado na revista The Lancet revisou 24 trabalhos sobre impactos psicológicos de regimes de isolamento social durante as epidemias de Sars, ebola e H1N1. “Essa revisão sugere que a quarentena é frequentemente associada a efeitos psicológicos negativos. Embora isso não seja exatamente uma surpresa, a evidência de que esses efeitos podem ser detectados meses ou anos depois é mais problemática e sugere a necessidade de assegurar medidas eficazes de mitigação”, diz o texto.
Responsável pela condução de 5 mil entrevistas no Brasil, em um estudo global sobre depressão patrocinado pela OMS, Wagner afirma que os padrões já conhecidos sugerem um cenário alarmante quando o coronavírus passar. “Num intervalo de 12 meses, encontramos que 20% das pessoas vão apresentar algum transtorno de ansiedade, 11% terão um episódio depressivo, 4% vão desenvolver abuso de álcool ou outras substâncias e cerca de 15% terão burnout”, diz Wagner.
O coronavírus tornou inevitável o que já era urgente: cuidar da mente, antes que seja tarde e caro demais. “A pandemia está nos mostrando mais uma vez que a saúde mental é tão importante quanto a saúde física”, afirma Tedros, da OMS. Ele diz que as questões de saúde mental representam 30% do tempo vivido com alguma incapacidade, no mundo — apesar de receberem 2% do orçamento de Saúde dos governos.
Em outro estudo, a OMS afirma que perda de produtividade por depressão ou ansiedade custa, globalmente, US$ 1 trilhão. “Problemas de saúde mental, como depressão, estão entre as maiores causas de miséria em nosso mundo”, afirma António Guterres, secretário-geral da ONU.
No Brasil, transtornos de ansiedade são a terceira razão de afastamentos do trabalho, com cerca de R$ 200 milhões gastos com pagamentos de benefícios anuais pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). “Os custos globais em 2030 vão somar US$ 3 trilhões por ano, entre queda de produtividade, mortes prematuras e suicídios”, alerta Wagner. “Se existe um bom momento para investir em saúde mental”, diz Tedros, “é agora”.
Para as empresas, cuidar da saúde mental dos funcionários é um compromisso moral e um investimento. A história ensina exemplos como o da fábrica americana de alimentos Heinz, que, durante a Grande Depressão, na década de 30, evitou demitir e se empenhou em manter o pessoal motivado.
Com pouca demanda para seu ketchup, arriscou lançar comidas prontas, como sopas e papinhas para bebê. Os produtos se tornaram um sucesso, e o comprometimento da empresa ajudou a reter funcionários e atrair consumidores nas décadas seguintes. “Depois de a crise passar, as pessoas se lembravam do que a Heinz havia feito e quais tinham sido suas prioridades”, disse Nancy Koehn, professora da administração da Universidade Harvard e autora do livro Forged in Crisis (inédito no Brasil), à Harvard Business Review. “Uma enorme parte da ansiedade em tempos de crise tem a ver com quem está no comando e como se comporta”.
Criticadas pelo papel relativamente discreto que estão desempenhando na busca pela cura do coronavírus, as empresas de tecnologia podem se sair melhor no combate aos efeitos psicológicos colaterais. No Brasil, SAP, Amazon Web Services (AWS) e a agência Africa se aliaram em torno do Algoritmo da Vida — uma inteligência artificial que varre o Twitter em busca de usuários com indícios de depressão ou ideação suicida.
Diante de um caso suspeito, o robô classifica a gravidade, numa escala de 1 a 4. Mediadores de ONGs parceiras recebem o alerta, entram em contato com a pessoa e avaliam o encaminhamento ao Centro de Valorização da Vida (CVV). A Africa apresentou a ideia no ano passado, durante o Setembro Amarelo (mês dedicado a campanhas de prevenção ao suicídio).
A AWS forneceu a computação em nuvem e a SAP, o banco de dados e os algoritmos. Com a pandemia de coronavírus, o sistema foi reforçado para lidar com um maior volume de casos e refinar os filtros digitais. “É muito bacana ver a tecnologia da SAP melhorando gestão de caixa, inventários, é o que a gente faz todo dia”, diz Cristina Palmaka, presidente da empresa para América Latina e Caribe. “Mas quando a gente vê a tecnologia salvando vidas... Aí é impagável”.
Os dados estão sendo consolidados de forma anonimizada para servir a pesquisas acadêmicas. Esse material tem importância estratégica. Apesar de existirem estudos semelhantes no exterior, o aprendizado de máquina dos serviços de prevenção ao suicídio depende de um profundo conhecimento do idioma local e do contexto de cada usuário.
A inteligência artificial ainda carece de granularidade para entender as intenções e angústias de cada indivíduo nas redes sociais — mas já parece capaz de identificar, com sofisticação, tendências de comportamento coletivo. O instituto de inteligência artificial da Universidade do Sul da Califórnia (USC) tabulou 700 milhões de posts e mais de 700 mil reportagens sobre a pandemia de coronavírus nos Estados Unidos.
Encontrou indícios de piora na qualidade social no país inteiro, sobretudo a partir da segunda semana de março. Identificou áreas específicas desse declínio na Califórnia, em Nova York e em Virgínia. Em Michigan, os diálogos indicam sinais de depressão crescente. Na Geórgia, os posts sugerem que o uso e o vício em entorpecentes aceleraram a deterioração do bem-estar. “Monitorar o vasto fluxo de palavras pode trazer indícios muito mais rapidamente do que as enquetes tradicionais”, afirma Amit Sheth, cientista da computação e diretor do instituto.
Profundo conhecedor da alma humana — ao menos em volume de usuários em suas redes sociais, com 2,5 bilhões no Facebook e 1 milhão no Instagram —, Mark Zuckerberg quer promover o bem-estar em tempos de coronavírus.
“Me preocupa muito, pessoalmente, a possibilidade de o isolamento das pessoas em casa levar a mais casos de depressão ou problemas mentais”, disse, ao anunciar o aumento da equipe dedicada a filtrar posts sobre suicídio e autoagressão. “Vejo o trabalho nessa área como algo relacionado aos primeiros socorros prestados por profissionais de saúde ou policiais. Portanto, temos de ajudar com rapidez.”
Mark doou US$ 2 milhões a organizações de apoio psicológico em diversos países, entre eles o brasileiro CVV, além de apresentar, num lugar de destaque do Facebook, orientações de saúde mental dadas pela OMS. No Instagram, criou um alerta automático para hashtags ligadas a comportamentos autodestrutivos, além de acrescentar um botão para usuários informarem condutas estranhas de seus colegas. “Alguém viu seu post e pensa que você pode estar passando por momentos difíceis. Se precisar de suporte, podemos ajudar”, diz a mensagem enviada pela rede social.
No Brasil e nos Estados Unidos, a pandemia estimulou os governos a flexibilizar o atendimento psicológico remoto, e aqueceu ainda mais o setor de healthtechs. O Crisis Text Line — chatbot em inglês, sem fins lucrativos, apoiado por Melinda Gates e Steve Ballmer — viu o número de mensagens aumentar 40% em março. E a base já era alta: 100 milhões, num ritmo crescente desde 2013.
No Canadá, o primeiro-ministro, Justin Trudeau, incluiu, no pacote de medidas contra o coronavírus, a promessa de investir US$ 170 milhões em serviços de atendimento digital. A startup americana Lyra Health conseguiu US$ 75 milhões em uma rodada de investimentos em março — e a concorrente Vida Health, US$ 25 milhões. Como costuma acontecer, o forte crescimento de um setor traz consigo a necessidade de regras, amadurecimento e depuração.
Uma preocupação é a qualidade técnica do serviço usado para as consultas. “WhatsApp e Skype são boas ferramentas para conversar com a família, mas não atendem a protocolos internacionais de segurança, como o HIPAA (Health Insurance Portability and Accountability Act), afirma Tatiana Pimenta, fundadora e CEO da Vittude, startup que, no ano passado, recebeu R$ 4,5 milhões em uma rodada de investimento liderada pelo fundo Redpoint eventures. “Assistência psicológica é algo muito sério e delicado, não bastam boas intenções”, diz Carolina Dassie, fundadora e CEO da Hisnëk. “Perder a conexão durante um atendimento pode ter consequências gravíssimas, dependendo do paciente.”
Outra preocupação é o embasamento científico dos métodos usados em assistentes digitais. No ano passado, a revista Nature publicou o estudo “Usando ciência para vender aplicativos: avaliação da qualidade dos apps de saúde mental”, que avaliou os 73 apps mais populares contra depressão, autoagressão, uso de entorpecentes, ansiedade e esquizofrenia. “A linguagem científica era a estratégia mais frequentemente empregada para ressaltar as promessas de eficácia. No entanto, faltavam evidências de estudos feitos especificamente com apps, e muitos aplicativos descreviam técnicas sem evidência clara na literatura”, lê-se no texto.
Organização mais preocupada com a harmonia de seus funcionários em todo o universo, a Nasa está investindo em inteligência artificial para detectar alterações no tom da voz ou na expressão facial, para a futura viagem a Marte. “Vamos procurar qualquer mudança significativa de comportamento no sono, na irritabilidade e na cognição”, diz Gary E. Beven, chefe de psiquiatria do programa espacial americano.
Ele não quer que seus tripulantes repitam, com um orçamento de US$ 20 bilhões em jogo, o resultado de um treinamento feito pela agência russa: de seis voluntários confinados juntos por 17 meses, quatro desenvolveram distúrbios. Mas Gary quer robôs para ajudar, não para substituir a empatia humana. Seus astronautas em missão conversam com psicólogos pelo menos duas vezes ao mês e podem fazer, a qualquer momento, teleconferência com os parentes. Apoio profissional e carinho familiar ainda são a tecnologia mais avançada para a saúde mental.
Fonte:https://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2021/01/como-tecnologia-pode-ajudar-cuidar-da-saude-mental-em-tempos-de-pandemia.html
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