A MORTE DA LÍNGUA INDÍGENA - E DOS SABERES ANCESTRAIS

 

A morte da língua indígena – e dos saberes ancestrais

Da aspirina à morfina, nossa vasta farmacopeia deriva do saber indígena e da biodiversidade. Estima-se que 30% das línguas originárias estão sob o risco de extinção – e junto, curas para uma civilização ameaçada por vírus e ignorância

Publicado 23/06/2021 às 14:31 - Atualizado 23/06/2021 às 14:39

Por Nurit Bensusan, no ISA

As lendas e histórias sobre a magnitude da Biblioteca de Alexandria, no Egito, e a tragédia de sua destruição, por ordem do califa Omar, em 641 da Era Cristã, habitam corações e mentes há séculos. Dizem que é incomensurável o conhecimento perdido nos rolos que foram incendiados para alimentar, por cerca de seis meses, as caldeiras dos quatro mil banhos públicos da cidade. Talvez parte dos rolos perdidos tivesse cópias em outras bibliotecas, como a de Pérgamo ou em coleções particulares. Nunca vamos saber se o que se perdeu ali poderia ter nos conduzido, como espécie, a um caminho melhor, mais justo e mais feliz.

É quase certo que houve perdas monumentais de conhecimentos acumulados em diversos momentos da história da humanidade: cidades destruídas e povos exterminados pontuam nossa trajetória. Mas há outro tipo de perda, não tão visível, não tão notável, mas talvez ainda mais deletéria. Trata-se do desaparecimento do conhecimento vinculado ao uso das plantas, animais e outras espécies.

Inúmeros povos indígenas possuem vastos conhecimentos sobre usos medicinais de plantas, animais e fungos. Esse conhecimento, em geral, está vinculado a um povo ou a um pequeno conjunto de povos que compartilham uma geografia. Em uma pesquisa recente da Universidade de Zurique, na Suiça, cientistas analisaram 3.597 espécies vegetais e 12.495 usos medicinais associados a 236 línguas indígenas na América do Norte, Nova Guiné e noroeste da Amazônia e estimaram que 75% dos usos de plantas medicinais no mundo são conhecidos em apenas um idioma. A tradução imediata e preocupante disso é que se tal idioma desaparece, leva com ele esses saberes à morte.

Muitos desses povos, detentores de tais conhecimentos e falantes dessas línguas, repassam seus conhecimentos via oral e, além disso, seus idiomas não têm registro escrito. Linguistas estimam que haja atualmente no mundo cerca de 7,4 mil línguas e que 30% delas desaparecerão até o final deste século. A pesquisa da Universidade de Zurique também apontou um dado alarmante: as línguas ameaçadas sustentam mais de 86% dos saberes únicos – presentes em apenas um idioma – da América do Norte e da Amazônia e 31% dos saberes únicos da Nova Guiné.

Vale lembrar que muitas das substâncias que usamos hoje na nossa farmacopeia vieram do conhecimento indígena da biodiversidade: a aspirina, derivada da casca do salgueiro; a morfina, das sementes da papoula; relaxantes musculares e venenos poderosos, como a estricnina, derivados do curare, usado por povos indígenas sul-americanos na ponta de suas flechas como arma letal nas atividades de caça, entre inúmeros outros exemplos.

Crise dos antibióticos

Com a pandemia da Covid-19 e a presença insistente de doenças sem cura na nossa sociedade, a busca por novas substâncias ativas é uma atividade incessante. A crise dos antibióticos – que não fazem mais efeito sobre seus alvos – e das drogas contra a dor agrega a esse cenário uma urgência ainda maior. Numa entrevista recente, a diretora-geral do Laboratório Europeu de Biologia Molecular, Edith Heard, declarou que, em 10 ou 20 anos, estaremos morrendo de infecções de bactérias resistentes aos antibióticos. A geneticista chamou atenção que a crescente resistência a esses medicamentos não acontece apenas nos hospitais, mas há resistência aos antibióticos em bactérias do oceano e ainda não se sabe explicar o porquê. Vale lembrar que dobramos nossa expectativa de vida nos últimos 100 anos graças aos antibióticos. Urge que novas soluções surjam para cobrir essa lacuna e parte delas pode passar pela identificação de novas substâncias efetivas contra os micro-organismos resistentes.

A inspiração da natureza na busca por esses novos princípios ativos é um ponto fundamental e, onde há mais biodiversidade, maior chance de encontrar algo interessante. Porém, como procurar uma agulha num palheiro? Ou uma substância ativa, interessante por suas propriedades farmacológicas, no meio de uma floresta como a amazônica? É nesse momento que o conhecimento dos povos indígenas sobre plantas e animais pode fazer a diferença. Apontar a utilização de uma planta ou de uma mistura de plantas no combate a uma doença pode funcionar como um atalho relevante na identificação de novas curas.

Novas doenças

Vale ressaltar aqui, ainda, duas outras dimensões do problema. A primeira é a emergência de novas doenças humanas, inclusive com potencial pandêmico, a cada ano. Segundo a Plataforma Internacional sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IBPES), a maioria das doenças humanas infecciosas que surgiram, nas décadas recentes, teve sua origem na vida silvestre e 65% de todos os patógenos humanos descobertos, desde 1980, foram identificados como vírus zoonóticos.

Além disso, as mudanças climáticas e o descongelamento de áreas que estavam congeladas há milhares de anos, estão trazendo à tona milhares de microorganismos. Em 2005, pesquisadores da Nasa ressuscitaram bactérias que estavam congeladas há 32 mil anos em um lago no Alasca e dois anos depois conseguiram trazer de volta à vida bactérias que estavam congeladas há 100 mil anos, na Antártica. Ou seja, bactérias que conviveram com muitas outras espécies de animais e que teoricamente podem causar doenças desconhecidas.

Paralelamente, analisando amostras de gelo de 15 mil anos em uma geleira no Tibete, pesquisadores chineses e norte-americanos encontraram 33 tipos de vírus, dos quais 28 são desconhecidos da ciência. Esses microorganismos podem se combinar com outros que estão presentes entre nós hoje e, na prática, causar muitas novas doenças.

Edith Heard, na entrevista citada acima, lembra que o Polo Norte é um viveiro de diversidade viral e que, há dois anos, foi publicado um estudo que mostra a descoberta de 200 mil novos vírus por lá.

A emergência de tantos novos patógenos vai transformar a identificação de novas substâncias para combatê-los na busca do Santo Graal. Nessa corrida, o conhecimento dos povos indígenas e das comunidades locais acerca das plantas medicinais pode ser de enorme valia.

Outros caminhos do pensamento

A segunda dimensão do problema é que, entre os usos dessas plantas e de outras espécies, talvez haja aquelas que provoquem enorme bem-estar, que tenham efeitos psicotrópicos positivos, que nos permitam sonhos e desejos que nos levem para outros lugares e nos permitam pensar de forma diversa, ajudando a solucionar muitos dos problemas da humanidade.

Dizem que alguns dos rolos queimados como combustível nos banhos públicos de Alexandria continham caminhos jamais trilhados, sequer concebidos por nós. Ideias, pensamentos, sonhos que poderiam nos levar para outros lugares. Perdeu-se tudo, transformado em vapor e fumaça, sustentando as caldeiras dos 4 mil banhos públicos da cidade.

Essas pesquisas recentes deveriam nos colocar na posição ativa de bombeiros diante do incêndio que se avizinha. Perderemos todo esse conhecimento sem nada fazer? O desaparecimento de 86% do conhecimento único de uma floresta como a Amazônia abasteceria as chamas das oportunidades desperdiçadas e das vidas perdidas para doenças que poderiam ter cura por bem mais do que seis meses.

Estima-se que cerca de 350 mil espécies de plantas já tenham sido descritas pela ciência ocidental e que, aproximadamente, 39% delas sofram algum grau de ameaça. Vale notar que, apesar de muito ameaçadas, o conhecimento medicinal acerca das plantas tem desaparecido ainda mais rápido que elas próprias.

Não é, infelizmente, apenas o fim das línguas que tem levado à perda do conhecimento acerca das plantas e de outros seres vivos. A pandemia da Covid-19 tem sido particularmente cruel com as pessoas mais velhas de diversos povos indígenas. A morte dessas mulheres e desses homens, verdadeiros repositórios de saberes sobre a natureza, muitas vezes ainda nem sequer transmitidos para membros de seu próprio povo, agrava o cenário.

Para salvar esses conhecimentos, urge garantir a integridade territorial, física e emocional e as formas de estar no mundo dessas populações. São seus modos de vida, os responsáveis pelos processos que culminam nesse enorme cabedal de saberes.

Neste momento, onde podemos perceber a urgência de novas substâncias com potencial farmacológico e que a crise da biodiversidade toma proporções planetárias, o conhecimento desses povos pode apontar inúmeras soluções. Basta nos desfazermos das viseiras e contemplarmos o mundo.

Fonte:https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-morte-da-lingua-indigena-e-dos-saberes-ancestrais/



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