Ailton Krenak
Ailton Krenak: "Sociedade precisa parar de olhar o mundo
como um supermercado"
Autor de "Ideias para adiar
o fim do mundo" afirma que marco temporal para terras indígenas é 'assédio
institucional' sobre os direitos dos povos
Por
William Helal Filho, do Globo
O jornalista e escritor Ailton Krenak tinha 34 anos quando subiu na tribuna da Assembleia Constituinte e, de terno branco, fez um discurso cobrindo o rosto de preto com tinta de jenipapo. "O povo indígena tem condições fundamentais para sua existência e para a manutenção de sua cultura", disse o ativista durante sua exposição. A atitude contribuiu para a elaboração do Artigo 231 da Constituição Federal de 1988, que garantiu o direito dos povos originários sobre suas terras no Brasil. Celebrada na época, a conquista agora gera angústia.
O Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar uma ação que pode determinar um revés nas causas indígena e ambiental. A Corte decidirá sobre a tese do marco temporal, segundo a qual os povos originários só podem reivindicar territórios que já ocupavam em 5 de outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada.
O Artigo 231, porém, não condiciona as demarcações a nenhuma data: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las". Segundo representantes indígenas, a defesa do marco temporal ignora que muitos povos não ocupavam suas terras em 1988 porque haviam sido expulsos ou porque são nômades.
Para Krenak, autor do best-seller "Ideias para adiar o fim do mundo" (Cia das Letras), o argumento do marco temporal é um capítulo de décadas de "assédio institucional" sobre as reservas, cuja legislação vem sendo questionada e desrespeitada desde os anos 90.
Nesta entrevista, concedida de sua aldeia no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, às margens do rio atingido pelo rompimento da barragem da mineração em Mariana, o jornalista critica o que chama de tentativa de "rasgar" a Constituição. E repudia também o projeto de lei 490/2007, que avança na Câmara dos Deputados com a proposta de facilitar a exploração em terras indígenas. Para ele, a sociedade ocidental "precisa parar de olhar o mundo como se fosse um supermercado".
Mais de 30 anos após seu discurso na Constituinte, como o senhor encara a tese do marco temporal?
Eu sinto como algo que me toca na pele. Aquele momento em 1987 contribuiu para um descontínuo na violência contra os povos originários. Mas foi por um instante. Foi só um eclipse. A gente aprovou na Constituição a obrigação do Estado de reconhecer os direitos indígenas, mas, pouco depois, o Estado já conspirava contra. Foi um decreto de 1996 do então ministro da Justiça, Nelson Jobim, que abriu uma greta para a judicialização das demarcações e, mais tarde, para o argumento do marco temporal.
O texto da Constituição é cristalino, mas aquele decreto de regulamentação deu espaço para os interesses de municípios, governos, fazendeiros e quem mais fosse contrário às demarcações. Inaugurou uma série de questionamentos jurídicos contra as terras indígenas. Daí surgiu o marco temporal. É um assédio institucional constante contra as reservas e a Constituição. Hoje, cada lado reivindica um pedaço da terra até não sobrar nada para o indígena.
Qual o sentimento hoje diante de tantos obstáculos às demarcações?
Eu recorro à declaração de um chefe do povo Seattle nos Estados Unidos no século XIX. Quando perguntaram se ele confiava nas promessas feitas pelo homem branco, o chefe respondeu que a única promessa cumprida até então era a de que eles iriam roubar as terras dos povos nativos. O Artigo 231 é uma conquista pétrea dos povos originários, mas vem sendo avacalhado pelo próprio Estado. Se você rasga a Constituição, o que está sendo ultrajado é o princípio da cidadania. As ameaças obrigam o frágil movimento indígena a se agigantar para proteger o que já deveria estar garantido. Mesmo depois da Constituição, são décadas de assédio institucional e invasões de garimpeiros, grileiros e madeireiros. “Até quando as pessoas vão ficar olhando o povo indígena defender sozinho a floresta?”
O projeto de lei 490/2007 prevê uma grande flexibilização no uso das terras indígenas, alterando a Constituição. Como vê isso?
Estou confiante de que vamos derrubar. O projeto estava evoluindo porque o Congresso estava no bolso dos caras que comandam esse avanço no governo. Agora, está dividido. Eles não aprovaram o voto impresso. Vamos denunciar esse absurdo nos fóruns internacionais. É preciso entender que as reservas não são dos indígenas. As florestas e os rios são do planeta. Tem que chamar atenção para o bem comum que os territórios indígenas proporcionam, para a Humanidade, o clima, o regime de chuvas no país, que depende das florestas. Até quando as pessoas vão ficar olhando o povo indígena defender sozinho a floresta? Cadê o movimento ambiental? Por que deixam o indígena levar bomba de gás lacrimogêneo e spray de pimenta na cara sozinho? Será que as pessoas ainda se interessam pela existência da Amazônia?
A defesa do meio ambiente também é um argumento para impedir essas revisões do Artigo 231?
A Constituição também é clara quando diz que é competência do Estado a proteção do meio ambiente e o combate à poluição. Os territórios prestam esses serviços. Os relatórios das Nações Unidas reafirmam que as reservas se constituem num elemento fundamental para que a floresta continue sendo floresta. Se você vai tirando pedaços, chega uma hora em que não tem mais floresta. Se o Brasil continuar nessa batida de destruição, a Amazônia vai virar uma savana estragada. Como tem muita água, vai ser um pantano produtor de doenças, de pandemias. Vamos assistir aos caras destruindo florestas para criar pasto e traficar ouro? Quando as pessoas atuam contra as terras indígenas, estão dizendo "dane-se" para o meio ambiente.
Em um vídeo publicado nas redes, o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), que votou a favor do PL 490, disse que os indígenas que protestam em Brasília não representam os indígenas que estão nas aldeias. O que acha disso?
É um argumento esquizofrênico. Como ele queria que os indios protestassem? Fazendo fogueiras e sinais de fumaça das aldeias? Alguns deputados querem fazer a gente concluir que o Artigo 231 da Constituição não passa de uma mentira que nos foi prometida em 1988. Esse argumento só contribui para o abismo cognitivo criado por fake news e negacionismo
O presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira (PP-AL), disse que deve se discutir a flexibilização das reservas porque não estamos mais no século XVI
Ele está dizendo o seguinte: "Nós voltamos ao século XVI e, por isso, vamos discutir as terras indígenas". Só que agora as reservas estão sendo invadidas com ajuda de quem tem a atribuição constitucional de proteger essas áreas. O que ele está fazendo é atender ao lobby das mineradoras que querem regulamentar os seus planos de meter a mão nos territórios. Estamos vendo as reservas no meio de uma disputa entre o garimpo ilegal e as grandes mineradoras.
Numa conversa com O GLOBO em março do ano passado, no início da pandemia, você tinha esperanças de que a "parada obrigatória" poderia fazer a sociedade ocidental refletir sobre sua relação com o planeta. Houve essa reflexão?
Na entrevista que estamos fazendo agora, você já ouviu três buzinaços de composições da Vale levando minério para o Espírito Santo. Eu acordo de madrugada com o barulho dos trilhos. Eles intensificaram a produção, aumentaram o número de viagens em 24 horas e, provavelmente, introduziram alguma novidade tecnologica, porque as composições passam numa velocidade incomum. É como se tivessem feito uma parada apenas para preparar a volta com força total. O capitalismo está bombando enquanto as pessoas estão confinadas como hamsters dentro de uma caixa comendo o mundo aceleradamente. Não houve reflexão nenhuma.
Mas há um segmento da economia pressionando por proteção da Amazônia, fontes de energia renováveis e outras inovações que causam menos desgaste do planeta.
Qualquer luz no fim do túnel é esperança. Mas esses empresários não estão conseguindo parar o assalto que está sendo feito na Amazônia, com as invasões dos territórios e essas ameaças de mudar a legislação. Eles estão se manifestando porque seus negócios com a Europa estão sendo prejudicados. E se eles tivessem mesmo peso, estariam no Congresso confrontando o lobby que tenta explorar a Amazônia.
Para convencer a sociedade a defender as reservas, é mais fácil recorrer ao argumento ambiental, da necessidade de conter as mudanças climáticas?
O que pode salvar as terras indígenas não é o interesse nos direitos indígenas, é o interesse ambiental, no clima. É bom que os brancos estejam preocupados com o clima, porque talvez assim eles deixem os indios vivos, já que prestamos esse serviço. O planeta é refém dessa mentalidade do branco, que acha que pode fazer da Terra o que ele quiser. Neste caso, pode admitir que os povos originários continuem vivos. Não tem coisa mais racista. Querem apenas deixar os indígenas nas reservas como se fossem pandas, aturando esses ignorantes do governo que chamam os povos de vagabundos que atrapalham o progresso.
Você e outros líderes indígenas vêm participando de lives com cientistas com Sidarta Ribeiro, Lilia Schwarcz e Marcelo Gleiser. Pode-se dizer que, hoje, existe um diálogo entre o saber dos povos originários e a academia ocidental?
Em um mundo cheio de apartheids, de pessoas presas em bolhas de realidade, eu sinto gratidão quando encontro gente aberta à presença do outro. Isso proporciona uma malha com trocas de experiências que enriquecem o humus, o ambiente. Ajuda a Humanidade a sair daquilo que o Noam Chomsky chama de infodemia. Ao mesmo tempo em que, hoje, estamos chapados pela pandemia de Covid-19, estamos chapados por uma pandemia de informação. O mundo está cheio de cápsulas de informação concentradas, que não valem nada. É preciso se abrir para a relação com o outro. É muito bom conversar com gente como o canadense Jeremy Narby, autor do livro "O DNA e a serpente cósmica" (Editora Dantes), que mostra pontos em comum entre a sabedoria dos povos originários e a academia. Essas trocas têm uma poética contagiante.
Mas, num contexto mais amplo, essa mesma sociedade ocidental ainda enxerga o saber indígena com preconceito, como se fosse folclórico. Você vê isso mudando?
Esse conhecimento não era nem imaginado como um saber no século XX. Os povos originários estavam apenas desaparecendo em silêncio. Quando o Peter Gabriel trouxe o assunto da "world music", ele inspirou a circulação da cultura de um mundo esquecido. Esse mundo esquecido éramos nós, uma subumanidade que vive na borda da sociedade ocidental, cantando, dançando e pirando com a vida independente da erosão capitalista. Hoje, pessoas oriundas de povos originários na África, na Ásia e nas Américas ganharam lugar de pensadores no mundo ocidental. Eles promovem uma sociedade plurinacional e oxigenam a política, saindo do colonialismo. A política não deveria ser essa coisa feudal, atrasada, defendida hoje no Brasil.
O mundo ocidental pode aprender com esses povos algo que a ciência não explica?
A ciência não é exclusividade dos cientistas, é algo compartilhado, está nos fungos, nas raízes, nas copas das árvores. Os povos que perseveraram em comunhão com tudo isso não separam o saber do não saber. Uma pessoa que vive na floresta e experimenta uma visão da ayhuasca sabe como é viajar dentro de uma árvore, movido pela clorofila, na vida de outro ser. Ela experimenta a comunhão com outra dimensão de saber e volta à realidade limitada do corpo humano com uma memória que permite uma compreensão parabólica do mundo.
Para viver bem, essa pessoa não precisa de muito. Sabe que pode viver com essa outra dimensão. Na biografia do Dalai Lama, você entende como um menino pode passar a vida sentado se alimentando de luz. A gente pensa em mundo como algo que se come. Quando se fala em mudanças climáticas, o que assusta é o risco de faltar suprimentos. Seria importante a Humanidade entender que o planeta não é só utilitário. A sociedade precisa parar de olhar o mundo como se fosse um supermercado.
Fonte:https://umsoplaneta.globo.com/sociedade/noticia/2021/08/29/ailton-krenak-sociedade-precisa-parar-de-olhar-o-mundo-como-um-supermercado.ghtml
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