O BRASIL POR EDUARDO
GIANNETTI: ÉTICA, ECONOMIA E BOLSONARO
Autor de 12 livros, o economista e escritor
avalia o momento que estamos vivendo: ”Uma das épocas mais sombrias da
existência da nação brasileira”
11.09.2020
“O
Brasil tem uma oportunidade talvez única de reconhecer a gravidade do abismo
social e da desigualdade que nos envergonha como sociedade”, diz o economista e
escritor mineiro Eduardo Giannetti. Autor de 12 livros, ele conquistou um
público fora dos círculos acadêmicos e tem feito uma contribuição importante ao
pensamento brasileiro ao tratar, além da economia, da ética, da felicidade e da
nossa identidade. Formado pela USP, ele também é Phd em Economia pela
Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Giannetti lecionou nessas duas
universidades e também no Insper, além de ter sido o conselheiro e responsável
pela elaboração do plano econômico de Marina Silva em suas candidaturas à
presidência.
Duas
vezes premiado com o Jabuti – pelos livros Vícios
privados, benefícios públicos? e As
partes e o todo – ele se prepara para lançar mais uma obra, o Anel de Giges. Em conversa com Paulo
Lima, o economista fala sobre coronavírus, inveja, ética, Paulo Guedes e
Bolsonaro. “Nós estamos vivendo uma das épocas mais sombrias da existência da
nação brasileira”, diz.
Em Trópicos
Utópicos, livro publicado em
2016, você fala da importância do dinheiro para a maioria dos ricos como
instrumento para gerar inveja e exibicionismo. Hoje o Instagram é uma
ferramenta na qual você consegue se fazer invejado através de fotos de
situações que supostamente são especiais e que o outro não tem acesso. O quanto
é importante para as pessoas, mais do que a fruição, a exibição do dinheiro?
Que representação de poder é essa? A melhor colocação que eu conheço sobre essa questão é de um
filósofo francês do século XVII chamado Nicolas Malebranche. Ele fala que a
principal pulsão da alma humana é o desejo de ocupar um lugar de honra na mente
dos nossos semelhantes. Só que isso pode se dar de muitas maneiras: na
política, na arte, pela beleza física e também pelo sucesso financeiro, que é a
moeda corrente do nosso mundo, especialmente no padrão cultural
norte-americano. Essa pulsão é muito forte na psicologia do animal humano.
Desejamos ser queridos, respeitados, admirados pelos demais. E não vejo
problema ético nessa pulsão. O problema é o modo como ela se manifesta, e se a
maneira como ela se manifesta é legítima ou espúria. Eu não acho a métrica
monetária do sucesso no mercado alguma coisa bela, ou alguma coisa eticamente
boa como expressão e como realização desse desejo de ser respeitado, estimado e
gostado pelos demais, mas é a dominante no mundo em que nós vivemos. Deixe-me
dar um exemplo bem concreto de economista: um cidadão americano com a renda
mediana está exatamente no meio da distribuição de renda. Metade da população
está abaixo dele, metade da população está acima. Ele está entre os 5% mais
ricos da população mundial, porque os Estados Unidos são um país com uma alta
renda per capita, portanto o mediano americano está na elite da elite da
população mundial. Aí vem a questão: aos seus próprios olhos e aos olhos dos
seus concidadãos norte-americanos ele é um loser, um derrotado, um
fracassado – e, no entanto, ele está entre os 5% mais ricos do planeta!
Tem uma
categoria muito útil para pensar esse assunto que eu uso no livro Felicidade, que é a categoria dos bens posicionais. Se eu tomo um copo
de leite todo dia de manhã, isso me traz uma satisfação que independe do que o
resto das pessoas está fazendo. Agora suponha que eu sou um jovem começando a
vida, muito ambicioso. Eu vou para o mercado financeiro e tenho como grande
troféu de minha conquista comprar uma BMW último tipo. Eu vou lá, ralo 15 horas
por dia no mercado financeiro, conquisto honestamente o dinheiro para comprar
minha BMW. As meninas passam a ver um brilho no meu olhar que eu não tinha,
todo mundo passa a me olhar de uma maneira bem respeitosa quando eu paro num
restaurante, quando eu saio todo mundo olha para mim. Eu estou feliz da vida,
vou pra casa, durmo e, quando acordo na manhã no dia seguinte, aconteceu uma
coisa estranha: todos os carros da cidade foram trocados por BMWs iguais a
minha. Será que esse bem continua tendo o poder de fascinação que ele tinha
quando era um privilégio muito restrito e quase exclusivo de pouquíssimos?
Acabou, aquele carro perdeu a sua condição de bem posicional. A medida que a
sociedade se torna mais afluente, mais próspera, nós caminhamos para uma
situação em que as pessoas passam a competir por bens posicionais. Pode ser um
tênis de marca, uma casa na praia, uma roupa de grife ou um carro. Nos mais
ricos pode ser um iate, um jatinho, é infinito. Essa escassez não tem solução,
ela vai estar sempre sendo recriada. O mercado vai criando novas oportunidades
para você se diferenciar e ocupar um lugar de honra na mente dos seus
semelhantes por ter acesso a bens que os outros não têm, e que acabam invejando
profundamente os que têm. Essa é a lógica que preside boa parte do sistema
econômico hoje: a competição por bens posicionais, poder sinalizar socialmente
que você é um vitorioso nesse sentido. Eu não estou defendendo isso, estou
descrevendo. Porque nós temos que entender se a gente quer se libertar disso.
Não me parece um caminho muito bom, ainda por cima quando surgem restrições e
ameaças impostas até pela natureza. Se todos os chineses e os indianos quiserem
consumir como um norte-americano, não vai dar. Temos que encontrar outros
valores que permitam a realização humana e o reconhecimento dos demais – e que
não sejam esses valores na métrica norte-americana do sucesso.
Entre muitas coisas, essa pandemia nos aproximou
da morte. O vírus colocou a clareza da nossa transitoriedade, da impermanência,
como dizem os budistas. Coisa que as pessoas, nessa sociedade que você acaba de
descrever, fingem que não acontecerá com elas. Será que a partir dessa tragédia
existe alguma chance de haver uma revisão desses valores? O meu desejo e a minha esperança é que essa pandemia produza
amadurecimento ético. Um país como o Brasil tem uma oportunidade talvez única
de reconhecer a gravidade do abismo social e da desigualdade que nos envergonha
como sociedade. Mas, francamente, olhando para o passado da nossa história como
humanidade, o raciocínio me leva a crer que o impacto é muito temporário, e as
coisas voltam a ser muito parecidas com o que eram antes. Nós tivemos no século
XX uma epidemia que foi muito mais devastadora do que a de Covid-19, que foi a
Gripe Espanhola, que matou mais de 50 milhões de pessoas. Nós passamos por duas
guerras mundiais. Nós passamos por bombas atômicas. Esses acontecimentos
provocam mudanças, mas, assim que as coisas se normalizam, elas tendem a voltar
ao equilíbrio anterior. A memória é muito curta. Vou fazer um prognóstico
arriscado aqui: daqui a cinco anos a memória de tudo isso que nós estamos
vivendo vai ser muito superficial.
O que você descreve me faz questionar se o ser
humano deu certo. Uma coisa que
pode provocar uma mudança, pelo bem ou pelo mal, é o limite que é dado pela
natureza. Os sinais de que isso não vai poder continuar por muito tempo.
Eventos climáticos extremos. É como uma doença, uma realidade que se impõe e
obriga a mudança. Eu acho que a nossa responsabilidade é tentar o aprendizado
de modo a evitar a dor, mas, de um modo geral, o aprendizado se dá pela
experiência da dor e da ameaça.
O ambiente digital se
tornou palco de muitos debates contemporâneos. Você, entretanto, escolheu se
manter fora das redes sociais. Por quê? Foi uma opção que
sempre tomei. Gosto do contato humano, pessoal, direto, e acho que essas coisas
me desviam, me distraem e me fragmentam. A minha experiência de plenitude,
quando eu me sinto melhor, mais integrado, mais criativo, mais capaz de chegar
à fronteira do que de melhor eu posso ser, é quando eu vou para Tiradentes, em
Minas Gerais, pego o meu celular, coloco dentro da maleta, a maleta dentro do
armário, fecho o armário e guardo a chave. Neste momento não leio jornal, não
ouço rádio, não vejo televisão. Tenho os meus cadernos, livros e tenho o meu
projeto, e passo a viver por conta disso. Depois de uns 40 dias eu estou
querendo ver amigos, estou querendo beber, sair, me divertir. Mas esses 40 dias
em que estou nesse regime justificam muito de tudo o que eu faço, porque nesse
momento são só coisas que partem de mim e dos projetos que eu vou me sentir em
dívida com a vida se eu não puder realizar. Essas redes sociais todas eu
chamo de "cracolândia digital". Acho que a vida é muito valiosa para
se perder nesses simulacros de fantasias, de superioridade e de exibicionismo.
Não me interessa esse mundo, perda de tempo. Eu sinto um enorme alívio de não
estar ali.
Questionado
se ainda poderemos salvar o planeta, o líder indígena Ailton Krenak em uma
entrevista à Trip respondeu: "Não
tem a menor chance de a gente salvar o planeta. Talvez tenha alguma chance de o
planeta nos salvar." Se continuarmos explorando o planeta
da forma que estamos, é possível que a natureza tire a espécie humana de jogo.
Você acha que o coronavírus é uma amostra disso? O editorial da
Scientific American de junho deste ano fala da relação entre doenças
infecciosas, como as causadas pela família dos coronavírus, e desmatamento. O
vínculo não é uma coisa mística, é concreta. A destruição das florestas no sul
da China está restringindo o espaço de vida de animais selvagens. Eles estão se
contaminando mais uns aos outros, especialmente morcegos que vivem nas cavernas
no sul da China. A origem do SARS-Cov-2 não é o organismo humano, ele ocorre em
outra espécie e passa por várias espécies até chegar ao ser humano. Há uma
prática chinesa de comércio de animais selvagens, e foi num desses mercados em
Wuhan que começou a pandemia. A diferença é que agora o que era um
acontecimento restrito no local, dada a globalização, se torna quase que
instantaneamente uma ocorrência planetária. Isso é um aspecto de fragilidade da
globalização que ninguém tinha pensado muito, tanto na questão epidemiológica,
que são pessoas se movimentando, como estritamente econômica, que são as
cadeias de produção globais. Uma parada em Wuhan para também empresas do mundo
inteiro, que dependem de insumos e produtos que são parte da sua cadeia
produtiva. Isso que o Krenak falou tem uma realidade que é muito passível de
análise empírica científica.
Quando as pessoas
estavam decidindo em quem votar nas últimas eleições presidenciais pesou muito
o fato de ter um sujeito ligado ao mercado como o Paulo Guedes na chapa de Jair
Bolsonaro. Muita gente votou no Bolsonaro por confiar nesse tipo de
profissional, um sujeito liberal de mercado, que representa essa coisa do
banqueiro, da meritocracia, dessa lógica de gerenciar o mundo. Na sua visão,
como tem sido a performance do Paulo Guedes na gestão da economia
nacional? Agora sobre o Paulo Guedes, a primeira coisa que me ocorreu
quando eu vi que ele embarcou nessa aventura foi o seguinte: os economistas
podem ser mais ingênuos sobre a política do que os políticos são ingênuos sobre
a economia. Ele não sabia a aventura na qual estava se metendo. É uma pessoa
ambiciosa, se ressentia muito de não ter feito na sua trajetória um impacto na
política econômica brasileira como a da turma da PUC do Rio que fez o Plano
Real. E ele percebeu no Bolsonaro uma chance de cavalgar um projeto político
que lhe permitisse mostrar do que ele era capaz. Só que ele acabou fazendo um
papel bastante patético, como o Sérgio Moro, que foi muito ingênuo de aceitar e
de acreditar nesse embuste. Durante 30 anos como deputado federal no Congresso,
Bolsonaro foi corporativista. Quando Fernando Henrique privatizou, ele disse
que ele tinha que ser fuzilado, e a poucos meses da eleição ele vira um
neoliberal de Chicago. Quem pode acreditar nisso? Como deputado, Bolsonaro
apresentou dois projetos de lei, e um deles foi a aprovação da pílula do
câncer. E o pior é que ele acredita na pílula do câncer, como ele acredita na
cloroquina. O Brasil elegeu alguém que acredita em pílula do câncer, e o Sérgio
Moro e o Paulo Guedes acreditaram nisso. Se deram mal. O fenômeno Collor não
foi algo muito diferente disso: em nome de barrar o Lula, valia qualquer coisa
para um grupo enorme de brasileiros. Agora foi a mesma coisa, e tem gente
oportunista que embarca nisso. É um infortúnio para o Brasil ter essa
sobreposição de pandemia e Bolsonaro. Nós estamos vivendo uma das épocas mais
sombrias da existência da nação brasileira, na minha opinião.
Você está
prestes a lançar um livro, o Anel de Giges. Sobre o que ele trata? É um livro
sobre ética. Estou ruminando essa criação há pelo menos 40 anos. Ela nasce de
uma fábula que o irmão do Platão conta no Livro II d'A
República. Num reino oriental da Lídia, que é onde hoje está a Turquia,
existia um pastor humilde, um homem comum que estava pastoreando o seu rebanho,
quando de repente ocorre um terremoto. A terra se abre e ele curioso vai lá
olhar. Desce pela fenda e lá encontra um cavalo de bronze oco. Dentro do cavalo
há um cadáver nu com um anel no dedo. O Giges, que é o pastor, retira o anel,
volta para a superfície e continua o seu trabalho de pastoreio. Um dia ele vai
para uma reunião, uma assembleia de pastores lídios e começa a brincar com o
anel no dedo. Ele percebe que quando ele gira o engaste do anel para dentro as
pessoas começam a falar dele como se ele não estivesse lá: ele fica invisível.
Quando ele gira o anel para posição normal ele volta a ficar visível. O que
Giges, o humilde pastor, faz quando descobre o anel com esse poder? Ele se faz
eleger como representante dos pastores para prestar contas ao rei e vai para a
capital, para a corte. Lá ele seduz a rainha e, com a cumplicidade dela,
assassina o rei e se torna o novo soberano da Lídia, interrompendo uma dinastia
de 55 gerações. Isso gera uma guerra civil, porque foi um golpe, ele usurpou o
trono. Para resolver o conflito, resolvem consultar o Oráculo em Delfos, o
oráculo de Apolo. E o oráculo, para quem Giges está mandando presentes valiosíssimo
de ouro e prata, decide que o legítimo rei da Lídia é Giges. E aí ele se
consolida. Mas o Oráculo diz mais uma coisa: "A punição pelo crime do
regicídio virá na quinta geração dos seus descendentes". A culpa de uma
geração era herdada pelas gerações seguintes. E, de fato, essa punição vem e se
abate sobre o rei Creso, que era o pentaneto do Giges. Essa é a fábula. Qual é
a pegada filosófica? Por que importa isso n'A
República? Porque o Glauco, que é o irmão de Platão, conta essa fábula e
desafia o Sócrates: "Sócrates, se eu tenho o anel de Giges, por que eu
seria ético? Eu posso ter tudo o que eu quiser mantendo a minha reputação, já
que sou inimputável ao ficar invisível e posso alcançar uma vida muito mais
plena, sem nenhum tipo de compromisso com a ética". O Sócrates passa o
resto d'A República tentando
mostrar que vale a pena ser ético mesmo que você tenha a certeza da impunidade,
porque a melhor vida é a vida ética.
Há um
paralelo com o foro privilegiado? Cada político brasileiro acha que ganha
um anel de Giges quando entra no Congresso, praticamente isso. O Sócrates
argumenta que, independentemente das consequências benéficas de parecer ético,
ser ético nos dá a plenitude e a melhor vida ao nosso alcance. Isso me
interessa como o problema intelectual, porque dá para pensar a história da
ética, como é que as diferentes correntes de pensamento lidam com essa situação
da certeza da impunidade. Mas, mais importante, eu acho que dá para colocar
isso como questão pessoal: o que é que cada um de nós faria se tivesse no dedo
o anel de Giges? Porque isso revela o que habita o fundo da nossa alma. Poder
ser aquilo que se é, independentemente da punição legal e da censura
moral.
Fonte: https://revistatrip.uol.com.br/trip-fm/o-brasil-por-eduardo-giannetti-etica-economia-e-bolsonaro?utm_source=mkt&utm_medium=email&utm_campaign=TRIP180920-I&utm_content=banner_03
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