Manifestantes favoráveis ao presidente Jair
Bolsonaro protestam contra o ex-ministro Sergio Moro em Brasília, no dia 9 de
maio.ERALDO PERES / AP
O afeto racista como virtude
no Brasil de Bolsonaro
A crise sanitária da covid- 19 pode tanto acelerar um golpe
de Estado, quanto a queda de Bolsonaro e de sua popularidade, mantida pela
manipulação do ancestral e reprimido racismo brasileiro
JESSÉ SOUZA
Jair Bolsonaro é
hoje, dentre os poucos chefes de Estado no mundo a negar os perigos da pandemia
do coronavírus, o mais ousado e irresponsável. Todo dia o esforço de
resguardar a população é sabotado pelo chefe da nação. Dificuldades
burocráticas são criadas artificialmente para impedir que a ajuda chegue aos
mais necessitados e o presidente joga tudo no caos e no conflito. A pandemia é
relegada a um lugar secundário em relação à sobrevivência política do clã
envolvido até o pescoço em
todo tipo de suspeita, desde falcatruas variadas até assassinatos.
Com sua patológica falta de empatia humana, Bolsonaro diz que quem vai morrer
iria morrer de qualquer jeito mesmo, se referindo a idosos e pessoas com
doenças crônicas, e que a morte de alguns milhares não pode parar a economia.
No entanto, o
que mais chama atenção é o fato de que, embora sua popularidade tenha declinado
nas hostes da classe média mais esclarecida, como mostram pesquisas e os “panelaços”
nos bairros mais ricos, sua popularidade continua inabalável.
Bolsonaro mantêm sólido apoio de cerca de 25% a 30% do eleitorado, acima de
tudo nas classes populares evangélicas, o que o permite manter a profunda
divisão política do país e a continuidade da agenda neoliberal turbinada de
destruição do Estado e da constituição “socialdemocrata” de 1988.
Em um período
de crise aguda como esta, onde é necessário acalmar a população e se
sensibilizar com a dor do próximo, Bolsonaro mostra sua incapacidade patológica
de qualquer empatia humana. Ele só reage à mentira, à intriga, à briga
constante. Ele aprendeu com Steve Bannon e com seu aprendiz de feiticeiro
brasileiro, Olavo
de Carvalho, o “guru intelectual” de Bolsonaro e de seus filhos, que
o ódio e o ressentimento são as emoções humanas mais fortes. Se você tem acesso
a uma máquina de fake news como o WhatsApp e dinheiro para
mantê-la, você pode, pela simples manipulação do ódio, manter seu eleitorado
cativo sem oferecer, materialmente, nada em troca. Pior ainda, neste momento,
ele incita seus seguidores mais leais a agirem do mesmo modo irresponsável que
ele. Como explicar tamanha insanidade coletiva?
Por trás de
todo comportamento social abertamente irracional baseado no ódio está alguma
forma de racismo.
E a sociedade brasileira é a campeã do mundo quando se trata de revestir seu
racismo em vestes douradas e reluzentes. Como o racismo aberto no Brasil foi
tornado impossível pelo sucesso da ideologia da mestiçagem a partir dos anos
1930, do elogio ao “povo mestiço” de Gilberto Freyre e de Getúlio Vargas, o racismo
no Brasil vai passar a ser exercido por interposta pessoa. Que a classe média
nunca se importou verdadeiramente com a corrupção ―basta lembrar que nenhuma
alma branca, privilegiada e bem vestida saiu às ruas gritando histericamente
contra a corrupção, como havia feito contra o PT, quando a TV mostrou a todos
as malas
de dinheiro e as alusões a assassinato de Aécio e Temer,
respectivamente, o candidato e o presidente da oposição conservadora. Como é o
comportamento que diz quem as pessoas são, e não o que elas dizem da boca para
fora, o que anima o espírito da classe média? O que está por trás da máscara de
grandeza moral que não pode dizer seu nome?
Ora, como no
Brasil o racismo não pode dizer seu nome (nem Bolsonaro se admite racista), a
saída perfeita é transformar o afeto racista em virtude, possibilitando sua
moralização sob a forma do “combate à corrupção”. Como são sempre pobres e
negros que votam em partidos populares, a pecha de corrupto ou de apoiar
político corrupto permite criminalizar a soberania popular enquanto tal e
legitimar golpes de Estado. Permite também metamorfosear o ódio racista
transformando, de lambuja, o racista das classes altas e brancas em campeão da
moralidade. Desde 1930 esta é a regra de ouro da política brasileira.
Bolsonaro
construiu sua campanha se alimentando do racismo reprimido brasileiro em duas
frentes: o racismo travestido de falso moralismo das classes superiores contra
os pobres e qualquer tentativa de ascensão social dos mesmos, precisamente o
que Lula representava, e contra o “delinquente” das classes populares. O
racismo também é a energia e o afeto principal aqui. Do mesmo modo que o
racismo da classe média contra o povo se traveste de moralismo anticorrupção, o
racismo do “pobre remediado”, evangélico e conservador, que foi a principal
base de apoio a Bolsonaro, traveste seu racismo em luta contra o crime, sendo a
delinquência percebida como atributo do negro pobre. Todo brasileiro sabe,
afinal, por experiência que quem morre nas mãos da polícia é o jovem negro das
favelas. São milhares a cada ano. Uma verdadeira guerra civil onde só se morre
de um lado.
No contexto
das classes populares, o racismo mascarado brasileiro é tornado possível pela
metamorfose que opõe o “pobre honesto” ao “pobre delinquente”. O delinquente é
o “bandido”, que pode ser o simples usuário ou pequeno vendedor de maconha, por
exemplo, no caso do homem, e da “prostituta” se for mulher. São empregos de
quem não tem chance de ter acesso a outra coisa e todos são pobres e a maioria
é negra. O homossexual de ambos os sexos é a outra figura paradigmática do
“delinquente”.
O
bolsonarista das classes populares ganha entre dois e cinco salários mínimos e
é muitas vezes o imigrante europeu branco pobre que não ascendeu, como a
própria família de Bolsonaro, filho de imigrantes italianos pobres do Estado de
São Paulo. São Paulo e o Sul do Brasil concentram a imigração europeia de
italianos, alemães e eslavos. Bolsonaro teve mais de 70% dos votos desta
região, ao passo que apenas 30% dos votos do Nordeste mestiço e negro. Sem ter
acesso aos privilégios educacionais da classe média branca e privilegiada que
comanda o mercado e o Estado em nome da elite econômica, muitos entre eles
seguem o caminho de Bolsonaro e entram nas fileiras das patentes médias e
baixas do exército e das polícias militares.
Bolsonaro é o
líder do “lixo branco” brasileiro, que obviamente abrangem os negros que se
identificam com o opressor e negam o racismo, como o presidente da fundação
Palmares. Um segmento ressentido com a classe média branca e estabelecida, e
que apoia, portanto, a cruzada de Bolsonaro contra a ciência, a pesquisa, a
arte, a universidade pública e o conhecimento. Como o “conhecimento” e o
capital cultural, o fundamento do privilégio da alta classe média, é percebido,
na dimensão intuitiva e afetiva, pelo “lixo branco”, como as causas de sua
inferioridade social, seu apoio à cruzada obscurantista é total. Contra os
pobres e negros abaixo dele socialmente é possível compensar e canalizar
sadicamente o sentimento de inferioridade sob a forma do genocídio dos jovens
negros e repressão de qualquer expressão religiosa, cultural e política dos
negros e dos pobres.
Neste
sentido, a possibilidade de uma catástrofe sanitária nas favelas e bairros mais
pobres, onde as famílias se amontam em espaços ínfimos e sem condições de
higiene, se mostra como uma possibilidade efetiva. Bolsonaro, inclusive, atrasa
e cria dificuldades burocráticas para a ajuda
emergencial decidida recentemente pelo Congresso aos mais
pobres de pouco mais de 600 reais ao mês pelos próximos três meses. Seja pelo
alastramento da covid-19, seja pela fome e desespero de uma população deixada a
míngua e sem assistência, a aposta no caos é um cálculo político do
Bolsonarismo. Bolsonaro busca ansiosamente um pretexto para produzir um caos
social que possa legitimar uma reação armada das milícias e do Exército e um
fechamento do regime político.
Um golpe
evangélico-miliciano-militar, parecido com o que aconteceu na Bolívia em 2019,
seria a salvação de Bolsonaro e sua família acuada por múltiplas acusações de
corrupção e, inclusive, de ligação suspeita com assassinato, como o caso
da vereadora Marielle Franco, que ronda cada vez mais de perto sua
família. A crise sanitária da covid-19 no
Brasil pode tanto acelerar um golpe de Estado mafioso-religioso, quanto a queda
de Bolsonaro e de sua popularidade, mantida por fake news e
pela manipulação do ancestral e reprimido racismo brasileiro.
Jessé
Souza é doutor em Sociologia, com pós doc em psicanálise e
filosofia. É autor de mais de 20 livros.
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