(foto: Getty
Images)
Isolamento
dificulta denúncias de abuso infantil e deve levar a alta de casos, diz
especialista
Professores são principal canal de
denúncia de abusos que acontecem em casa, que correspondem a 70% dos casos,
segundo o Ministério da Saúde
postado em 20/05/2020 15:45 /
atualizado em 20/05/2020 16:48
Sem
escolas e creches funcionando, crianças e adolescentes que chegavam a passar o
dia fora de casa hoje estão isolados.
A quarentena, adotada conforme orientação
da Organização Mundial da Saúde (OMS) para evitar a propagação do novo
coronavírus, também tem grandes chances de ter causado um aumento dos casos de
violência contra crianças e adolescentes.
Essa
é a avaliação da diretora-presidente do Instituto Liberta, Luciana Temer, em
entrevista à BBC News Brasil. Segundo Temer, o afastamento das crianças e
adolescentes da escola durante o isolamento rompeu o principal canal de
denúncias usado por elas para relatar a violência: o professor.
“Dados do Ministério da Saúde dizem que
mais de 70% dos casos de abuso infantil acontecem dentro da residência. O
professor é um adulto que pode perceber esse tipo de situação, seja por uma
marca física, por uma mudança no comportamento ou até mesmo por uma denúncia da
criança. Sem ele, hoje essas vítimas estão impossibilitadas de se encontrar com
alguém fora do ambiente familiar”, afirmou Temer.
Doutora em direito pela PUC-SP e
ex-secretária da Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo, Luciana
Temer afirma que a dificuldade ainda maior para denunciar em conjunto com o
isolamento cria um ambiente de desproteção muito maior para a criança. Ela
disse ainda que nem toda vítima de violência faz a denúncia, muitas vezes por
medo.
As vítimas mais novas, segundo a especialista, têm
até mesmo dificuldade em compreender que estão sofrendo abuso. De acordo com
Temer, muitas crianças sentem desconforto ao serem tocadas por um adulto de
maneira que não estão acostumadas, mas não sabem que aquilo é uma violência.
“Quando a escola fala sobre sexualidade,
respeitadas as devidas idades, você cria um gatilho para que a criança conte a
própria experiência. Quando a professora explica o que são as partes íntimas,
onde pode pegar, ela se dá conta da violência que está sofrendo”, explica a
presidente do Instituto Liberta.
Confinados com o agressor
Temer disse que o ambiente familiar cria uma
“relação óbvia de desproteção” para a criança que sofre abuso. Segundo ela,
isso é agravado porque a mãe, que em tese deveria proteger a criança também
está submetida à violência geralmente cometida pelo marido contra as duas.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o
número de mulheres agredidas no Estado de São Paulo cresceu 44,9% em março de
2020 em comparação com o mesmo período de 2019. Foram 9.817 casos registrados
neste ano contra 6.775 no mesmo período do ano passado.
Para Temer, esse aumento da violência reflete uma
maior submissão feminina durante a pandemia.
Luciana Temer diz que subnotificação de casos de abuso infantil
deve crescer com isolamento adotado para evitar disseminação do coronavírus(foto: Divulgação)
“O
isolamento, somado a outras questões, facilitou o crime. Houve um maior consumo
de álcool, de pornografia, e isso é um gatilho para violência sexual contra
criança. Quando você tem sites pornográficos que incentivam relações sexuais
entre pais e filhas, padrasto, você cria uma bomba-relógio”, afirmou.
Educação e canais de
denúncia
A Secretaria Municipal da Educação de São
Paulo criou o site do Núcleo
de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem para que
estudantes possam ter atendimento psicológico à distância durante a quarentena.
O portal é interativo e o aluno poderá ter acesso, gratuitamente, a informações
e até conversar com psicólogos e psicopedagogos de diversas escolas da cidade.
Dependendo da conversa com os
especialistas, o estudante poderá inclusive ser encaminhado para outras áreas e
até mesmo fazer denúncias.
Luciana
Temer, que também ajudou a desenvolver esse programa, afirmou que a rede
pública municipal desenvolveu outros meios para possibilitar que as denúncias
sejam feitas pelas crianças e adolescentes. A reportagem omitiu a estratégia
para que ela não seja prejudicada.
Um grupo de artistas, ativistas e outros
profissionais lançaram a música “Ninguém
Mexe Comigo!” no YouTube para conscientizar crianças e
adolescentes de forma lúdica sobre o que pode ser considerado um abuso e como
denunciá-lo. A canção, composta pela cantora Bruna Caram foi inspirada no livro
infantil Não
Me Toca, Seu Boboca, de Andrea Viviana Taubman.
Grupo lança música para ajudar criança a identificar e denunciar
casos de violência infantil(foto:
Reprodução/YouTube)
"Estou
feliz em fazer parte deste projeto porque a Ritoca, a personagem do livro, vai
chegar ainda mais longe com seu grito", afirmou Taubman.
Durante o videoclipe, idealizado pela
designer e ativista Paola Bellucci Ortolan, surgem ilustrações que ajudam a
criança a identificar e relatar um abuso.
A canção é acompanhada por Marcelo Jeneci
na voz e sanfona, Alice Bevilaqua de Castro com violino e conta com a
interpretação de libras da Roberta Almeida. A música foi lançada na
segunda-feira, 18 de maio, por ser o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à
Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
No mesmo dia, o Instituto Liberta lançou o
documentário Um Crime Entre Nós, que faz um alerta
sobre a exploração sexual infantil no Brasil. O filme conta com depoimentos de
pessoas como Drauzio Varella, Gail Dines (socióloga e especialista na indústria
pornográfica) e artistas como a youtuber Jout Jout e o apresentador Luciano
Huck.
O Instituto Liberta foi fundado em 2016 por
um membro do Giving Pledge (organização filantrópica de Bill e Melinda Gates,
nos EUA), combate a exploração e abuso sexual no Brasil, em parceria com diversos
órgãos. O filme completo pode ser baixado na plataforma Videocamp.
Dados do Ministério da Saúde dizem
que mais de 70% dos casos de abuso infantil acontecem dentro de casa(foto: Getty Images)
Como saber que uma criança é abusada na quarentena?
Longe do ambiente escolar, onde é feita a maior
parte das denúncias de abuso sexual infantil, Luciana Temer disse as crianças
precisam contar com a ajuda de um adulto fora do ambiente familiar para contar
suas angústias. Essa pessoa também pode monitorar a criança e perceber alguns
sinais de violência sem mesmo que a vítima precise contar.
“Eu faço um apelo para que vizinhos e familiares
ficarem atentos, na medida do possível, se a criança tiver um comportamento
estranho. A família está fechada, mas tem um vizinho que escuta agressões, tem
uma tia que tem contato distante e percebe. É um chamado de responsabilidade de
todos nós, principalmente quando a criança está mais confinada”, afirmou.
Ela disse que não sabe como é possível resolver
esse problema de outra forma, mas que o importante neste momento é evitar que o
problema cresça ainda mais durante o isolamento e que esse aprendizado também
se estenda para depois da quarentena.
“É uma situação muito grave e que não é excepcional
da pandemia. Os números da violência são muito assustadores há anos. Precisamos
fazer o Brasil a falar disso com indignação. Essas situações se naturalizaram
porque somos um país machista e o corpo feminino e infantil não são
respeitados”.
Quem perceber alguma atitude suspeita de abuso
infantil pode fazer uma denúncia pelo Disque 100 ou acionar diretamente a
polícia pelo 190.
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