Um barbeiro da
favela de Mandela, no Rio de Janeiro, trabalha com máscara de proteção durante
pandemia de coronavírus.ANTONIO LACERDA / EFE
O coronavírus dos ricos e o coronavírus dos pobres
Aqueles que têm tudo de sobra atravessam a
tempestade com menos sacrifícios do que os pobres, para os quais a epidemia é
apenas um elemento a mais da dor em que já vivem
Já se escreveu muito sobre
como a tragédia do
coronavírus nos iguala a todos
porque quando golpeia não conhece classes nem ideologias. Mata ricos e pobres. Isso é, no entanto, uma meia-verdade, porque, como sempre
na história, aqueles que têm tudo de sobra atravessam a tempestade com menos
sacrifícios do que os pobres, para os quais a epidemia é apenas
um elemento a mais da dor em que já
vivem.
Pode
parecer, mas não é uma blasfêmia dizer que os pobres sofrem menos do que os
ricos nestas tragédias porque estão acostumados
a conviver com a dor, a frustração e a morte.
Talvez por
isso, os que mais se opõem ao confinamento que pode salvar muitas vidas são
aqueles para quem não faltará nada durante a quarentena, nem mesmo um bom
hospital caso o bicho chegue a pegá-los, como afirmou o ex-ministro da Saúde Luiz
Henrique Mandetta.
Não vimos, de
fato, multidões de pobres saírem às ruas para protestar contra o isolamento,
apesar de serem eles os mais martirizados por essa medida, pois ela os impede
até de sair
para ganhar o pão para sua família. Os pobres não têm
cadernetas de poupança, e sim dívidas, e a epidemia os deixa mais desprotegidos
do que ninguém.
Estão sendo,
paradoxalmente, os mais
ricos que estão forçando as manifestações contra o isolamento —que,
segundo a ciência, é em todo o mundo o único antídoto até hoje para salvar
vidas. Sim, o vírus não é classista, mas as tremendas desigualdades da nossa
sociedade cruel continuam vivas e até se agigantam durante a epidemia.
Para os mais
ricos, os da Casa Grande, o que interessa é que a máquina da produção seja
posta em marcha o quanto antes para que a Bolsa volte a subir.
Talvez seja
por isso que personagens políticos como o presidente Jair
Bolsonaro se revelem desprovidos de sentimentos humanos
elementares de compaixão pelos que mais sofrem as consequências da epidemia, e
cheguem a negá-la.
Isso explica
por que esses pequenos aprendizes de tiranos não se preocupam com aqueles que
mais vão morrer com o vírus. Sabemos
que são os idosos e os que já sofrem de alguma doença crônica.
E essas vítimas são as que menos interessam a todos que veem o mundo sob o
prisma do mero lucro ou do mero interesse político. Para eles, idosos e doentes
são improdutivos em nossa sociedade do consumo e da vertigem da produtividade a
qualquer preço.
Os psicólogos
e psiquiatras estão apontando as consequências negativas que
terá, para nosso cérebro, a crise mundial que afeta a humanidade inteira. E é
aterrador. É um rio de angústias profundas que nossa psique está acumulando, e
ainda não sabemos quais serão suas consequências finais.
Mas, dentro
de tanta dor, angústia e morte, há um aspecto esquecido que poderia nos ajudar
a resgatar um sentimento perdido em nossa sociedade, infectada pelo ódio
político e social. Refiro-me a um certo despertar do mundo das emoções, as mais
positivas, as que nos curam das psicoses e pareciam adormecidas em uma
sociedade contagiada por ódios e discriminações.
É como se o
mundo do dinheiro frio e até o do tédio daqueles que têm a mesa farta tivesse
se apoderado de um mundo que já é incapaz de emoções humanas profundas.
No entanto, a
emoção nos redime de nossos pessimismos estéreis, nos aproxima, nos faz
descobrir algo que acreditávamos ter perdido para sempre imersos, como estamos,
na sociedade do egoísmo e da inveja. As emoções são o oxigênio da nossa vida
interior.
A epidemia,
com suas dores, está nos devolvendo, por exemplo, o gosto pela emoção gerada
pela solidariedade
e pela empatia com os demais, que nos parecem mais próximos e
iguais do que nunca.
É verdade que
as sequelas psiquiátricas provocadas pelo desespero da separação física podem
aumentar durante a crise, como se vê pelo aumento da violência doméstica em
algumas famílias. Mas também é possível que o
confinamento forçado sirva para que muitos casais e famílias
valorizem e reconquistem a intimidade perdida e a alegria de estar juntos.
São essas
emoções que o isolamento desperta repentinamente em nós, fazendo com que nos
sintamos mais amigos e receptivos à dor e à alegria alheias.
Cenas como a
de idosos até de cem anos que saem dos hospitais curados do vírus, sob aplausos
de médicos e enfermeiros, eram inéditas até ontem.
Não podemos
esquecer, nem mesmo nestes momentos trágicos, que a perda das emoções cria
mundos paralelos de ódio e incompreensão da dor e da pobreza alheias.
As emoções,
em vez disso, afastam os demônios da vingança. A emoção positiva está mais
disposta ao perdão do que ao castigo e nos prepara melhor para compreender a
dor e a solidão dos outros.
Quem é
incapaz de abrigar emoções diferentes das criadas pela violência e pela morte
nunca entenderá o que a ternura e o abraço significam.
O que os nazistas,
que arrastavam mães com seus filhos para os crematórios nos campos de concentração,
sabiam sobre emoções como a compaixão pelos outros?
Os incapazes
de emoções são os mais próximos dos psicopatas que matam com a maior frieza do
mundo. Onde estava a emoção nos interrogatórios policiais sob tortura ou nos
pelotões de fuzilamento das ditaduras?
Se o coronavírus nos
servir para despertar os melhores sentimentos de emoção diante da felicidade
alheia, sentimentos que a luta política envenenada aniquilou, a pandemia não
terá sido inútil.
Nada seria
mais positivo para nosso mundo amargurado e cada vez mais injusto e com maior
capacidade de segregação que nascesse um rio de emoções reprimidas capaz de nos
redimir de tantos ódios acumulados.
Só aqueles
que têm a alma seca de emoções não conseguem entender certas correntes de
emoções positivas que só apreciamos quando as perdemos.
É por isso
que todos os ditadores ou aspirantes são sempre os mais alérgicos às emoções
que salvam e unem a humanidade na busca de uma felicidade que não precisaria
matar nem humilhar para se sentir em paz com os outros.
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