CORONAVÍRUS:
O LUGAR DOS ESTADOS UNIDOS NA NOVA GEOPOLÍTICA APÓS A PANDEMIA
A pandemia do novo coronavírus obrigou quase todas as
pessoas do planeta a focar apenas em como viver um dia por vez. Quando a poeira
finalmente baixar, e sairmos de nossas quarentenas, provavelmente vamos encontrar
um mundo com seus horizontes radicalmente transformados. Em muitos aspectos, as
mudanças não serão boas. A pandemia deve reforçar as previsões e os cenários
mais assustadores, geralmente associados a crises sistêmicas, como a da mudança
climática: economia global em retração, colapso do estado, migração forçada nos
países em desenvolvimento e a ascensão do autoritarismo local.
Mas não precisa ser assim. Dependendo da forma como o
mundo responder aos desafios, será possível enfrentar essa tempestade – e talvez
até fortalecer as nossas sociedades durante o processo.
“Quando o impacto do vírus
realmente começar a atingir os países em desenvolvimento, veremos uma nova onda
de instabilidades”.
“No momento, estamos enfrentando essa pandemia como uma
crise de saúde pública. Em algumas semanas ou meses, ela se tornará uma crise
econômica e, até o final do ano, poderemos estar encarando o problema como uma
questão de segurança nacional”, explica David Kilcullen, especialista em
estratégias de contra-insurgência e autor do livro “The Dragons and the Snakes:
How the West Learned to Fight the Rest” (em tradução livre, “Os Dragões e as
Cobras: como o Ocidente aprendeu a combater os outros”, sem edição em
português).
“Quando o
impacto do vírus realmente começar a atingir os países em desenvolvimento,
veremos uma nova onda de instabilidades”, alerta Kilcullen. “Essa pode ser a
crise que vai reordenar o sistema mundial. Ela não tem precedentes em escala, e
seu alcance é global”.
Os países
desenvolvidos, incluindo os Estados Unidos, estão sofrendo quedas violentas em seus PIBs, que podem
encolher de 25% a 30% nos próximos meses. Mas os piores impactos do colapso
econômico podem ocorrer nos países mais pobres. O Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento alertou que o custo econômico provocado pela covid-19
nesses países pode chegar a US$ 220 bilhões. Além do
grande número de pessoas que serão vítimas da insuficiência em cuidados médicos
e saneamento, o impacto financeiro do vírus, sem assistência externa
suficiente, pode ter um peso insustentável em nações onde a estabilidade social
já era precária.
Ainda não sabemos muito sobre como a covid-19 se espalhará
pelo hemisfério sul. Mas se os países mais populosos da África, Ásia e América
Latina sofrerem um estresse significativo e começarem a colapsar, teremos
levantes e migrações que, em comparação, tornarão pequenas as ocorridas na
década passada, após o fim da chamada “primavera árabe”.
Uma maneira de
os estados responderem ao medo e à desordem desencadeados pela covid-19 seria
sacrificar suas ineficientes democracias e adotar o autoritarismo. O governo
húngaro de Viktor Orbán já usou a crise para se transformar efetivamente em uma
ditadura. Nos Estados Unidos, o governo federal propôs conceder a si mesmo poderes
absolutos para deter indefinidamente pessoas durante emergências nacionais, sem
julgamento. Enquanto isso, à medida que a crise persiste e a resposta do
governo dos Estados Unidos continua confusa e ineficaz, cria-se a percepção,
talvez injusta, de que, apesar de sua brutalidade, países autoritários como a
China são melhores no gerenciamento de crises do que democracias tumultuadas.
Membros da Guarda Nacional de
Maryland descarregam caixas com camas da FEMA, a Agência Nacional de
Emergências, no centro de convenções de Baltimore, Maryland, em 28 de março de
2020. A Guarda Nacional montou um hospital de campanha com 250 leitos para
pacientes com a covid-19.
Foto:
Gabriella Demczuk
OS ESTADOS UNIDOS já esperavam um período de incerteza política
com seu volátil presidente concorrendo à reeleição. Ainda não está claro por
quanto tempo a atual pandemia continuará, ou se serão necessárias medidas
draconianas de distanciamento social em resposta a uma nova onda da doença no
outono. Mesmo antes da covid-19, havia questões a respeito da imparcialidade
das votações e sobre como o presidente Donald Trump poderia se comportar caso
seu mandato estivesse ameaçado em novembro. Com o início da pandemia, o perigo
de uma possível instabilidade resultante de seu comportamento parece muito
maior.
“Se a pandemia continuar até
novembro, os observadores da eleição vão se preocupar com o fato de que
qualquer resultado será suspeito pelas circunstâncias nas quais a votação foi
realizada”, explica Stephen Walt, professor de assuntos internacionais na
Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade Harvard. “Se o resultado for
apertado, ou se ambos os lados declararem vitória, poderá haver uma séria
ruptura no processo eleitoral. E, pela primeira vez em nossa história, também
temos um presidente em exercício que pode muito bem usar essa situação como
desculpa para se manter no poder”.
Para dizer o mínimo, a situação política tem alguns
perigos pela frente. Nas palavras imortais de Homer Simpson, no
entanto, esses desafios também aumentam a possibilidade de “crisunidade”.
Em todo o espectro político nos Estados Unidos, estão
sendo discutidas respostas econômicas à crise que seriam consideradas fantasia
há pouco tempo, incluindo a expansão das proteções do estado de bem-estar
social e o investimento em infraestrutura nacional. Muitas dessas mudanças eram
extremamente necessárias, mas, conforme a dimensão da crise torna-se mais
clara, é possível enxergar esses investimentos como importantes à segurança
nacional – sempre uma boa maneira de fazer fluir as torneiras orçamentárias.
“A força de uma nação se concentra antes de tudo na sua
força doméstica. Uma coisa que a crise oferece é a chance de se valer do
‘keynesianismo militar’, direcionando dinheiro do orçamento do Departamento de
Defesa para a infraestrutura, e categorizando o gasto como defesa nacional”,
explica Matthew Schmidt, professor de segurança nacional e ciência política da
Universidade de New Haven. “Devemos ter como prioridade alcançar o resto do
mundo em questões como nosso transporte público, nossa educação, e nosso
sistema de saúde, pois todos estão mostrando sinais de estresse. Ainda é
politicamente difícil fazer mudanças deste tipo, mas este momento é
provavelmente a melhor chance das últimas décadas.”
Não é preciso dizer que a resposta inicial dos Estados
Unidos ao coronavírus foi um fracasso. Apesar de meses para se preparar, a
pandemia se espalhou pelo país antes que os testes e a infraestrutura adequada
fossem implementados para gerenciar a crise. A má gestão, sem dúvida,
contribuiu para o atual número de mortos, e provavelmente matará muito mais.
Mas a crise não acabou. Ainda há espaço para os governos federal e estaduais
mostrarem competência e capacidade de gerenciar o problema de maneira eficaz.
O GRAU DE SUCESSO alcançado
pelas autoridades dos Estados Unidos nas próximas semanas e meses fará
diferença para os norte-americanos, mas também para os países do resto do
mundo, que irão assistir e comparar os resultados obtidos por grandes
democracias, como os Estados Unidos, e por governos autoritários, como a China.
A maneira como outros países percebem o sucesso relativo desses dois modelos
será importante para determinar o seu próprio caminho político. Se os Estados
Unidos conseguirem controlar a pandemia em casa, também terão condições de
ajudar a reduzir seu impacto nos países em desenvolvimento. Um passo
importante, que poderia ser dado imediatamente, seria a retirada de sanções
contra o Irã, que já comprometeram a capacidade do país em
conter o vírus.
“Essa crise global não teria sequer ocorrido caso as autoridades
locais da China não tivessem mentido sobre a seriedade do problema.”
Apesar do cenário atual – e dependendo de como agirmos –
ainda existem boas razões para resistir à tentação autoritária.
“Fico surpreso quando pessoas no Ocidente olham para a
resposta chinesa à pandemia e acham que foi feito um bom trabalho”, avalia
Martin Gurri, ex-analista da CIA e autor de “A Revolta do Público“. “Essa crise global não
teria sequer ocorrido caso as autoridades locais da China não tivessem mentido
sobre a seriedade do problema. A única questão agora é saber se os líderes
nacionais foram enganados por suas próprias informações, ou se foram cúmplices
em esconder a situação.”
“Os países democráticos ficaram bastante confusos, e não
responderam à crise tão bem quanto poderiam”, acrescentou Gurri. “Mas não
devemos confundir isso com a terrível politização que acontece em países
autoritários, onde a primeira pergunta que as autoridades fazem em resposta a
uma crise não é sobre como pará-la, mas sobre como enquadrá-la de forma que a
imagem do governo pareça a melhor possível.”
Tradução:
Antenor Savoldi Jr.
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