CORONAVÍRUS: O LUGAR DOS ESTADOS UNIDOS NA NOVA GEOPOLÍTICA APÓS A PANDEMIA


Juana Gomez, à esquerda, usa máscara, luvas, e um saco de lixo para se proteger da chuva na fila de espera em um centro de distribuição de alimentos durante a pandemia do coronavírus, no dia 9 de abril de 2020, em Van Nuys, na Califórnia.

CORONAVÍRUS: O LUGAR DOS ESTADOS UNIDOS NA NOVA GEOPOLÍTICA APÓS A PANDEMIA

A pandemia do novo coronavírus obrigou quase todas as pessoas do planeta a focar apenas em como viver um dia por vez. Quando a poeira finalmente baixar, e sairmos de nossas quarentenas, provavelmente vamos encontrar um mundo com seus horizontes radicalmente transformados. Em muitos aspectos, as mudanças não serão boas. A pandemia deve reforçar as previsões e os cenários mais assustadores, geralmente associados a crises sistêmicas, como a da mudança climática: economia global em retração, colapso do estado, migração forçada nos países em desenvolvimento e a ascensão do autoritarismo local.
Mas não precisa ser assim. Dependendo da forma como o mundo responder aos desafios, será possível enfrentar essa tempestade – e talvez até fortalecer as nossas sociedades durante o processo.
“Quando o impacto do vírus realmente começar a atingir os países em desenvolvimento, veremos uma nova onda de instabilidades”.

“No momento, estamos enfrentando essa pandemia como uma crise de saúde pública. Em algumas semanas ou meses, ela se tornará uma crise econômica e, até o final do ano, poderemos estar encarando o problema como uma questão de segurança nacional”, explica David Kilcullen, especialista em estratégias de contra-insurgência e autor do livro “The Dragons and the Snakes: How the West Learned to Fight the Rest” (em tradução livre, “Os Dragões e as Cobras: como o Ocidente aprendeu a combater os outros”, sem edição em português).
“Quando o impacto do vírus realmente começar a atingir os países em desenvolvimento, veremos uma nova onda de instabilidades”, alerta Kilcullen. “Essa pode ser a crise que vai reordenar o sistema mundial. Ela não tem precedentes em escala, e seu alcance é global”.
Os países desenvolvidos, incluindo os Estados Unidos, estão sofrendo quedas violentas em seus PIBs, que podem encolher de 25% a 30% nos próximos meses. Mas os piores impactos do colapso econômico podem ocorrer nos países mais pobres. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento alertou que o custo econômico provocado pela covid-19 nesses países pode chegar a US$ 220 bilhões. Além do grande número de pessoas que serão vítimas da insuficiência em cuidados médicos e saneamento, o impacto financeiro do vírus, sem assistência externa suficiente, pode ter um peso insustentável em nações onde a estabilidade social já era precária.
Ainda não sabemos muito sobre como a covid-19 se espalhará pelo hemisfério sul. Mas se os países mais populosos da África, Ásia e América Latina sofrerem um estresse significativo e começarem a colapsar, teremos levantes e migrações que, em comparação, tornarão pequenas as ocorridas na década passada, após o fim da chamada “primavera árabe”.
Uma maneira de os estados responderem ao medo e à desordem desencadeados pela covid-19 seria sacrificar suas ineficientes democracias e adotar o autoritarismo. O governo húngaro de Viktor Orbán já usou a crise para se transformar efetivamente em uma ditadura. Nos Estados Unidos, o governo federal propôs conceder a si mesmo poderes absolutos para deter indefinidamente pessoas durante emergências nacionais, sem julgamento. Enquanto isso, à medida que a crise persiste e a resposta do governo dos Estados Unidos continua confusa e ineficaz, cria-se a percepção, talvez injusta, de que, apesar de sua brutalidade, países autoritários como a China são melhores no gerenciamento de crises do que democracias tumultuadas.
Membros da Guarda Nacional de Maryland descarregam caixas com camas da FEMA, a Agência Nacional de Emergências, no centro de convenções de Baltimore, Maryland, em 28 de março de 2020. A Guarda Nacional montou um hospital de campanha com 250 leitos para pacientes com a covid-19.
Membros da Guarda Nacional de Maryland descarregam caixas com camas da FEMA, a Agência Nacional de Emergências, no centro de convenções de Baltimore, Maryland, em 28 de março de 2020. A Guarda Nacional montou um hospital de campanha com 250 leitos para pacientes com a covid-19.

Foto: Gabriella Demczuk

OS ESTADOS UNIDOS já esperavam um período de incerteza política com seu volátil presidente concorrendo à reeleição. Ainda não está claro por quanto tempo a atual pandemia continuará, ou se serão necessárias medidas draconianas de distanciamento social em resposta a uma nova onda da doença no outono. Mesmo antes da covid-19, havia questões a respeito da imparcialidade das votações e sobre como o presidente Donald Trump poderia se comportar caso seu mandato estivesse ameaçado em novembro. Com o início da pandemia, o perigo de uma possível instabilidade resultante de seu comportamento parece muito maior.
“Se a pandemia continuar até novembro, os observadores da eleição vão se preocupar com o fato de que qualquer resultado será suspeito pelas circunstâncias nas quais a votação foi realizada”, explica Stephen Walt, professor de assuntos internacionais na Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade Harvard. “Se o resultado for apertado, ou se ambos os lados declararem vitória, poderá haver uma séria ruptura no processo eleitoral. E, pela primeira vez em nossa história, também temos um presidente em exercício que pode muito bem usar essa situação como desculpa para se manter no poder”.
Para dizer o mínimo, a situação política tem alguns perigos pela frente. Nas palavras imortais de Homer Simpson, no entanto, esses desafios também aumentam a possibilidade de “crisunidade”.
Em todo o espectro político nos Estados Unidos, estão sendo discutidas respostas econômicas à crise que seriam consideradas fantasia há pouco tempo, incluindo a expansão das proteções do estado de bem-estar social e o investimento em infraestrutura nacional. Muitas dessas mudanças eram extremamente necessárias, mas, conforme a dimensão da crise torna-se mais clara, é possível enxergar esses investimentos como importantes à segurança nacional – sempre uma boa maneira de fazer fluir as torneiras orçamentárias.
“A força de uma nação se concentra antes de tudo na sua força doméstica. Uma coisa que a crise oferece é a chance de se valer do ‘keynesianismo militar’, direcionando dinheiro do orçamento do Departamento de Defesa para a infraestrutura, e categorizando o gasto como defesa nacional”, explica Matthew Schmidt, professor de segurança nacional e ciência política da Universidade de New Haven. “Devemos ter como prioridade alcançar o resto do mundo em questões como nosso transporte público, nossa educação, e nosso sistema de saúde, pois todos estão mostrando sinais de estresse. Ainda é politicamente difícil fazer mudanças deste tipo, mas este momento é provavelmente a melhor chance das últimas décadas.”
Não é preciso dizer que a resposta inicial dos Estados Unidos ao coronavírus foi um fracasso. Apesar de meses para se preparar, a pandemia se espalhou pelo país antes que os testes e a infraestrutura adequada fossem implementados para gerenciar a crise. A má gestão, sem dúvida, contribuiu para o atual número de mortos, e provavelmente matará muito mais. Mas a crise não acabou. Ainda há espaço para os governos federal e estaduais mostrarem competência e capacidade de gerenciar o problema de maneira eficaz.
Após ajudarem no esforço de combate à covid-19 em Wuhan, membros da equipe médica recebem flores ao voltar para casa em Bozhou, na província chinesa de Anhui, em 10 de abril de 2020.
Após ajudarem no esforço de combate à covid-19 em Wuhan, membros da equipe médica recebem flores ao voltar para casa em Bozhou, na província chinesa de Anhui, em 10 de abril de 2020.

Foto: AFP via Getty Images

O GRAU DE SUCESSO alcançado pelas autoridades dos Estados Unidos nas próximas semanas e meses fará diferença para os norte-americanos, mas também para os países do resto do mundo, que irão assistir e comparar os resultados obtidos por grandes democracias, como os Estados Unidos, e por governos autoritários, como a China. A maneira como outros países percebem o sucesso relativo desses dois modelos será importante para determinar o seu próprio caminho político. Se os Estados Unidos conseguirem controlar a pandemia em casa, também terão condições de ajudar a reduzir seu impacto nos países em desenvolvimento. Um passo importante, que poderia ser dado imediatamente, seria a retirada de sanções contra o Irã, que já comprometeram a capacidade do país em conter o vírus.
“Essa crise global não teria sequer ocorrido caso as autoridades locais da China não tivessem mentido sobre a seriedade do problema.”
Apesar do cenário atual – e dependendo de como agirmos – ainda existem boas razões para resistir à tentação autoritária.
“Fico surpreso quando pessoas no Ocidente olham para a resposta chinesa à pandemia e acham que foi feito um bom trabalho”, avalia Martin Gurri, ex-analista da CIA e autor de “A Revolta do Público“. “Essa crise global não teria sequer ocorrido caso as autoridades locais da China não tivessem mentido sobre a seriedade do problema. A única questão agora é saber se os líderes nacionais foram enganados por suas próprias informações, ou se foram cúmplices em esconder a situação.”
“Os países democráticos ficaram bastante confusos, e não responderam à crise tão bem quanto poderiam”, acrescentou Gurri. “Mas não devemos confundir isso com a terrível politização que acontece em países autoritários, onde a primeira pergunta que as autoridades fazem em resposta a uma crise não é sobre como pará-la, mas sobre como enquadrá-la de forma que a imagem do governo pareça a melhor possível.”
Tradução: Antenor Savoldi Jr.


Comentários