Coronavírus e fascismo de
Bolsonaro nos fazem esperar por nova era, diz Sidarta
Devemos
nos basear nos fatos e na ciência e buscar a saída para um mundo melhor
29.mar.2020 à 1h00
Sidarta Ribeiro*
[RESUMO] Neurocientista alerta que a pandemia do novo coronavírus terá consequências
dramáticas e haverá multiplicação das mortes se negarmos os fatos e não
utilizarmos o melhor da ciência; autor diz ver no enfrentamento da crise a
possibilidade de mudanças profundas e a chance de construir um sistema econômico mais justo e humano.
Aos negacionistas, em especial aos médicos que embarcaram
na gripezinha do atleta Jair Bolsonaro, relembro a tira
da genial Laerte, citada há poucos dias pelo poeta e guerrilheiro
cultural Gregorio Duvivier: a grande ficha está caindo.
A crise está apenas começando. A Covid-19 vitima os pobres de forma brutal, mas também atinge a
classe média e os ricos de modo inédito desde a descoberta dos antibióticos.
Ave Caesar, morituri te salutant!
Vivemos o início da primeira onda da Covid-19, e as consequências serão dramáticas se não
utilizarmos o melhor da ciência. Negar o desastre e minimizar nossa responsabilidade
levarão à multiplicação das mortes e a condições graves
que ficarão sem tratamento, quando nosso Sistema Único de Saúde for saturado.
Reze fervorosamente pela saúde de nossas enfermeiras e nossos enfermeiros, que
diariamente arriscam seus pescoços enquanto o pervertido das flexões de
pescocinho vai na contramão do mundo e conclama aglomerações.
A OMS foi explícita: todo esforço precisa ser feito para achatar
a curva de infecção, reduzindo mortes e ganhando tempo precioso para que as
equipes de saúde lidem com os casos mais graves sem se desorganizarem,
estafarem ou contaminarem.
Os danos da explosão viral por transmissão comunitária só poderão ser contidos
se praticarmos consistentemente o distanciamento físico e a aproximação
virtual. É preciso cessar todas as atividades presenciais não essenciais. É
preciso prover água e sabão. É preciso abrir ao povo os hospitais privados. É
preciso verdadeiramente agir como católico, evangélico, umbandista, espírita,
muçulmano ou ateu: é preciso ser humano.
Também é fundamental impedir que as formas brandas de infecção
por Covid-19 se transformem em pneumonia. A hidroxicloroquina tem, sim, potencial para
salvar vidas, mas sua eficácia clínica ainda não foi bem estabelecida, e seus
perigosos efeitos colaterais precisam ser considerados por médicos
prescritores, evitando a automedicação.
Pessoas que já usam esse medicamento precisam ter seu tratamento
garantido. É crucial abastecer os estoques, especialmente se a esperança
depositada nesse remédio se confirmar.
Em paralelo, é essencial liberar imediatamente os recursos para
pesquisa contingenciados nos últimos anos —sobretudo o Fundo Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico— para financiar o desenvolvimento e
produção de testes, diagnósticos, remédios, vacinas, equipamentos de proteção
individual e abordagens psicossociais que mitiguem o desespero da população.
É uma vergonha indesculpável que o Brasil ainda não tenha
quantidade suficiente de máscaras e testes para a Covid-19. Sem testagem ampla e rastreio minucioso, a infecção
seguirá invisível e avançando. Tivemos vários meses para nos preparar —e não
fizemos nada.
Uma segunda onda de infecção da Covid-19 é esperada; temos que
nos preparar para uma longa batalha. Haverá paralisia da produção de bens,
interrupção dos serviços e quebra de empresas. Precisaremos de planejamento
estratégico fundado na melhor ciência econômica —não a do rentismo abutre de Paulo Guedes, insensível ao
sofrimento, mas a que almeja o verdadeiro bem-estar geral.
O insuspeito direitista Ronaldo Caiado (DEM), médico e governador de
Goiás, deu o diagnóstico cabal de Bolsonaro: “Ele deve ter sido contaminado por
algum empresário que só enxerga cifrão [...]. Está mais preocupado com CNPJ do
que com CPF”. Felizmente, porém, sem CPF não existe CNPJ. Mais do que nunca, é
preciso amar como se houvesse amanhã.
É óbvio que precisamos de robustos investimentos do Estado para
superar o abismo. É o que faz o mundo inteiro. Não se pode cortar salários; ao
contrário, precisamos garantir renda mínima. É urgente suspender o pagamento
dos juros e encargos da dívida pública e taxar os mais ricos para financiar o
consumo dos mais pobres.
Governo, bancos e grandes fortunas devem pagar a conta, caso não
queiram ver todo o sistema colapsar. É urgente revogar a PEC 95, do teto de gastos, que impede nosso desenvolvimento. A
crise nos encontra despreparados, sucateados, entorpecidos de neoliberalismo
tosco e sádico.
Pagamos à vista a dívida acumulada do descaso irresponsável com
saúde, educação e ciência. Os ataques irracionais feitos a nossas universidades
estão custando caríssimo. Se na última década tivéssemos investido os recursos
previstos para ciência e tecnologia, saúde e educação, como fizemos entre 2003
e 2010, não estaríamos nesta situação.
Mudar a estratégia é urgente. O futuro da ciência brasileira é o futuro do
Brasil. É preciso recolocar o país nos trilhos. Ainda dá tempo de acordar desse
pesadelo.
Será que ainda dá tempo? Ou aceleraremos de olhos fechados rumo
ao precipício final? Estaremos numa bifurcação da história, no umbral de uma
transição de fase, num ponto de mutação?
De olhos fechados, ergo os braços e encho lentamente os pulmões,
inalando suavemente... suavemente... e seguro a respiração: 10, 9, 8, 7, 6, 5,
4, 3, 2, 1, 0… e então me entrego completamente, até afinal explodir o corpo
inteiro e me desintegrar no cosmos, como se o vulcão de Krakatoa tivesse
entrado em erupção e eu fosse um jorro de átomos rumo ao infinito, liberto num
urro primitivo nascido das profundezas do ser… enfim a paz do Big Bang. Enfim o
amor cósmico. Tempo e espaço cessam e entendo que voltei para casa. Enfim...
Não sei quanto tempo passa. Dez minutos, se tanto? Quando o ego
finalmente ressurge da experiência e posso novamente conversar comigo,
manifesta-se a visão do horror... vejo mortandade global, hospitais lotados,
favelas fúnebres, presídios infernais, valas comuns e cortejos de ataúdes sem
fim, enquanto líderes políticos e religiosos negam a realidade e pedem dízimo...
tristeza, abandono, desamor.
Vejo a peste tomando o planeta e colocando o capitalismo
predatório de joelhos, enquanto a chacota necrofílica do presidente promove a contaminação. Vejo médicos ideologizados se
descolando da realidade, vejo milicianos em pulsão de morte achacando o povo à
vontade, vejo o esvaziamento das cidades. Mercados financeiros derretendo,
produção industrial cessando, alimentos e remédios escasseando. O caos
chegando.
Uma planta, um cogumelo, um velho. Um enorme sapo coaxando sob
uma molécula semelhante à serotonina. Uma voz grave que diz:
5-metoxi-dimetiltriptamina. Vejo um pulmão desinflamado. Um doente acamado. Um
homem barbado sorrindo. Será a cura vindo?
EUA, Europa, Rússia e Índia reagiram tarde à Covid-19, para
salvaguardar a sociedade piramidal neoescravista. O México vai na mesma direção, mas pela esquerda,
enquanto ao Brasil neofascista cabe ser o laboratório mais radical da tentativa
desesperada de salvar o privilégio do 1% mais rico.
Somos bucha de canhão da pandemia, balão de ensaio da anomia,
experimento deliberado de extermínio generalizado. Não por acaso o real foi a
moeda que mais se desvalorizou nas últimas semanas. Ao império interessa que o
Brasil se arrebente. Fica mais fácil explorar a gente.
Trump e Bolsonaro apostam que as pessoas toparão morrer para
manter vivas as engrenagens da Matrix. Pedem que todos continuem a vender bem
barato seus corpos, tempo, mente, sangue e respiração, para que os mais ricos
fiquem ainda mais ricos, e que tudo o mais vá para o inferno.
Perdidamente viciados em dinheiro —esse liberador de dopamina
tão poderoso quanto a própria cocaína—, os bilionários entram em pânico pela
antecipação da síndrome de abstinência. Querem acelerar a economia, sem se
importar com as consequências. Insones, trêmulos e taquicárdicos, já não sabem
sonhar o que jaz adiante.
Querem mais do mesmo, até a última dose. Entre a nova era e o
desmame do dinheiro, preferem a morte. Alheia, evidentemente. É por isso que o
grande capital, que sempre se nutriu da ciência, desacoplou-se dela quando os
alertas sobre catástrofes antropogênicas se tornaram incômodos. O negacionismo
energúmeno da extrema direita é a soma da avareza com um profundo analfabetismo
científico.
Só que dessa vez não vai colar. “Deu ruim.” Assim como na
overdose de cocaína, um pouquinho mais de droga será fatal. O colapso econômico
pode nos levar rapidamente ao cenário Mad Max se a lógica de predadores contra
presas não for superada.
Pode até ser que no último instante a ciência venha a salvar os
mercados do nocaute, soando o gongo redentor com uma descoberta milagrosa,
justo quando o último assalto estiver quase no fim.... mas a esta altura é
improvável que o socorro chegue a tempo.
Foram anos de descaso, desmonte e sabotagem. O capitalismo
abusou da regra três. O oportunismo criminoso das hienas financistas está
sucumbindo por falência múltipla de órgãos.
Depois da negação vêm assassinato e suicídio. Quando a invasão
nazista fracassou em Stalingrado, o grande genocida Adolf Hitler freou a
retirada das tropas alemãs para permitir aos psicopatas de suástica executar
todos os judeus e demais indesejados. E então, quando se esgotaram todas as
ilusões do monstro, ele simplesmente se matou.
Em meio à hecatombe em curso, o aspirante a genocida BolsoNero continua a repetir que não podemos
parar. “O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara
pulando em esgoto ali. Ele sai, mergulha e não acontece nada com ele. Eu acho
até que muita gente já foi infectada no Brasil, há poucas semanas ou meses, e
ele já tem anticorpos que ajuda a não proliferar isso daí”, declarou o presidente.
É evidente que fala de si, verme infectado saído do esgoto da
ditadura. Imerso em Tânatos, quer imolar o Brasil inteiro, liderando a casa
grande na tentativa de massacrar a senzala. Mas são os ricos que precisam dos
pobres. Chegou a hora do despertar d@s escrav@s.
O simulacro econômico nunca foi tão irreal, e o que parecia
sólido se desmancha no ar. Quebra das cadeias produtivas, desemprego, depressão
econômica. Como disse o jornalista clarividente Pepe Escobar, o dólar vai virar
papel higiênico verde. Game over…
Roberto Justus, Junior Durski e Osmar Terra vão pagar caro pelo
que disseram. Serão varridos pelas evidências, e o povo vai cobrar a fatura.
Como no filme “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), do cineasta apocalíptico
Rogério Sganzerla, “quem tiver de sapato não sobra…”.
A síndrome respiratória aguda grave e a maligna austeridade econômica vão ceifar milhares,
milhões, talvez dezenas de milhões de vidas. Talvez mais… não estamos
preparados para tanta tristeza, para o trauma em escala global.
Como cansou de alertar o xamã ianomâmi Davi Kopenawa, o céu está caindo
sobre as nossas cabeças. Remédio de índio é duro, mas funciona. Chegou a hora
da purga. Como avisou a cartunista e transxamã Laerte, a grande ficha está
caindo.
Agora só nos resta compreender
que vida e morte são duas faces da mesma ficha. Quando a poeira baixar, daqui a
meses ou mesmo anos, teremos a chance de construir um sistema econômico justo,
sustentável, racional e amoroso. Menos dopamina e mais serotonina.
Baixada a febre do vício em
dinheiro e da pressa de correr rumo a lugar nenhum, talvez tenhamos a chance de
recomeçar. Talvez, apenas talvez…
Não podemos perder essa
oportunidade, se houver. Veremos a redução da poluição e a desaceleração do
aquecimento global. Virá uma nova ordem, bem mais chinesa do que
norte-americana. Emergirá um Sistema Único de Saúde planetário. Ubuntu.
Que venha então a cura.
Finalmente teremos a chance de olhar para dentro e, com toda a sabedoria
acumulada desde a aurora paleolítica, criar uma sociedade digna de tod@s
human@s e demais animais, plantas, fungos, algas, bactérias... e vírus.
A mudança está apenas começando.
Depois da pós-verdade, só interessa a verdade. Precisaremos de Buda, Cristo e
todas as filhas de Gandhi.
Precisaremos de Aqualtune,
Akotirene, Dandara e Zumbi. Precisaremos de Ester Sabino, Jaqueline de Jesus e
Ana Tereza Ribeiro de Vasconcelos. Precisaremos tratar o trauma. Despertar do
samsara. Amar a alma. Cessar o carma. Render-se ao darma. Em português moderno:
surrender.
E sem arma.
*Sidarta Ribeiro
Professor titular e vice-diretor do Instituto do
Cérebro da UFRN, doutor pela Universidade Rockefeller (EUA), pós-doutor pela
Universidade Duke (EUA) e autor, entre outros, de 'O Oráculo da Noite: A
História e a Ciência do Sonho' (Companhia das Letras)
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