A PANDEMIA COMO ISCA NO MAR DE QUESTÕES DE CADA CRIANÇA: O QUE DIZEM AS CRIANÇAS E PRÉ-ADOLESCENTES SOBRE O SEU SOFRER?

COVID-19: Crianças enfrentam risco maior de abuso e negligência em ...
A PANDEMIA COMO ISCA NO MAR DE QUESTÕES DE CADA CRIANÇA:

O que dizem as crianças e pré- adolescentes sobre seu sofrer?


Por Tãnia Ferreira,psicanalista

- “Tâniaaaa, toma cuidado com o coronavírus...muito cuidado, muito cuidado”....
Nesse mesmo áudio, essa criança pequena diz que vai me mandar uma foto de “como está em casa”.

Na segunda semana de quarentena, essa mesma criança diz que precisa proteger seu “bisavô” que tem oitenta anos, pois “ainda não inventaram a vacina para o coronavírus”, “só depois ficaremos seguros”....

Sabemos que o sujeito fala no campo do Outro. Pode-se escutar, de saída, que se sente desprotegida, insegura e sem remédio frente ao perigo do vírus e que retrataria o que vivia em casa - escutei.

Respondi a todos os áudios com palavras apaziguadoras, assegurando que a analista estava se cuidando e que ela se cuidasse também e aceitasse os cuidados da mãe, do pai e da ajudante – que sempre recusou, de certo modo. Que tudo isso iria passar!!!

Contudo, se num primeiro momento, cogitei atendê-la, não fiz um movimento de buscar o consentimento dos pais. Resolvi aguardar. Dias depois, recebo outro áudio dela, dizendo que ela estava em casa, mas a mãe saia para trabalhar. O pai sim, estava trabalhando em casa, on-line.

- “Que dia posso ir lá no consultório? Ou você vai me atender on-line por causa do coronavírus?” Assim, aparece claramente a demanda, já antes anunciada. De imediato respondi que a atenderia on-line se os pais consentissem. Iniciamos na mesma semana seus atendimentos, após livre consentimento dos pais.

Embrulhados na questão do coronavírus, descreve sua própria questão com o não-saber, as dificuldades com a escola - agora virtual – e seu medo da morte.

Recentemente fala, não sem certo pânico, da obrigatoriedade decretada pelo prefeito do uso de máscara. Diz que falam que seu nariz “não funciona”- como então poderia respirar usando máscara?
A analista intervém com palavras, mas também dá certa prova de realidade, colocando em si mesma uma máscara, enquanto falava um pouco mais com a criança sobre a proteção e o cuidado que ela própria dizia que teríamos de ter. A criança diz estar mais tranquila para usar a máscara. A falta de ar frente ao imperativo do Outro, cede lugar a uma escolha por proteção.
Esse também foi o tema de uma sessão on-line de outra criança, atordoada não somente com a “falta de ar” que poderia ocorrer sob a máscara, como também com os gastos com “máscaras que só duram 04 horas”.... A família já está “ficando pobre”, como vão gastar tanto com máscaras?

Assim, a questão com o real da falta vai se anunciando, através: ar, dinheiro, vacina, qualquer coisa serve de esteio para essa questão nodal e difícil – a que a neurose responde.

O prosseguimento do tratamento foi demandado em mensagem de zapp pelos pais que notaram excessiva preocupação da criança com a falta de dinheiro e a angústia frente à possibilidade da “pobreza” da família.

Outras crianças, cada uma a seu modo, interrogam, mais uma vez, a partir também da pandemia, a guarda alternada[1]. Uns dias na casa do pai, outros, na casa da mãe. São crianças, muitas vezes, sem casa, cuja poética do espaço, nesse tempo de quarentena, tem vindo com muita consistência, por terem de transitar de uma casa à outra..... Falamos sobre isso anteriormente[2].

-“Pai, você vai morrer por causa do coronavírus?” - pergunta aflita outra criança, impulsionando os pais a pedirem que continue os atendimentos, agora on-line. Assim foi feito. Essa pergunta faz eco para muitas outras, cujas questões com a perda, se fazia já presente.

Freud em seu artigo "Sobre a guerra e a morte"[1] nos diz que no fundo, os adultos, movidos pelo inconsciente, acreditam mais, , em sua imortalidade do que em sua própria morte, Em relação à morte dos outros, se evitará ao máximo a falar disso, principalmente se a pessoa destinada a morrer poderia ouvir. E acrescenta:

"Só as crianças infringem esta restrição; ameaçando-se sem pejo umas às outras com as probabilidades de morrer e chegam, inclusive, a dizer na cara de uma pessoa amada coisas como "querida mamãe, quando você morrer, farei isso ou aquilo."
- “Você acha que ficaremos muitos anos presos em casa, Tânia?” – pergunta outra criança em um áudio no zapp. Conversando com a mãe sobre a necessidade de prosseguirmos o tratamento, iniciamos, posto que a grande questão em jogo nesse tratamento é que essa criança se recusava a sair de casa, tendo perdido alguns meses de aula, quando iniciou o tratamento. Assim, “presos em casa” retorna, agora, com outra face.

É em torno das questões que a pandemia coloca, que gravitam as de cada uma dessas crianças em tratamento: a separação; a sexualidade; a relação com o outro; o bulling; a exclusão; a dificuldade de inclusão; as famílias recompostas; os embaraços da separação dos pais e entre os pais; as dificuldades e problemas de aprendizagem e na escola, enfim.

Assim, vamos acompanhando as crianças em seus trabalhos, invenções e saídas cotidianas, abrindo-nos também às questões éticas e políticas que nos concernem, para além das que a clínica impõe.
Uma janela aberta na quarentena: o movimento vivo das sessões on-line com crianças
- Estamos prontos, diz a mensagem do pai.
- Podemos começar? – Pergunta a mãe.
- Estamos aguardando – Diz a mãe pelo zapp, no horário marcado.

O “podemos” , “estamos”, no plural, já nos coloca frente a uma questão de imediato. A sessão certamente se estenderá aos demais membros da família que, não raro, mostram sua cara frente às câmeras, seja para entregar o sanduíche e o suco, seja para dar um “oi” para a analista....

Mas tudo começa com o ambiente preparado por um deles: o pai ou a mãe, seguido das palavras: “vou deixar vocês a vontade”, ou “ podem iniciar”, saindo do ambiente, onde, não raro, vão entrar novamente em poucos minutos, ou para falar algo da criança que acham necessário que a analista saiba ou na expectativa de que algo seja tratado naquele momento com a criança....

Todas as sessões com as crianças têm sido ou por Skype ou chamada de vídeo..

Muitas vezes, eles também querem falar. Principalmente de sua angústia quando a criança coloca em cena com seu sintoma o que “há de sintomático na estrutura familiar[3]” – Como nos diz Lacan. É preciso, acolher na escuta esse ponto de angústia dos pais ou de cada um e, num cálculo clínico, intervir de modo a manejar essa angústia.

Mas eis que de repente, um pé de unhas pintadas, ou um gato no armário, ou o ventilador de teto, são as imagens dadas à analista....

Muitas vezes, em meio a uma fala, passa rapidamente um vulto frente à tela....”vou buscar o livro que estou lendo para você ver”, ou roda a câmera para mostrar algo no próprio quarto onde se passa a sessão ou leva consigo o celular ao armário para buscar o álbum de quando era bebê ou a foto da primeira viagem feita com os pais, já que agora não dá para viajar....

Cai a ligação....Volta o pai ou a mãe, pedindo desculpas pois o(a) filho(a) tirou o celular ou o computador do lugar....

“Espera Tânia, vou pegar minha bolsa”. Dali saem objetos mil, lembranças, histórias e associações....Tal como os brinquedos, tudo se transforma em suporte de discurso.

Às vezes, com a tela em branco, a voz sussurra algo como “chorei ontem”. “Estou com medo de morrer”. “Não quero ir para a casa de meu pai”, “me sinto muito sozinha, a ajudante está de folga por causa do coronavírus”.

Ou ainda: “Detesto aula on-line. Tenho de ficar muito tempo no escritório para fazer a aula”. “Fiz uma mão na aula de robótica”....enquanto ecoa a voz, o corpo sai em busca da “mão robótica”...

Às vezes, soa um grito estridente de chamado à mãe e/ou ao pai para falarem com a analista. A criança quer fazer a sessão como já havia acontecido no consultório. “Pega a bola, pai. Quem deixar cair responde pergunta de quem jogou a bola”. Assim, os três jogam a bola e as perguntas: “mãe você ama mais o bebê ou a mim?”

- “ Vocês vão se separar?” – “Porquê filho?”

– Não é hora de me perguntar. Você responde. Eu não deixei a bola cair...Regras são regras”. Assim, a sessão prossegue.
À analista cabe a escuta atenta ao que está em jogo e as intervenções que possam trazer mudanças na posição do sujeito que fala.

Em algumas circunstâncias, ainda no início da sessão, a criança quer “desligar”. Um ponto ali difícil ou inarticulável pelo significante. Acolho. Pergunto aos pais um bom horário para ligar mais tarde para continuarmos a sessão, pois naquele momento a criança não está conseguindo prosseguir. Assim uma sessão pode demandar, às vezes, duas ou três chamadas em diferentes horários ou dias.

Muitas vezes, nessa clínica com crianças, há um caminho a percorrer até que o sujeito possa, ele mesmo, ultrapassar o ponto de queixa do outro sobre si, para formalizar seu sintoma, sob transferência. O caminho é o mesmo, nas sessões presenciais ou on-line.

Para concluir essas notas, escuto que nesse tempo de quarentena, se exacerbam duas posições da criança: a da criança sintoma e a do sintoma da criança. Torna-se necessário, precisar essas posições.

Compreendemos que, às vezes os pais ou um deles, a família, a escola, podem fazer da criança seu sintoma. As queixas que deixam entrever esse lugar da criança, nesse tempo em que a família está mais em casa, são muitas: “ela não obedece”, “não sabe lidar com frustração”, tem problemas com a alimentação, dependendo de quem oferta, ela é opositora, enfim....A série é grande.

Alguns pais não tinham a dimensão dos problemas da criança com a alimentação, pois não almoçavam em casa. Outros, desconheciam dificuldades escolares, pois nunca tinham acompanhado a criança em suas tarefas e em seu aprendizado escolar. Outros, descobrem no histórico de internet, que a criança vê, muito conteúdo impróprio para sua idade. Há ainda aqueles que notam as olheiras que sempre estiveram lá ou uma tristeza e apatia que parecem mais acentuadas.

Enfim, nesse tempo de encontros e desencontros em casa, os pais podem se angustiar.
Nas queixas que trazem, tem um sofrimento empenhado. É preciso acolher, tratar e intervir para que a criança se mova no lugar que ocupa na estrutura familiar e para que outro olhar sobre a criança seja construído. Não obstante, sabemos que, em alguns casos, a intervenção recai mais sobre quem faz da criança seu sintoma – os pais ou um deles, a família, a escola.

Podemos assinalar também, que nesse momento do real da pandemia, o sintoma da criança pode tornar-se também mais consistente: medos, fobias, pânico, encoprese, enurese, anorexia, agressividade, etc...etc.. Quanto maior a angústia, mais o sujeito faz uso do sintoma e da inibição.

Muitas vezes, essas manifestações não são vistas como sintomas, mas, numa vertente moral, como mal comportamento, rebeldia, desobediência ou mesmo como algo que está ao alcance da criança mudar, fazer diferente, algo como um capricho. Cabe à analista, fazer com que haja uma escuta possível dessas manifestações sintomáticas que precisam tratar para mudar.

Assim, na clínica, encontramos muitas crianças que se apresentam, as vezes, sem possibilidades de mediação, capturadas no lugar em que são colocadas ou pelos significantes que marcam seu corpo e seu modo de estar no mundo, mas que, no decorrer do tratamento, conseguem construir alguma nomeação que possibilita mediar essa relação com o Outro, separando-se do lugar de objeto que é chamada a ocupar.

Desse modo, as sessões on-line com crianças de diferentes idades e posições subjetivas, constituem-se em um campo aberto ao debate. Ele se inicia a partir da premissa de que importa menos a idade e sim a posição do sujeito, sob transferência - assim como importa menos o que determina o sujeito, mas sim a sua posição frente ao que o determina – enfatizo - à despeito de sua idade cronológica.

Com essas considerações que suponho provisórias, concluo parafraseando Llansol, Frente a esse Real que nos impõe o trabalho pelo ambiente virtual - a clínica com crianças – é tomada por nós como “ uma virtualidade aberta a todos os recomeços”.

No nosso próximo encontro, poderemos falar um pouco das sessões on-line com os pré-adolescentes, suas especificidades e nuances e o que nos ensinam. Em tempo de pandemia: o pandemônio em casa. [1] Muitos pais no lugar de realizarem a guarda compartilhada acabam consumando a guarda alternada, dividindo o tempo de moradia da criança entre um e outro. [2] Verificar texto no blog “ Minha casa, minha vida”.
[3] Texto de 1915.
[4] Ver: Notas Sobre a Criança. IN: Outros Escritos. Jorge Zahar editor.

Ps. Agradecimentos a Crasso Parente pela interlocução.

A CLÍNICA, O REAL E O VIRTUAL: O que dizem as crianças e pré adolescentes sobre seu sofrer?-Tânia Ferreira


Fonte:https://psinavidacotidiana.wixsite.com/psicanalise/post/a-cl%C3%ADnica-o-real-e-o-virtual-o-que-dizem-as-crian%C3%A7as-e-pr%C3%A9-adolescentes-sobre-seu-sofrer

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