Um bisavô beija seu bisneto, nascido com
microcefalia devido ao vírus do zika, em Recife (Brasil), em 9 de fevereiro de
2016.NACHO DOCE / REUTERS
A necropolítica das
epidemias
Enquanto
o vírus corona aciona o pânico coletivo dos regimes autoritários, o vírus zika
abandona as mulheres mais vulneráveis ao abuso de governos patriarcais que
perseguem a reprodução
A epidemia do vírus corona parece uma atualização das
aulas de Michel Foucault sobre biopolítica, segurança e territórios. A
biopolítica é o poder que organiza as políticas da vida, isto é, são táticas
que regulam que corpos devem viver e quais podem ser descartáveis. A explosão
de uma epidemia é um momento efusivo à
biopolítica: em nome da proteção coletiva se controlam os corpos, se traçam
fronteiras reais ou imaginárias à saúde. Assim foi com a epidemia de zika vírus. Com zika, no entanto, o pânico
global foi ligeiro, pois logo se compreendeu que o risco à doença estava
confinado aos países tropicais. E por que o rápido silenciamento sobre o zika?
Porque toda biopolítica se converte em uma necropolítica quando os regimes de
desigualdade determinam quais corpos vivem o risco.
Há
uma nova doença em curso, e sobre a verdade do vírus não parece haver controvérsia
—a Organização Mundial de Saúde a descreve
como COVID-19, uma doença infecto-respiratória semelhante à gripe. Por ser um
vírus novo, a taxa de infecção é alta, pois não há imunidade
por adoecimento prévio ou proteção por vacina. Uma doença se apresenta como
perigosa às populações por seu potencial de contaminação ou pelo risco de
morte. Nesse sentido, os vírus corona e zika se parecem na epidemiologia:
populações sem imunidade e risco de morte concentrado em determinados grupos
etários —no caso do vírus corona, entre idosos; do zika, entre crianças.
Mas o
burburinho das duas epidemias foi diferente. Houve compaixão às mulheres e seus filhos de cabeça miúda, discutiu-se os
riscos de a doença sair do Sul Global para o Norte pelo risco de transmissão
sexual, uma vez que o mosquito, o principal vetor, estava concentrado nas casas
precárias dos trópicos. No entanto, não houve desaceleração da economia global,
flutuação da bolsa de valores ou cancelamento de desfiles de moda, congressos
acadêmicos e encontros de negócios, como ocorre com o vírus corona. Há um
verdadeiro “pânico coletivo”, segundo Giorgio Agamben, cujo exagero da resposta
seria, na verdade, um pretexto de governos autoritários para mover o “estado de
exceção”.
Agamben está
certo em descrever que o estado de medo em que vivemos se alimenta com momentos
de “pânico coletivo”. O vírus corona permite fechar fronteiras, impedir
mobilidade nas cidades, confinar indivíduos às casas. Se a política do medo
explica o exagero da resposta e sua utilidade para os regimes autoritários,
para nós, há uma outra particularidade em como se respondeu à epidemia de zika
em comparação à de corona: zika era uma doença com risco global, mas se mostrou
uma doença de gente miserável e uma sentença de vida às mulheres anônimas.
Nossa
estranheza não é ressentimento de mulheres latinas que, ainda hoje, acompanham
a peregrinação das sobreviventes de zika com seus filhos. Como
qualquer outra pessoa, estamos expostas ao vírus corona, mas diferentemente das
mulheres pobres do Brasil, Colômbia, El Salvador ou Venezuela, não estamos em
risco ao adoecimento pelo vírus zika, ou sob leis criminais que proíbem o aborto ou sob regimes de
pobreza que desamparam o cuidado. É preciso especificar quais mulheres vivem o
vírus zika como uma ameaça para o futuro —as mulheres mais vulneráveis, negras
e indígenas, jovens e pobres. Essa é a passagem da biopolítica para a
necropolítica das epidemias: o vírus corona aciona o pânico coletivo dos
regimes autoritários que não querem estrangeiros em terras próprias; o vírus
zika abandona as mulheres mais vulneráveis ao abuso de governos patriarcais que
perseguem a sexualidade e a reprodução.
*Debora
Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown; **Giselle
Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPF/WHR
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