Invisível.Convidadas do desfile de moda da Dolce & Gabbana, em Milão, em 23 de fevereiro, usam máscaras de proteção(foto: Andreas SOLARO/AFP)
Pandemia do Coronavírus nos faz questionar noção de individualidade, diz filósofo da UFMG
Por Verlaine Freitas
Verlaine Freitas escreve sobre o que a
emergência sanitária mundial revela sobre a sociedade e traça possíveis
cenários da reconfiguração pós-crise
“Quem sou eu em meio ao oceano de pessoas do país e
do mundo?” “O que representam bilhões de pessoas do planeta para mim, um mero
indivíduo?”
Essas perguntas, que nos rondam ocasionalmente como
meras fantasias existenciais – sem respostas e sem desdobramentos práticos,
meros índices das incertezas quanto ao sentido da existência individual e
coletiva em um mundo cada vez mais individualista, repentinamente ganharam uma
concretude avassaladora.
A pandemia de COVID-19 nos mostra a densidade
urgente, visceral e corpórea do tecido societário, expondo à luz do dia como
falácias inadmissíveis os discursos baseados no mero esforço próprio, nas
opções individuais, no interesse centrado na maximização do lucro em detrimento
do bem-estar coletivo.
De muito pouco adianta a segurança do espaço e dos
recursos individuais em um mundo globalizado e permeável a viagens intercontinentais,
em cidades que se aglomeram e se adensam vertiginosamente nos transportes
públicos, nos cortiços e nas favelas. De pouco adianta ter muito dinheiro para
pagar um leito em um hospital, quando todos já estão saturados tratando de
milhares de pessoas.
Na proporção exata dessa dramaticidade do
entrelaçamento entre indivíduo e sociedade, vemos a imbricação vertiginosa
entre economia, sociedade e política, desmentindo o discurso neoliberal (de um
Estado mínimo) como um verdadeiro atentado ao nosso corpo coletivo.
As políticas estatais garantindo a suficiente
capilaridade do sistema de saúde agora se mostram necessárias e, na verdade,
imprescindíveis, mesmo para o mais obtuso dos neoliberais, mesmo para o mais
empedernido apologista da meritocracia.
Na Plaza Mayor, um
dos mais movimentados pontos turísticos de Madri, restaurantes fecharam por
ordem do governo para tentar conter a disseminação do novo coronavírus(foto: JAVIER SORIANO/AFP)
INVISÍVEL
Nesse contexto, o
empreendimento privado fica de joelhos esperando, não a mão invisível do
mercado, mas a muito tangível mão do Estado e seu poder não apenas financeiro,
mas baseado em uma perspectiva macro, capaz de entrelaçar diversos atores em
diferentes planos, desde a assistência social, passando pelas instituições
políticas, econômicas, judiciárias até o plano internacional. (Veja-se, por
exemplo, o posicionamento simétrico da diminuição de juros nos bancos estatais,
e a elevação das taxas para empréstimos cobradas pelos bancos privados.)
Vivemos atualmente um
chamamento à concretude radical da negatividade do mundo, muito além da
experimentada nas figuras dos vilões nos filmes, nas derrotas esportivas e nas
notícias de guerras do outro lado do mundo.
Moradores de Nova York passam em
frente ao cartaz da peça Hamilton, na Broadway, que fechou seus teatros em
cumprindo a determinação do governador(foto:
AFP )
Ela deverá forjar uma nova consciência do
significado dessa vida “em piloto automático”, com este vaivém constante,
seguindo o eterno princípio da maior vantagem para si. Tal como toda
interrupção do trânsito com objetos de desejo constrange a uma posição crítica
sobre o significado deste vínculo, agora também seremos levados a nos perguntar
sobre esta colonização expansiva do mundo, cuja marcha inexorável levou a
natureza a nos questionar: “Quais seus limites? Qual a racionalidade social
disso tudo? Quais os custos ambientais e de vidas humanas vocês estão dispostos
a pagar para manter a ilusão de um individualismo exacerbado?”.
Naturalmente, o aprendizado dessa experiência
negativa será muito diverso, pois alguns grupos sociais lucram com esta crise,
outros aferram-se a leituras religiosas fundamentalistas baseando-se no
conceito de castigo divino, e alguns tenderão a se fechar mais ainda em seu
mundo, isolando-se de toda e qualquer responsabilização social.
Funcionárias do parque da Disney em Xangai
desinfetam escada rolante, na chamada fase de reabertura das
atividades no país asiático(foto:
AFP )
CRÍTICA
Espero, porém, que a maior
parte da sociedade tenha uma visão crítica progressista, cobrando de si e dos
outros um comprometimento maior com o bem-estar social, percebendo o quanto a
vida em sociedade significa, por si, uma dimensão inexpugnável e inelidível da
vida individual no sentido mais próprio do termo.
O isolamento social a que
hoje nos vemos forçados pode ser lido como uma metáfora do quanto a negligência
para com os serviços públicos de saúde significa o desprezo para com a vida de
cada uma e cada um de nós em termos singulares.
Os filósofos da Escola de
Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer, haviam concebido a destruição
avassaladora da Segunda Guerra Mundial como um retorno violento da natureza
recalcada, reprimida e mutilada. Tal como, segundo a psicanálise, desejos
recalcados retornam sob a forma de sofrimento neurótico, todo o complexo
natural pareceu retornar, furioso, nas centenas de bombas despejados sobre as
metrópoles.
Agora vemos, mais uma vez,
porém de forma menos metafórica, a natureza cobrando um alto preço pelo
esquecimento de que somos seres vivos, aliás muito frágeis, muito mais fracos
que outros, invisíveis aos nossos olhos, mas muito mais poderosos que nós
humanos, demasiadamente humanos.
*Verlaine
Freitas é professor da UFMG e pesquisador do CNPq
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