O FIM DE UMA ERA PARA ESCALADORES DO MONTE ULURU,SÍMBOLO SAGRADO DOS ABORÍGENES DA AUSTRÁLIA


Turistas observam Uluru Foto: SAEED KHAN / AFP

Turistas observam Uluru Foto: SAEED KHAN / AFP

O fim de uma era para escaladores de um monte que é símbolo da Austrália




Para os locais, rocha sagrada e não deve ser explorada

ULURU - Os mitos de criação do povo anangu são sagrados. Alguns só circulam entre homens, alguns apenas entre mulheres. Alguns são revelados, camada por camada, à medida que um anangu cresce e amadurece. Às pessoas de fora, só se pode dizer o que uma criança anangu ouve.

Muitas dessas narrativas residem na própria geologia do Uluru, o extraordinário monólito vermelho no coração da Austrália . Às pessoas que fazem a trilha até a rocha gigantesca, os anangus pedem há anos que aceitem sua palavra de que se trata de um lugar sagrado e que a rocha não deve ser escalada. "Este é nosso lar", diz uma placa no sopé. "Favor não escalar."

Em 26 de outubro, esse apelo gentil foi substituído por uma proibição oficial de escalar o Uluru – um símbolo nacional cujas pregas rubras aparecem em incontáveis cartões-postais, anúncios de turismo e selfies. É uma vitória espiritual e psicológica para o povo aborígine que empreendeu uma campanha de décadas, angustiado com o perigo físico e os danos culturais infligidos pelas escaladas.
Trata-se de um ato – antes inimaginável – de deferência a uma parcela marginalizada da população, com efeitos potenciais no setor vital de turismo em um dos parques nacionais mais famosos do país.
Mas, como em grande parte da vida indígena na Austrália, há dois lados no caso do fechamento para escaladas.
Embora a maioria dos australianos apoie a decisão dos anangus, os escaladores vêm afluindo ao Uluru – também conhecido como Ayers Rock – em números maiores do que nos últimos 15 anos. A enxurrada de alpinistas indica que um segmento da população ainda resiste a algumas decisões tomadas pelos aborígines quando a propriedade da terra é devolvida a eles.
"Por que os anangus deveriam justificar suas regras? Essa é a pergunta que paira sobre tudo isso", afirmou Tim Rowse, historiador e professor emérito da Universidade de Western Sydney. "Quem diz aceitar a posse sem aceitar o controle não se debruçou ainda sobre o significado da palavra 'posse'."
Mesmo sendo comemorado como um marco histórico para os aborígines, o fechamento também aponta os limites das iniciativas australianas para corrigir erros históricos contra eles. Trata-se de um gesto parcialmente simbólico que nada faz para resolver os inúmeros problemas sociais enfrentados pelos aborígines.
A rocha de Uluru Foto: MATTHEW ABBOTT / NYT
A rocha de Uluru Foto: MATTHEW ABBOTT / NYT
Muitos dos próprios anangus vivem em uma comunidade entulhada de lixo, perto da rocha, fechada para os visitantes, um áspero contraste com os resorts exclusivos à volta do monolito, onde os turistas, sentados a uma mesa imaculada, bebem espumante e beliscam canapés enquanto admiram o sol poente que pinta o Uluru de vermelho vivo.
O turismo aponta para outras dualidades. Embora o Uluru seja tão sagrado para os anangus que certas partes dele não podem ser fotografadas ou mesmo tocadas, eles prezam os visitantes que passeiam de camelo ou de Segway em volta do sopé ou têm aulas de pintura à sombra da rocha.
Também há o problema de defender que a rocha é sagrada sem conseguir explicar por quê. Jennifer Cowley, autora de um livro que conta a história do povo anangu, observou que ele está "confinado em uma terra de ninguém".
Segundo Cowley, "eles não podem contar o segredo da rocha, pois estariam infringindo sua lei tradicional, e, se quebrarem essa lei, jogarão no lixo sua herança cultural".
Sammy Wilson, um anangu que recentemente deixou o cargo de diretor do conselho que gerencia o parque nacional do Uluru, explicou a situação com uma analogia moderna.
"Imagine um casarão", declarou em uma entrevista recente no Parque Nacional de Uluru-Kata Tjuta. "Você abre a porta e entra na sala. Entra e aprende. Podemos conversar sobre qualquer coisa. Mas você não pode entrar em meu quarto. É sagrado."
Wilson ressaltou que não quer que as pessoas deixem de visitar o Uluru; só quer que deixem em paz os locais sagrados.
Povo Anangu Foto: SAEED KHAN / AFP
Povo Anangu Foto: SAEED KHAN / AFP

"Tem gente que vem aqui só para escalar", disse. "Queremos ensinar-lhes como vivemos, como funcionam nossas tradições, queremos que olhem para a planície toda e vejam como tudo está interconectado."

Durante uma visita recente ao Uluru, via-se com clareza que a principal intenção de muitas pessoas era apenas escalar a rocha. Gente trajando brim suava em bicas, agarrando a rocha ao cambalear pela crista. Muitos decidiram descer de costas a íngreme encosta, segurando-se a uma corrente rente ao chão. Alguns desceram de quatro. Um homem de uns 30 anos desabou no topo; seus filhos olhavam enquanto ele se reidratava lentamente antes de descer de volta.
Jana Johnson, de 32 anos, viajou 2.700 km de carro com a família e mais duas pessoas, saindo de Rockhampton, perto da costa de Queensland. Também vieram apenas para escalar a rocha.
"Passamos 12 meses planejando isso", revelou.
Não tinham a menor vontade de passear pelo parque ou visitar o centro cultural. Segundo eles, se não pudessem escalar a rocha, voltariam à estrada. Estavam esperando desde cedo que os funcionários do parque destrancassem a porteira que se abre de vez em quando para dar passagem a pessoas que fazem a escalada de três horas pela íngreme crista da rocha.
Indígenas Anangu no parque nacional Foto: SAEED KHAN / AFP
Indígenas Anangu no parque nacional Foto: SAEED KHAN / AFP
Algumas pessoas favoráveis à continuação do direito de uso da rocha argumentam que ela faz parte de um parque nacional e deveria, portanto, pertencer a todos. Também há quem contradiga a afirmação de que escalar a rocha ofende as regras dos aborígines, mostrando fotos de décadas atrás em que guias aborígines aparecem levando brancos ao topo do Uluru.
Marc Hendrickx é um geólogo em campanha contra o fechamento. Segundo ele, o mero fato de que há um número enorme de pessoas vindo escalar a rocha é evidência suficiente de ela deveria continuar aberta.
"Tem milhares de pessoas escalando a rocha todo dia. O próprio ato já expressa uma opinião", ressalta. "Todos têm o direito de vivenciar este lugar, cada um por si, sem o incômodo das picuinhas burocráticas e das opiniões religiosas alheias."
Quando, em 1985, o governo australiano devolveu aos anangus a terra que inclui o Uluru, também arrendaram deles a rocha por 99 anos.
O conselho diretor que assumiu a administração do parque em 1985 tinha de atingir metas para poder fechar a escalada: precisava desenvolver outras atividades em número suficiente para limitar em 20% por ano a parcela de visitantes escaladores. O órgão de turismo acredita que essas várias atividades impedirão que o número de visitantes caia demais após o encerramento das escaladas.
Escaladores em Uluru Foto: MATTHEW ABBOTT / NYT
Escaladores em Uluru Foto: MATTHEW ABBOTT / NYT

Os anangus estão angustiados não apenas com os efeitos culturais, mas também com o crescente número de mortes: pelo menos 37 escaladores morreram desde que os registros começaram. Assim, os anangus também lutaram para modificar as opiniões sobre o Uluru. Antes, o escalador registrava seu nome no cume; hoje, o visitante se registra em um livro no centro cultural, atestando que evitou a escalada. Muitos que subiram e de lá levaram lembranças agora vêm devolvendo-as pelo correio como "pedras de perdão".

Os anangus recebem uma porcentagem das vendas de ingressos para o parque. Segundo Wilson, mesmo que os números diminuam, não reabrirão a escalada.




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