A mulher sem véu. Retrato de uma inconformista que desafia os mulás
A iraniana que luta pela abolição do uso obrigatório do hijab no seu país pagou um preço alto por deixar seus cabelos ao vento. Foi presa, teve de se exilar e não pode mais ver a família. Hoje, pelo mundo a fora, Masih Alinejad desata o cabelo e um mar de cachos em cascata desliza pelos seus ombros. Parece improvável, mas o que interessa na sua cabeleira não é a beleza mas o significado político.
Por: Joanna Moorhead
Fonte: Jornal The Guardian, Londres
Masih é uma ativista iraniana que passou a maior parte da sua vida a lutar pelos direitos das mulheres, com uma única reivindicação: a abolição da lei que as obriga a cobrir o cabelo com um véu, ou com o hijab, quando estão em público.
Desde a adolescência, Masih é um espinho cravado no pé dos aiatolás que governam o Irã. Ela se queixa e protesta, critica e desafia, de forma virulenta, todos os que apoiam o uso obrigatório do hijab. Aos 19 anos, foi detida por atividades antigovernamentais pela “polícia da moralidade”, presa sem acusação e levada perante um juiz que lhe disse ter provas suficientes para ordenar a sua execução. Esse magistrado acabou por libertá-la, mas não podemos deixar de pensar que, se na altura ele tivesse uma bola de cristal, não teria sido tão clemente. Porque Masih se tornou um pesadelo vivo para as autoridades iranianas.
No seu livro The wind in my hair: my fight for freedom in modern Iran (O Vento no Meu Cabelo – A Minha Luta pela Liberdade no Irã Moderno, publicado a 7 de junho e ainda não traduzido para português, ela explica que as moças no seu país são educadas “para manter a cabeça baixa, a ser o mais possível humildes e mansas”. Ora, Masih é exatamente o contrário. “Eu tenho demasiado cabelo, demasiada voz e sou demasiado mulher para eles”, diz Masih. Ela é divertida, ruidosa, com uma forte personalidade e – o que mais irrita as pessoas que governam o seu país – ela não tem medo.
Um fenômeno extraordinário
Se fosse oriunda de uma família iraniana culta e da elite, Masih já seria excepcional, mas o fato de ter crescido na pequena aldeia rural e pobre de Ghomikola, província de Mazandaran, ao norte de Teerã, faz dela um fenômeno ainda mais extraordinário. O seu pai era vendedor ambulante. A mãe – que não sabe ler nem escrever – criou seis filhos numa casa com uma só divisão, onde a família vivia, comia e dormia.
No seu livro, Masih descreve a escuridão das suas idas, à noite, a uma latrina situada na parte externa da casa. A latrina não era mais do que um buraco cavado no chão. Essas saídas noturnas tornaram-se a pedra angular da sua educação. Primeiro, porque o irmão, que parecia tão corajoso durante o dia e cuja liberdade ela tanto invejava, tinha medo do escuro e implorava-lhe que fosse com ele. Isso ensinou-lhe algo sobre o que é ser e o que é parecer forte, mas também porque a mãe lhe deu um conselho sobre como lidar com o escuro. “Minha mãe me disse: ‘A escuridão só te devora se deixares que o medo vença. Por isso, abre os olhos o mais que puderes e enfrenta a escuridão’.” Esta estratégia doméstica tornou- se um lema para Masih: “Aprendi que a situação dos direitos humanos no Irã é como o pátio da minha casa de infância: no país reina a escuridão, e as mulheres têm de manter os olhos bem abertos, porque essa é a única maneira de dissipar as trevas.”
Antes e depois da revolução dos aiatolás
Masih tinha 2 anos quando ocorreu um episódio que mudaria não só a sua vida mas também a de todos os seus compatriotas: a Revolução de 1979 que levou à queda do xá Mohammad Reza Pahlavi e ao regresso do exílio do aiatolá Khomeini para liderar uma república islâmica. A partir desse momento, sublinha Masih, tudo mudou. “Olhando para as fotografias da minha família antes da revolução, vemos a minha mãe com uma saia e um lenço, e o meu pai com uma barba curta. Depois de Khomeini regressar, os homens foram proibidos de se barbear e a barba dele foi crescendo até ficar imensa. Minha mãe teve de se cobrir totalmente com um chador. Todos tinham um ar miserável após a revolução: rostos que antes eram alegres e luminosos, como o da minha mãe, passaram a estar escondidos e tristes.” A maior ironia é que os pais de Masih apoiaram fervorosamente a revolução.
“Eles eram pobres, queriam empregos melhores e ter mais igualdade de oportunidades, e pensavam que a revolução lhes ofereceria isso tudo. Porém, antes da revolução havia liberdade social, as mulheres participavam em muitas atividades, tal como os homens e ao lado dos mesmos – podiam praticar esportes, ir ao ginásio, eram juízas. As pessoas que apoiaram a revolução queriam liberdade política e acabaram por não a ter – e pior: perderam a liberdade social.”
E foi assim que Masih, filha de um casal revolucionário, se tornou, ela própria, uma revolucionária contra a revolução dos pais, e uma vergonha para estes e para tudo o que eles defendem. A lei passou a exigir que, a partir dos 7 anos, as meninas passassem a usar o hijab, e pouco depois do seu sétimo aniversário ela começou a se rebelar contra essa obrigação.
A revolução, sublinha, foi uma revolução contra as mulheres. “A primeira medida tomada foi o uso obrigatório do hijab, e todo o resto veio por acréscimo, porque o véu era a maneira mais visível e mais eficaz de controlar as mulheres. A revolução sequestrou os nossos corpos, e ainda hoje continua a fazer deles seus reféns.”
A primeira da aldeia a se divorciar
No liceu, Masih envolveu-se com um grupo contestatário clandestino. Aos 18 anos, pouco depois de ficar noiva de um outro ativista, ambos foram detidos. “Foi o momento mais assustador da minha vida”, conta, porque, embora as formalidades do casamento (segundo as regras sociais e religiosas) ainda não estivessem concluídas, ela já estava grávida. Enviada para a prisão, em condições horríveis, ficou muito deprimida. “Pensei que a minha vida acabara ali. Eu era tão nova, estava sentindo-me ameaçada, em isolamento, sem o direito a ter um advogado. Não sabia se seria libertada, se voltaria a ver a minha família.”
Masih acabaria por ser condenada a cinco anos de prisão e a 74 chicotadas. O juiz decidiu, porem, suspender a pena por três anos, na esperança de que este gesto pudesse acalmar o espírito subversivo da futura mãe. Enganou-se redondamente. Pouyan, o filho de Masih, era ainda uma criança quando Reza, o marido, decidiu se separar. “No Irã, um homem tem o direito de se divorciar, mas uma mulher tem de pedir licença ao marido para fazer o mesmo”, lamenta. E pior: Reza ficou com a custódia do filho, então com 4 anos. Durante a maior parte da década seguinte, Masih veria o filho apenas ocasionalmente, mas a sucessão de injustiças só reforçou a sua determinação. “Depois da separação, desabrochei. Fui a primeira mulher na nossa aldeia a se divorciar”.
Masih encontrou emprego num centro que fazia estudos de mercado, ao que se seguiu uma formação de jornalista, que lhe permitiu trabalhar, por vários anos, como repórter parlamentar. Foi suspensa por usar sapatos vermelhos e, depois, retiraram-lhe a carteira profissional. Alguns anos mais tarde, sentindo que corria o risco de voltar a ser presa no Irão, mudou-se para a Inglaterra, aos 33 anos, para estudar na Oxford Brookes University. Daí continuou a sua batalha, entrevistando líderes iranianos por telefone, inquirindo-os sobre o hijab obrigatório, escrevendo e fazendo vídeos sobre os direitos das mulheres. No entanto, o que reacendeu verdadeiramente a chama do seu combate foi o que aconteceu em certo dia do ano de 2014, quando vivia perto de Kew Gardens, em Londres.
Um gesto simples, porém ilegal
Era uma manhã de primavera, num país onde as mulheres não têm qualquer problema em sair à rua de cabeça descoberta, mas para Masih esta era uma liberdade nova e preciosa. Numa rua ladeada por cerejeiras em flor, ela pôs- se a correr alegremente sem qualquer outra razão que não fosse a de sentir o luxo do vento no seu cabelo. A cena foi fotografada pelo seu atual companheiro, o jornalista Kambiz Foroohar, e Masih partilhou posteriormente a foto na sua página do Facebook, acompanhada por uma mensagem explicando que, no Irã, um gesto tão simples como este seria ilegal.
A imagem atraiu atenção imediata. Mais do que isso: inúmeras iranianas decidiram seguir o exemplo. E muitas dessas mulheres que compartilharam as suas fotografias, levantando corajosamente o hijab da cabeça, com o cabelo ao vento, estavam no Irã e não além-fronteiras, arriscando-se a detenções e a castigos corporais por exigirem o direito de escolher usar o véu ou não. Em poucos dias, a página de Facebook de Masih tinha mais de 100 mil “likes”, e assim nasceu uma campanha: My Stealthy Freedom (A Minha Liberdade Furtiva), que convida as mulheres iranianas a compartilhar regularmente nesse espaço as suas fotografias, de cabelos ao vento, num país onde é obrigatório o uso do véu. Desde a Revolução Islâmica de 1979 o movimento que se opõe a essa imposição ganhou muito mais seguidores depois das manifestações de dezembro de 2017 (contra as políticas econômicas do regime).
As mulheres iranianas de cabeças descobertas que compartilham suas fotos – algumas de costas, viradas, mas muito sorridentes e rindo orgulhosamente para a câmara – não são ativistas, frisa Masih. São cidadãs comuns, reivindicando de peito aberto uma escolha que acham ser um direito seu.
Mais de um milhão de pessoas segue a conta de Facebook My Stealthy Freedom (@StealthyFreedom), lançada por Masih Alinejad. Na foto, a burka, usada no Afeganistão, esconde ainda mais as mulheres.
Para Masih, este é o ponto crucial: ter poder de escolha. A mãe, a irmã e outras mulheres da sua família no Irã, sempre escolheram usar o véu e, possivelmente, sempre o usarão. Muito bem. Porém, todas as mulheres deveriam ter também o direito de escolher não usá-lo. O seu maior sonho, diz ela, é caminhar por uma rua do Irã, ao lado da mãe – esta com o seu hijab e Masih com os cabelos ao vento. Para ela, isso seria ter liberdade.
Fonte:http://www.luispellegrini.com.br/a-mulher-sem-veu-retrato-de-uma-inconformista-que-desafia-os-mulas/
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