Um diário fotográfico da doença psíquica e do vício em drogas da minha mãe
Um dos maiores dilemas éticos para artistas, escritores e qualquer um que trabalhe contando histórias de experiências humanas, é aprender como contar as histórias dos outros. Como dedicar a elas a sensibilidade que merecem? Que direito nós temos de nos colocarmos no lugar de outra pessoa pelo bem da arte? Esta questão é ainda mais complicada quando um vício ou doença psíquica faz parte da experiência vivida pela pessoa. Além disso, o que fazer se este indivíduo é o seu pai ou mãe?
A fotógrafa norte-americana Melissa Spitz vem tirando fotos da sua mãe, Deborah, há quase 10 anos, em um projeto que recebeu o nome de You Have Nothing To Worry About (Você não tem motivo para se preocupar, em tradução livre). Deborah sofre com o abuso de substâncias e problemas de saúde psíquica; Melissa tinha apenas 7 anos quando a visitou pela primeira vez em uma instituição. “Eu sempre soube que a minha mãe tinha medo de algumas coisas,” diz ela. “Ela tinha uma energia constantemente nervosa, mas era divertida e amável quando eu era pequena. Quando ela foi internada pela primeira vez, aquela experiência foi confusa e assustadora. A saúde psíquica não era um tema sobre o qual as pessoas conversassem no começo dos anos 90, e eu me lembro de conviver com muitas questões sem resposta e uma boa dose de paranoia”.
No outono de 2009, aos 20 anos, Melissa estava estudando fotografia na faculdade. Seu professor lhe deu a tarefa de fotografar algo pessoal e “privado”. Pela primeira vez, ela levou a câmera para a casa e fotografou sua mãe. “Durante o primeiro ano de fotos, minha mãe estava embriagada em boa parte do tempo. Eu lembro que ela nem percebia que estávamos tirando fotos e não se dava conta de que não se lembraria daquilo,” diz ela. “Na primeira vez em que eu lhe mostrei um portfólio das imagens, ela ficou muito brava e exigiu que eu saísse de casa. Mais tarde, admitiu que as fotos a assustaram, como se ela estivesse olhando em um espelho, e aquilo contribuiu para que buscasse ajuda para enfrentar o vício em álcool”.
Tentar caracterizar a doença de sua mãe é algo complexo, segundo Melissa. “Ela é muito doente, psicologicamente e fisicamente, mas nos últimos anos eu trabalhei muito para parar de chamá-la de ‘bipolar’, que é o seu diagnóstico técnico. Acredito que colocar um rótulo nela é mais prejudicial do que benéfico”. Melissa diz que sua mãe é hipocondríaca, e compartilha histórias em que ela pedia que a filha imprimisse artigos do WebMD descrevendo doenças que acreditava ter, e acabava sendo diagnosticada com as mesmas na semana seguinte. “Ela adora receber atenção e se fazer de vítima, motivo pelo qual eu acredito que ela goste tanto de ser fotografada,” diz Melissa.
O projeto You Have Nothing To Worry About reúne muito material visual, incluindo fotografias, imagens que a mãe de Melissa criou, fotos de arquivo, anotações, cartas, post-its e outros objetos. Melissa vê o projeto como uma colaboração entre as duas, e diz que a mãe costuma ter “ótimas ideias de como quer ser fotografada, estilizada, e de qual música quer ouvir naquele momento”. Os retratos são divertidos e penetrantes, parecendo oscilar entre sinceridade e coreografia. Em algumas imagens a mãe está vestida com roupas cheias de glamour, com batom vermelho e cabelos arrumados, e em outras ela usa acessórios – máscaras, armas, folhas jogadas para cima – que a ajudam a encarnar diversos personagens. O espaço da foto cria um palco para que a mãe mostre infinitas versões de si mesma. “Muitas vezes as performances dela, embora sejam sobre si mesma e a sua própria dor, condizem com os meus sentimentos em relação ao nosso relacionamento, e é aí que a conversa realmente começa. Um bom exemplo disso foi o dia em que minha mãe desceu as escadas com o rosto sangrando e a mandíbula machucada. Ao vê-la daquela forma, eu me senti machucada e quebrada por dentro”.
Minha mãe tem Mestrado em educação especial e era uma mulher brilhante. Agora, eu encontro post-its em que ela não sabe como escrever a palavra ‘bonita’. Às vezes a letra dela pode dizer mais sobre a sua doença psíquica do que qualquer outra coisa.
Às vezes Melissa trabalha mais discretamente, sem ser notada, e nestas situações vemos cenas da casa de sua mãe e momentos mais quietos, mais reflexivos, em que ela arruma a pia ou se senta na varanda. Por toda a casa, anotações feitas à mão são vistas em pedaços de papel colados nas portas e paredes. “Minha mãe tem Mestrado em educação especial e era uma mulher brilhante. Agora, eu encontro post-its em que ela não sabe como escrever a palavra ‘bonita’. Às vezes a letra dela pode dizer mais sobre a sua doença mental do que qualquer outra coisa”.
Com o tempo, Melissa passou a compartilhar as fotos em um perfil no Instagram. O que começou como um simples diário visual acabou se transformando em uma bola de neve, e atualmente a conta já tem mais de 50 mil seguidores. Em 2017, ela ganhou o prêmio de Fotógrafa do Instagram do Ano da revista TIME. Quando questionada sobre a ética de compartilhar o trabalho tão abertamente, Melissa diz que este é um tema que está sempre em sua mente. Quando ela estava na universidade, notou muita resistência de colegas de classe que sentiam que não deveriam estar vendo o que ela mostrava, como se eles se sentissem desconfortáveis ao entrar em contato com as partes mais cruas e menos editadas da sua vida doméstica. “No fim das contas, eu realmente sinto que esta história fala de uma filha crescendo com uma mãe que enfrenta uma doença psíquica, e sobre a sua perspectiva da situação,” diz Melissa. “Eu me pergunto que direito a doença da minha mãe tinha de habitar toda a minha infância. Todos aqueles gritos e abusos físicos eram apenas parte do seu processo, e eu deveria simplesmente deixar passar? Sinto que a história que estou contando é sobre a nossa família, e sobre como eu sobrevivi e consegui seguir em frente”.
O verdadeiro respeito é saber quando não mostrar certas fotos. Há muitas imagens que nunca serão publicadas por causa do seu nível de intimidade ou agressividade. Eu não quero mostrar a minha mãe desta forma.
A câmera trouxe um certo consolo para Melissa, funcionando como uma ferramenta para ajudá-la a processar suas experiências e se reconciliar com quem a sua mãe é. “A fotografia é a minha voz, e depois de 20 anos de abuso você fica tão dormente e silenciada pela situação, que precisa aprender que você tem o direito de ter uma voz. Fotografar alguém com estes problemas, que não seja um parente, é a verdadeira questão. Terei sempre um olhar sensível, porque independentemente de qualquer coisa, esta ainda é a minha mãe, e apesar de tudo, eu a amo imensamente. Eu sempre me perguntarei como uma pessoa pode dizer que te ama e, ainda assim, fazer coisas terríveis com você, mas é aí que a câmera entra. O verdadeiro respeito é saber quando não mostrar certas fotos. Há muitas imagens que nunca serão publicadas por causa do seu nível de intimidade ou agressividade. Eu não quero mostrar a minha mãe desta forma”.
Faz quase uma década desde que Melissa iniciou o projeto, e olhando para trás, ela percebe como ele foi enriquecedor. “O meu relacionamento com a minha mãe mudou radicalmente por causa deste projeto,” diz ela. “Nós sempre estaremos ligadas por ele e pela nossa história. Nós costumávamos brigar muito, e se não estivéssemos brigando, estávamos gastando dinheiro. Agora, ainda temos as nossas questões, mas pelo menos temos algo para fazer juntas”. Quando questionada sobre se as imagens haviam mudado a forma como sua mãe enxerga a si mesma, Melissa lembra uma ocasião em que ela parou de beber depois de ver uma foto sua, fumando na cama. “Hoje em dia, no entanto, não tenho certeza. Uma foto dela foi publicada recentemente na capa de uma revista alemã, e ela ficou dizendo ‘Você consegue acreditar no quanto eu estou bonita?’”
A foto preferida de Melissa mostra sua mãe fumando na varanda, e foi tirada quando a jovem tinha apenas 21 anos e estava em casa durante as férias da faculdade. “Ela saiu para a varanda e tudo estava no lugar certo,” diz Melissa. “A luz estava perfeita, o batom da minha mãe estava impecável, e ela simplesmente fumou. Parecia uma cena de glamour, de um filme dos anos 50. Foi como se June Cleaver se inclinasse para trás e dissesse ‘Dane-se’, cheia de orgulho e autoconfiança. Uma das frases preferidas da minha mãe quando eu era criança era de uma artista folk do meio oeste americano chamada Mary Engelbreit: ‘Vamos colocar a diversão [fun, em inglês] de volta em disfuncional!’ É assim que eu sempre vou pensar nela”.
Joanna Cresswell
Fonte:https://br.yahoo.com/vida-estilo/um-diario-fotografico-da-doenca-psiquica-e-vicio-em-drogas-da-minha-mae-072456246.html
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