Concepção artística do designer gráfico especialista em reconstituição facial forense Cícero Moraes mosta que judeus que viviam no Oriente Médio no século 1 tinham a pele, o cabelo e os olhos escuros (Foto: Cícero Moraes/BBC Brasil)
O que os historiadores dizem sobre a real aparência de Jesus
Esqueça
os cabelos compridos e olhos azuis: para pesquisadores, ele tinha a pele e os
olhos escuros e os cabelos curtos.
28/03/2018
Foram séculos e séculos de eurocentrismo - tanto na arte quanto na religião - para que se sedimentasse a imagem mais conhecida de Jesus Cristo: um homem branco, barbudo, de longos cabelos castanhos claros e olhos azuis. Apesar de ser um retrato já conhecido pela maior parte dos cerca de 2 bilhões de cristãos no mundo, trata-se de uma construção que pouco deve ter tido a ver com a realidade.
O Jesus
histórico, apontam especialistas, muito provavelmente era moreno, baixinho e
mantinha os cabelos aparados, como os outros judeus de sua época.
A dificuldade para se saber como era a aparência de
Jesus vem da própria base do cristianismo: a Bíblia, conjunto de livros
sagrados cujo Novo Testamento narra a vida de Jesus - e os primeiros
desdobramentos de sua doutrina - não faz qualquer menção que indique como era
sua aparência.
"Nos evangelhos ele não é descrito fisicamente. Nem
se era alto ou baixo, bem-apessoado ou forte. A única coisa que se diz é sua
idade aproximada, cerca de 30 anos", comenta a historiadora neozelandesa
Joan E. Taylor, autora do recém-lançado livro What Did Jesus Look Like? e
professora do Departamento de Teologia e Estudos Religiosos do King's College
de Londres.
"Essa ausência de dados é muito significativa.
Parece indicar que os primeiros seguidores de Jesus não se preocupavam com tal
informação. Que para eles era mais importante registrar as ideias e os papos
desse cara do que dizer como ele era fisicamente", afirma o historiador
André Leonardo Chevitarese, professor do Instituto de História da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro Jesus Histórico - Uma
Brevíssima Introdução.
Em 2001, para um documentário produzido pela BBC, o
especialista forense em reconstruções faciais britânico Richard Neave utilizou
conhecimentos científicos para chegar a uma imagem que pode ser considerada
próxima da realidade. A partir de três crânios do século 1, de antigos habitantes
da mesma região onde Jesus teria vivido, ele e sua equipe recriaram, utilizando
modelagem 3D, como seria um rosto típico que pode muito bem ter sido o de
Jesus.
Esqueletos de judeus
dessa época mostram que a altura média era de 1,60 m e que a grande maioria
deles pesava pouco mais de 50 quilos. A cor da pele é uma estimativa.
Taylor
chegou a conclusões semelhantes sobre a fisionomia de Jesus. "Os judeus da
época eram biologicamente semelhantes aos judeus iraquianos de hoje em dia.
Assim, acredito que ele tinha cabelos de castanho-escuros a pretos, olhos
castanhos, pele morena. Um homem típico do Oriente Médio", afirma.
"Certamente ele era moreno, considerando a tez de
pessoas daquela região e, principalmente, analisando a fisionomia de homens do
deserto, gente que vive sob o sol intenso", comenta o designer gráfico
brasileiro Cícero Moraes, especialista em reconstituição facial forense com
trabalhos realizados para universidades estrangeiras. Ele já fez reconstituição
facial de 11 santos católicos - e criou uma imagem científica de Jesus Cristo a
pedido da reportagem.
"O melhor caminho para imaginar a face de Jesus
seria olhar para algum beduíno daquelas terras desérticas, andarilho nômade
daquelas terras castigadas pelo sol inclemente", diz o teólogo Pedro Lima
Vasconcellos, professor da Universidade Federal de Alagoas e autor do livro O
Código da Vinci e o Cristianismo dos Primeiros Séculos.
Outra questão interessante é a cabeleira. Na Epístola
aos Coríntios, Paulo escreve que "é uma desonra para o homem ter cabelo
comprido". O que indica que o próprio Jesus não tivesse tido madeixas
longas, como costuma ser retratado.
"Para o mundo romano, a aparência aceitável
para um homem eram barbas feitas e cabelos curtos. Um filósofo da antiguidade
provavelmente tinha cabelo curto e, talvez, deixasse a barba por fazer",
afirma a historiadora Joan E. Taylor.
Chevitarese diz que as primeiras iconografias conhecidas de Jesus, que
datam do século 3, traziam-no como um jovem imberbe e de cabelos curtos.
"Era muito mais a representação de um jovem filósofo, um professor, do que
um deus barbudo", pontua ele.
"No centro da iconografia paleocristã, Cristo aparece sob diversas
angulações: com o rosto barbado, como um filósofo ou mestre; ou imberbe, com o
rosto apolíneo; com o pálio ou a túnica; com o semblante do deus Sol ou de
humilde pastor", contextualiza a pesquisadora Wilma Steagall De Tommaso,
professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Museu de Arte
Sacra de São Paulo e membro da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da
Religião.
Imagens
Joan acredita que as imagens que se consolidaram ao longo dos séculos
sempre procuraram retratar o Cristo, ou seja, a figura divina, de filho de Deus
- e não o Jesus humano. "E esse é um assunto que sempre me fascinou. Eu
queria ver Jesus claramente", diz.
A representação de Jesus barbudo e cabeludo surgiu na Idade Média,
durante o auge do Império Bizantino. Como lembra o professor Chevitarese, eles
começaram a retratar a figura de Cristo como um ser invencível, semelhante
fisicamente aos reis e imperadores da época.
"Ao longo da história, as representações
artísticas de Jesus e de sua face raras vezes se preocuparam em apresentar o
ser humano concreto que habitou a Palestina no início da era cristã", diz
o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
"Nas Igrejas Católicas do Oriente, o ícone de Cristo deve seguir
uma série de regras para que a imagem transmita essa outra percepção da
realidade de Cristo. Por exemplo, a testa é alta, com rugas que normalmente se
agrupam entre os olhos, sugerindo a sabedoria e a capacidade de ver além do
mundo material, nas cenas com várias pessoas ele é sempre representado maior,
indicando sua ascendência sobre o ser humano normal, e na cruz é representado
vivo e na glória, indicando, desde aí, a sua ressurreição."
Como a Igreja ocidental não criou tais normas, os artistas que
representaram Cristo ao longo dos séculos criaram-no a seu modo. "Pode ser
uma figura doce ou até fofa em muitas imagens barrocas ou um Cristo sofrido e
martirizado como nas obras de Caravaggio ou Goya", pontua Ribeiro Neto.
"O problema da representação fiel ao
personagem histórico é uma questão do nosso tempo, quando a reflexão crítica
mostrou as formas de dominação cultural associadas às representações
artísticas", prossegue o sociólogo.
"Nesse sentido, o problema não é termos um
Cristo loiro de olhos azuis. É termos fiéis negros ou mulatos, com feições
caboclas, imaginando que a divindade deve se apresentar com feições europeias
porque essas representam aqueles que estão 'por cima' na escala social."
Essa distância entre o Jesus "europeu" e os novos fiéis de
países distantes foi reduzida na busca por uma representação bem mais
aproximada, um "Jesus étnico", segundo o historiador Chevitarese.
"Retratos de Jesus em Macau, antiga colônia portuguesa na China,
mostram-no de olhos puxados, com a forma de se vestir própria de um chinês. Na
Etiópia, há registros de um Jesus com feições negras."
O ator Jim Caviezel interpretou Jesus no
filme 'A Paixão de Cristo', de 2004, dirigido por Mel Gibson (Foto: Icon
Productions/Divulgação)
No Brasil, o Jesus
"europeu" convive hoje com imagens de um Cristo mais próximo dos
fiéis, como nas obras de Cláudio Pastro (1948-2016), considerado o artista
sacro mais importante do país desde Aleijadinho. Responsável por painéis,
vitrais e pinturas do interior do Santuário Nacional de Aparecida, Pastro
sempre pintou Cristo com rostos populares brasileiros.
Para quem acredita
nas mensagens de Jesus, entretanto, suas feições reais pouco importam.
"Nunca me ocupei diretamente da aparência física de Jesus. Na verdade, a
fisionomia física de Jesus não tem tanta importância quanto o ar que
transfigurava de seu olhar e gestos, irradiando a misericórdia de Deus, face
humana do Espírito que o habitava em plenitude. Fisionomia bem conhecida do
coração dos que nele creem", diz o teólogo Francisco Catão, autor do livro
Catecismo e Catequese, entre outros.
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