Enquanto a maioria dos católicos celebra as reformas do papa Francisco, que, em nove meses de pontificado, goza de popularidade e aceitação raramente vistas entre os ocupantes do cargo, pequenos e poderosos grupos têm mostrado antipatia diante dessas mesmas mudanças. Um deles é a máfia italiana. “Os chefões cujo poder e riqueza vêm de ligações com a Igreja estão cada vez mais nervosos”, diz Nicola Gratteri, promotor-adjunto da diretoria antimáfia do Tribunal Regional da Calábria, no sul da Itália, e autor de cinco livros sobre o tema, sendo o mais recente lançado em outubro, com o título “Água Benta – a Igreja e a Ndrangheta: uma História de Poder, Silêncio e Absolvição” (Ed. Mondadori, 2013). “Francisco está desmontando centros de poder econômico no Vaticano, e, se os mafiosos tiverem uma chance de dar uma rasteira nele, não hesitarão.” Desde que assumiu o trono de Pedro, em 13 de março, o papa Francisco impôs regras mais rígidas à gestão do Instituto para as Obras da Religião (IOR), também conhecido como Banco Vaticano. Depois de obrigar o banco a respeitar as leis que regem o funcionamento de qualquer instituição financeira internacional semelhante, ele montou uma equipe para acompanhar, diuturnamente, o funcionamento do órgão, comissionou o primeiro relatório sobre lavagem de dinheiro da história da instituição e, na semana passada, anunciou que seu secretário particular, o monsenhor Alfred Xuereb, supervisionaria todos os trabalhos no IOR, reportando-se diretamente a ele. Até o momento, ainda não está descartada a possibilidade de acabar com o Banco Vaticano, já que ele não cumpre mais a função estabelecida em seu estatuto.
ALVO FÁCIL?
Francisco cercado de seguranças e dentro do papamóvel: cena rara
O ódio dos mafiosos a Francisco vem do ímpeto do jesuíta em reformar uma instituição sobre a qual eles têm interesse particular e que sintetiza bem a ideia de “centro de poder econômico”. Criado nos anos 1960 com o intuito de facilitar o trânsito de bens e valores entre organizações católicas pelo mundo, o Banco Vaticano funcionou à margem dos rigores regulatórios impostos a praticamente todas as instituições similares, já que, em princípio, as transações seriam poucas e específicas. Mas, com o tempo, a fragilidade regulatória passou a atrair oportunistas, que, corrompendo religiosos, começaram a usar a estrutura do banco e sua blindagem religiosa para lavar dinheiro. E, sendo a Itália o berço da máfia como grande empresa do crime, não tardou para que os mafiosos percebessem a oportunidade que ali havia. Foi durante os anos 1980 que se viu o auge das promíscuas relações que se estabeleceram entre religiosos e mafiosos por meio do IOR. O exemplo do arcebispo Paul Marcinkus (1927-2006) é lapidar.
ALIADO
O monsenhor Alfred Xuereb, secretário particular do papa, será
um informante do pontífice dentro do Banco Vaticano (abaixo)
Como presidente do Banco Vaticano entre 1971 e 1989, Marcinkus, chamado frequentemente de “banqueiro de Deus”, se envolveu em boa parte dos grandes escândalos financeiros e criminais do país naquele tempo, sendo o maior deles a quebra do Banco Ambrosiano, o segundo grande banco privado da Itália, em 1982. À época, o Banco Vaticano era o maior acionista do Ambrosiano e, com a falência, acabou no olho do furacão das investigações. O que se descobriu foi uma verdadeira teia de corrupção instalada na instituição pontifícia, que envolvia lavagem de dinheiro da máfia, remessas ilegais de ativos e desvios de fundos. A trama engrossou ainda mais com a morte de Roberto Calvi, presidente do Ambrosiano, encontrado pendurado na ponte Black Friars, no centro de Londres, também em 1982. Embora inconclusiva, a investigação do assassinato sugeriu envolvimento da máfia italiana, que teria perdido muito dinheiro com a quebra da instituição, um dos parceiros na lavagem de ativos desse tipo de organização criminosa.
ALERTA
Nicola Gratteri, promotor antimáfia desde 1989,
foi quem revelou a ameaça ao pontífice
Ainda que os mais escabrosos escândalos envolvendo o Banco Vaticano e os mafiosos tenham ficado nos anos 1980, durante os anos 1990 e 2000 a relação Igreja e máfia não deu sinais de ter arrefecido. Até o fim de 2012, por exemplo, graves acusações envolvendo casos de lavagem de dinheiro parecidos com as operações clássicas dos mafiosos ainda eram feitas por órgãos do governo italiano. Em 2010, 23 milhões de euros suspeitos da instituição (R$ 74 milhões) foram bloqueados durante meses pelas autoridades. “O mafioso que lava dinheiro e, dessa maneira, exerce seu poder, é o que se beneficia da conivência da Igreja”, afirma o promotor Gratteri. “São esses os que estão agitados (com a iminência das reformas propostas por Francisco)”, diz ele, que não conhece nenhum plano concreto que ponha em risco o sumo pontífice, mas acredita que a máfia já reflete sobre essa possibilidade.
Estima-se que, somadas, as transações envolvendo dinheiro sujo da máfia italiana cheguem à casa dos 100 bilhões de euros anuais, o equivalente a R$ 322,8 bilhões. É evidente que apenas uma fração dessa fortuna poderia ser lavada pelo Banco Vaticano, mas uma medida clara de Francisco para eliminar quaisquer chances de que isso aconteça teria efeito simbólico gigantesco. Seria o fim de uma relação obtusa e incoerente que, há décadas, alimenta a imagem de uma igreja que prega uma pureza moral que ela não segue. E Francisco, em sua cruzada contra a hipocrisia, parece disposto a acabar com mais essa.
Não são poucas as razões para a máfia se sentir ameaçada por ele. E, tratando-se de uma organização criminosa que tem um histórico de ameaças e assassinatos de religiosos (leia quadro), todo tipo de reação deve ser esperado. Ponderado, Gratteri acha difícil que os capos mandem alguém matar o papa. E, mesmo que a ordem venha, como pontífice, Francisco está sempre bem protegido por um séquito de seguranças muito bem treinados. E é bom que seja assim. Afinal, com jeito desprendido e determinado, o latino-americano não dá sinais de que vai parar depois de completar as reformas que anunciou já no primeiro ano de pontificado. Pelo visto, ainda serão muitos os interesses contrariados.
PROFANO
O arcebispo Paul Marcinkus presidiu o Banco Vaticano entre 1971 e 1989,
um tempo de escândalos, corrupção e morte
Fotos: Giuseppe Ciccia/Demotix; Dario Pignatelli/PI/Glow Images; Vandeville Eric/ABACA/Newscom/Glow Images; ZUMA PRESS/KEYSTONE BRASIL
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